Contos de Redenção- Prólogo escrita por Tiagobm


Capítulo 2
Uma Criança Solitária


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.



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Abri meus olhos devagar, dopado pelo sono. Olhei para a janela mas não pude ver o Sol, outro dia nublado, já era o terceiro na semana. Ao sair dos cobertores tive calafrios. Ótimo, nublado e frio.

Sentia-me especialmente preguiçoso naquele dia, com vontade apenas de ficar deitado apreciando a minha própria ociosidade. Levantei-me e observei meu pequeno quarto bagunçado do orfanato de Hoder. Para aqueles que não sabem, Hoder é uma grande cidade do sul do reino de Torreno. Meu lar, suja e confusa, mas meu lar.

Depois de medir minha vontade de ficar deitado e minha fome, decidi arrumar-me para encarar mais um dia de aventuras na jornada de uma criança de nove anos.

Minha vida nunca foi das melhores, mas, eu não tinha do que reclamar. Não sentia fome, não sentia frio. Tinha alguns amigos e gente que cuidava de mim. Não era uma vida abastada, mas era boa, tirando o fato de nunca ter conhecido meus pais.

Desci as escadas do andar dormitório do orfanato e fui correndo para o refeitório. Não era um cômodo pequeno para um casarão, mas, tente imaginar trinta crianças se espremendo em um só cômodo, os resultados são desastrosos. Mas isso fazia parte da magia do lugar, nada como uma guerra de comida em um cubículo.

O barulho das crianças gritando e se divertindo tomava conta do recinto. Eu caía de cara em meu prato de ovos mexidos quando percebi que o barulho havia cessado.

Olhei para cima sem me importar de estar com a cara suja, ou melhor, imunda. Vi o motivo do silêncio, Dio, um garoto franzino de orelhas grandes e sorriso travesso estava em pé em cima da mesa.

Mas, daquela vez, ele não nos mostrava o sorriso daqueles que sabem que fizeram delitos inconsequentes, ele estava chorando. Com sua voz esganiçada, Dio gritou para que todos ouvissem:

–G-Gente, eu estava bisbilhotando a reunião mensal...

Alguém em um dos cantos da mesa gritou de volta:

–Tá, agora conta uma novidade seu orelhudo!

–Cale a boca Peter, isso é sério! Eles diziam que estavam sem dinheiro e que sem dinheiro não dava pra cuidar da gente!

Após ouvir a notícia, a maior parte das crianças entrou em pânico pensando no que poderia acontecer conosco. Alguns já contavam boatos falando que iríamos para a rua, outros que seríamos levados ao exército forçadamente.

O que eu faria ao receber a notícia que todo o meu mundo pode desabar? Isso mesmo, virei para o lado e fiz um comentário sagaz ao meu colega sobre como as orelhas de Dio são grandes.

Mas, cessado um pouco o alarde, várias vozes anônimas começaram a discutir entrei si:

–Parem de choramingar, todo mundo sabe que Dio é mentiroso.

–Como eles podem estar sem dinheiro, isso é impossível. Sempre que eu estou sem dinheiro pra comprar picolé eu peço pra um adulto e ele me dá!

–Por que eles não podem pedir dinheiro para adultos? Assim o orfanato não iria falir.

–Eles não podem pedir dinheiro para adultos Pedro, eles são adultos. Pare de ser burro.

–Não me chame de burro Gerrard, seu melequento.

Logo a discussão das criancinhas se tornou uma briga generalizada de cuecões, arremessos de comida e risos. Mais um animado dia no orfanato de Hoder.

A bem da verdade, eu, na minha humilde inocência, achava que tudo era uma brincadeira e todos nós continuaríamos vivendo nossas vidas lá até que algum nos adotasse. Certo, ninguém nos adotaria, mas eu gostava de sonhar.

Meus palpites mostraram-se errados quando, dez dias depois, a senhora Lucia convocou uma reunião geral. Todas as crianças amavam Lucia, inclusive eu.

Apesar de ser muito atarefada nas finanças do orfanato, ela sempre arranjava um tempinho para passar conosco e contar histórias. Descrevê-la é relativamente fácil. Pense na sua mãe de cabelo preto e de pele branca, pronto. Todos a viam na imagem materna, pois era assim que ela agia.

Seus cabelos negros estavam desarrumados e sua pele lisa e pálida estava corada. Apesar de ter apenas vinte e poucos anos, naquele dia, ela aparentava ser bem mais velha. Após todos estarem devidamente apertados em seus lugares, ela falou com voz trêmula:

–Meus queridos, eu tenho uma notícia a dar a vocês.

Ela soluçou e pareceu que ia começar a chorar, até que se recompôs e voltou a falar:

–Parece que nós não poderemos continuar nossa caminhada juntos por que não temos fundos para arcar com... Com mais despesas. M-Mas, não se preocupem vocês ficarão sobre os bons cuidados de nos... De nossa cidade.

