Indômitos escrita por Aad Emslie


Capítulo 7
Uma péssima parceria




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/435270/chapter/7

Escalei até o telhado, o que não foi a parte mais difícil do meu dia. A noite adentrava a cidade cada vez mais e a lua estava cheia, no seu momento mais glorioso. As nuvens eram suaves e estavam dispersas pelo céu, criando um cenário perfeito para o desastre no convento.

Toledo era realmente sortudo. Era uma noite maravilhosa para morrer.

O som das sirenes me agrava naquele momento. A cidade não possuía corpo de bombeiros, era demasiada pequena para esse luxo, mas três carros da delegacia já se postavam nos portões. O prédio seria exageradamente evacuado e logo o fogo seria controlado. Não era necessário tanto alarde.

E fiquei ali por dez minutos, deitada no telhado, afinal, não queria chamar atenção, além de a noite merecer minha contemplação.

Bem, mas a obrigação falou mais alto, tinha uma criança impulsiva e exagerada me esperando e, depois de um atraso de quase duas horas, seria uma criança desesperada e furiosa também.

Levantei-me e comecei a andar para a parte menos movimentada, justamente em direção a uma rua praticamente deserta e mal iluminada. Retirei uma corda fina e resistente de minha bolsa e amarrei-a em uma das hastes do telhado. Após colocar minhas luvas de couro, respirei fundo e pulei.

Chegando ao solo, andei rapidamente até a grade pulando-a em seguida.

Estava cansada daquilo, a adrenalina havia passado e agora sentia a dor em minhas costelas e meu maxilar mal se movendo. Ficaria daquele jeito por uns tortuosos dias.

Ajeitei minhas veste e comecei a andar para o lado oposto da agitação.

A rua estava envolta na penumbra causada por esporádicos postes com luz, as casas com as janelas trancadas, famílias aninhadas em seus quartos fugindo de qualquer conflito o qual existisse fora de suas paredes. Três carros parados por toda a extensão da rua, todos com os vidros com um tom negro. Apenas continuei a caminhar naturalmente, passando meus dedos pelas grades da igreja.

Foi quando meu azar resolveu se pronunciar, personificado no som e na luz das sirenes do carro da polícia. Havia uma viatura fazendo ronda ao redor da Igreja, adentrando a rua a qual estava e se aproximando em lenta velocidade.

Não podia correr, faltava ainda metade da distância para poder entrar na rua adjacente e, muito menos, atravessar a rua e invadir uma casa. Respirei fundo diante de minha única saída. O próximo carro estacionado na mão direita. Abaixei-me ali e permaneci imóvel esperando que o carro passasse.

Suspirei aliviada ao ver a viatura virando na próxima rua. Afinal, não era uma ronda tão interessante. Ri de minha própria lamentação. Porém foi assim que fui pega de surpresa.

Assim que a porta do carro a minha costas se abriu, uma mão foi posta sobre minha boca, puxando-me rapidamente para o banco de trás. Foi tão rápido e imprevisível, que apenas dei-me conta da situação quando ouvi o motor sendo ligado.

Debati-me incessantemente, porém a pessoa a qual me segurava era mais forte e minha posição pouco me favorecia. O máximo que consegui fazer foi acertar uma cotovelada potente na boca do estômago do meu agressor, fazendo-o gemer de dor e afrouxar o aperto ao meu redor. Aproveitei minha chance e virei meu tronco, acertando um soco próximo a sua orelha e, em minha segunda tentativa, outra mão agarrou meus pulsos, enquanto o primeiro agressor se recuperava e segurava minhas pernas que tentavam acertar a cabeça mais próxima com uma joelhada.

– Soltem-me agora! – gritei contundente.

– Que garota agressiva – um deles falou, com a voz indignada – Não podia ter encontrado uma mais calma, não?

O que aquele idiota estava falando? Pretendia me vender em algum bordel para querer escolher um melhor temperamento? Eu mataria dolorosamente cada pessoa que estivesse naquele carro.