Antes que qualquer um pudesse dizer alguma coisa ela saiu correndo com as mãos tapando o rosto em lágrimas. Por mais que a ideia de sair do orfanato fosse ruim, o que me deixou realmente triste foi ver Lúcia chorando.

Com meus nove anos, a vi minha "mãe" chorar e fiz força para não imitá-la. Foi nesse dia em que eu selei meu destino com uma vida de agitações e perturbações.

Se eu simplesmente tivesse ido com os outros, teria tido, provavelmente, uma vida simples como guarda da cidade apenas fiscalizando feiras. Mas, com minha idade tão branda, minha imaginação me fez querer tudo, menos ficar com o governo.

Não me leve a mal, não é que eu não goste do governo. Tivemos uns desentendimentos aqui, um assassinato ali, mas nada pessoal. Eu pessoalmente não odeio eles por me levarem à prisão, e eles pessoalmente não me odeiam por... Bem... Um monte de coisas.

Entretanto eu havia escutado diversas histórias do que eles faziam com órfãos e meus medos infantis falaram mais alto que a instrução dos membros do orfanato, por isso, eu decidi que faria de tudo para não seguir esse caminho.

Três dias depois, os preparativos para a saída das crianças estavam prontos, assim como meu plano. Foi uma despedida um tanto quanto melosa tanto por parte de orfanato como por nós crianças. Eu, após me despedir de todos os funcionários, fui falar com Lúcia, que era minha preferida. Ela sorria melancolicamente para mim com o rosto molhado por lágrimas enquanto eu perguntava:

–Tia Lú, a gente vai se ver de novo?

Ela me deu abraço apertado e disse com a voz trêmula:

–Eu prometo que irei visitá-lo para ver como Hoder está criando meu rapazinho!

Nessa hora tive vontade de contar para ela que eu nunca iria para o castelo com os outros, tive vontade de dizer que nunca mais iria ver meus amigos de novo e, acima de tudo, tive vontade de pedir para ela vir comigo.

Após as despedidas, um grupo de três soldados uniformizados foi nos escoltar para o quartel general onde ficáramos alojados por alguns dias.

No caminho para o quartel passamos pela feira assim como eu havia imaginado, e lá colocaria minhas ideias em ação. Caso você não conheça a feira de Hoder eu vou dar-lhe uma curta explicação.

É, basicamente, o maior, mais imundo e bagunçado encontro de pessoas das mais diversas classes sociais e tipos que você irá ver na cidade. É o lugar perfeito para se estar, e se perder.

Mas como eu era ingênuo! Talvez ingênuo não seja o melhor adjetivo, pessoas ingênuas são crédulas, não burras. Na minha mente infantil simplesmente eu não havia pensado que quando tentasse fugir um dos guardas tentaria me pegar e que eu, com nove anos, não eu iria conseguir correr mais que um adulto.

Sem pensar em mais nada, quando um grupo de comerciantes passou do nosso lado, corri na minha velocidade máxima passando entre os suas pernas tentando abrir caminho pela multidão.

Mal tive tempo de começar a correr quando senti uma mão firme agarrar minha camisa. Eu já pensava que toda a minha mal planejada tática havia falhado. Xingava-me mentalmente por ser tão lerdo e já pensava em qual desculpa eu daria para quando me pegassem.

Comecei a, desesperadamente, tentar me soltar, mas não tinha força para tal. Vi a mim mesmo sofrendo as consequências da fuga. Tudo estava perdido... Quando, por uma felicidade do destino. Pensando melhor agora, talvez por uma infelicidade do destino, a camisa rasgou e me vi livre novamente para correr.

Sabia pelos gritos que o guarda ainda estava atrás de mim, mas, este não conseguia abrir caminho com tanta facilidade quanto eu, que era pequeno, e logo ficou para trás.

Quando terminei de festejar o sucesso do meu plano, me dei conta de uma coisa, eu estava sozinho, sem casa, sem dinheiro e sem comida no meio de uma cidade grande. Não preciso dizer que eu não era lá uma das crianças de nove anos mais espertas do reino.

As duas semanas seguintes foram extremamente dolorosas. Sofria maus tratos, fome, frio e, minha alimentação se baseava nos resultados de meus furtos na feira que, geralmente, só resultavam em surras dos donos das lojas que me viam.

Engraçado como toda a sua vida pode mudar em função de um simples diálogo, e eu realmente devo a minha aos momentos que se sucederam a seguir.

Um homem de alto, moreno, de cabelos pretos já com alguns fios grisalhos e uma barba cortada rente passou por mim. Ao notar meu olhar faminto olhou em minha direção e perguntou:

–Garoto, onde estão seus pais?

Eu o encarei com a expressão impassível e disse:

–Essa, senhor, é a mesma pergunta que eu me faço há nove anos.


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