– Não, as outras me entediavam – falou uma voz feminina no banco da frente, levemente familiar, mas minha raiva estava manchando minha paciência naquele momento.

– Irei fazer novas malas com a pele de vocês quando sair desse carro! – falei entre dentes.

Um deles colocou a mão em minha cabeça, afagando-a como se eu fosse um cachorro.

– Não se estressa, garota, você não vai querer rugas tão cedo – este era o primeiro agressor, o que possuía a voz mais grave e entediada do que o outro.

E no instante que o carro parou, em uma viagem relativamente curta, meu joelho se soltou e foi parar direto na cara de quem havia me chamado de “garota”. Ninguém possuía este direito.

– Não me chame de “garota”, seu imbecil!

Ele rapidamente abriu a porta do carro e saiu praguejando, fechando-a logo em seguida, a outra mão em concha sobre seu nariz. O outro, o qual segurava meus braços, logo tratou de sair também, batendo a porta atrás de si.

– Estou fora, não quero transfigurar meu lindo rostinho hoje – disse do lado de fora.

Mas o que diabos estava acontecendo ali? Era uma piada? Ou apenas fora sequestrada por incompetentes que nem ao menos aquentavam uma ameaça?

Sentei-me no banco e olhei os homens do lado de fora do carro, cada um travando uma saída. O que havia saído primeiro parecia-me familiar de algum modo. Era alto, pele clara, feição – como sua voz – entediada e olhos marcantes, e estava com um pequeno fio de sangue saindo de seu nariz. Frouxo, nem havia batia com tanta força.

O outro tinha apele bronzeada, cabelos levemente cacheados e castanhos, não tão alto quanto o outro e com feição embriagada. Bem, era o que resumia. E o que resumia melhor ainda os dois era: idiotas.

Respirei fundo, pronta para matar o primeiro dos dois ao qual colocasse a mão, quando lembrei-me da voz feminina do banco da frente.

Virei ameaçadora para frente e, para minha total surpresa e ainda maior irritação, vi o rosto sorridente de uma loira.

– Você disse que não demoraria – fechou repentinamente seu sorriso – Isso é sangue? – disse passando o dedo na mancha seca em meu rosto.

– Não, apenas senti vontade de tomar um copo de tinta.

Falando isso, chutei a porta do carro ao abri-la, fazendo com que batesse no traseiro do idiota número dois.

Deixei-o resmungando para trás e segui para o quarto - agora que eu sabia onde estava - do albergue.

– Qual seu problema, Moran? – Jane falou enquanto me seguia – Eu estava te ajudando, oras!

Virei abruptamente fazendo com que ela parasse. Meu rosto estava retorcido em uma figura de raiva.

– Eu não pedi sua ajuda, Jane. Tudo o que pedi foi que ficasse neste quarto, segura e longe de todas as pessoas daquele lugar. Mas a primeira coisa que você faz ao pisar aqui é chamar pessoas estranhas para lhe acompanhar ao local que você deveria desejar apenas distância! Não vê que sou eu quem estava tentando te proteger? – terminei de falar com a respiração entrecortada, enquanto Jane me olhava cautelosa.

Não, eu não queria brigar com ela. Apenas estava irritada pela situação. Eu simplesmente não compreendia a necessidade dela em sair de sua segurança para seguir pelo caminho em que me encontrava. Ainda mais, não me conformava por ela supor que eu poderia requerer ajuda em algum momento.

Jane encarou-me sem palavras por um minuto. Eu, ela e os outros três parados em frente à porta do quarto.

– Se você não está sozinha, porque ainda assim insiste em fazer tudo deste modo? Ajuda pode não ser essencial, Mor, mas todo mundo a deseja por perto.

Olhei em seus olhos. Obviamente discordava dela, mas não queria prolongar aquela discussão sem fundamento, principalmente naquele momento. O único objetivo em minha mente era fugir da cidade o mais rápido possível. O resto era considerado problema secundário.

Abri a porta bruscamente e me encaminhei logo para o banheiro, com minha mochila pendurada nas costas.

– Não seria nada fácil fugir com um gnomo feito você depois de jogar fogo no padre, Jane! – gritei enquanto trocava minhas vestes – Entenda minha situação pelo menos.

Um minuto de silêncio se passou.

– Ela costumar jogar fogo em homens? Porque se a resposta for sim, eu irei automaticamente fugir da presença de vocês – ouvi uma voz em tom sério perguntar, arrisco dizer que continha até mesmo receio naquela frase. Soltei um riso seco com a contradição entre covardia e piada.

Neste momento o único som que se seguiu foi de alguém travando uma batalha de socos contra a porta do banheiro.

– Você o que, Kudrow!? – Jane gritou.

Terminei de vestir-me e limpar brevemente o sangue de meu rosto. Meu nariz estava realmente roxo, mas nada quebrado, nem inchado. Afinal nosso querido padre não possuía tantos talentos.

– Kudrow... Droga – ouvi uma voz repetir levemente em tom de dúvida.

Assim que percebi que Jane havia sido arrastada para longe da porta, abri-a e segui pelo quarto, jogando a roupa de freia em uma lixeira qualquer.

– Bem, tenho negócios a tratar. Partiremos amanhã, Jane. Não me espere acordada.

Olhei para Jane, continuando a ignorar todos os estranhos dentro do quarto, e percebi que ela estava em choque, a boca levemente aberta e o rosto pálido. Aproximei-me dela lentamente, analisando melhor seu rosto. Já estava ficando preocupada e foi então que dei-lhe um tapa na lateral de sua cabeça, fazendo com que ela caísse no chão.

– Sua insana, um abraço estava de bom tamanho – disse indignada enquanto esfregava a cabeça, sabia que a danada estava fazendo teatro – Você queimou o convento?

– Não... – respondi puxando-a pela mão – Eu queimei o padre, o convento foi erro de cálculo. De qualquer forma, todos conseguiriam sair do prédio.

– Você vai ser enforcada em praça pública. Céus! O que vamos fazer? – falou desesperada, andando de um lado a outro.

– Para de drama e me escuta – segurei seus ombros – Primeiro, ainda estou irritada com você, só parei de demonstrar isso porque você fica mais chata quando alguém está irritado e isso me irrita mais, capiche? – falei com um sotaque ridiculamente italiano e ela balançou a cabeça lentamente – Segundo, minhas armas, meu único dinheiro e minha insana mãe estão em minha antiga casa. Passarei lá e resolverei questões diplomáticas, volto aqui e roubo um carro para fugirmos. Acompanhou o plano?

Ela refletiu por um momento.

– Só tenho uma alteração para fazer – disse olhando para as pessoas as quais eu ignorava. Que ousadia da parte dela alterar o que falo! – Já temos meio de transporte, Courteney irá nos oferecer carona até quando precisarmos – terminou sorrindo como se não houvesse problemas o suficiente e colocar mais alguns era de praxe.

– Nem pensar... – franzi minha testa de maneira autoritária.

Jane pretendia retorquir, mas foi interrompida pela ruiva sentada na cama relaxadamente. Possuía cabelos cacheados de cor vinho os quais caíam até o centro de suas costas. Sua feição era leve e decidida, diria que até sensual, sem dúvida a feição de um manipulador sem pudores. Definitivamente, não era alguém que pudesse ser dita de confiança.

– Você quer sinceridade, Srta Kudrow? – perguntou levantando-se suavemente e indo parar ao lado de Jane.

– É bom para variar, Srta a qual não me interesso.

– Tão ácida... – estalou os lábios – Posso ser útil em muitas coisas Kudrow, uma delas é estar a favor de quem preciso. Posso saber fingir, mas não sou traidora e jamais faria isso com a Jane. Sei pagar de maneira honesta e em diferentes moedas. E, pelo que julgo de sua personalidade, você é formada na área das soluções agressivas, creio que minha presença não seria de todo desagradável quanto você pensa, Kudrow, o que forma um bom bando, são suas distintas idiossincrasias. Se você é tão esperta quanto é uma boa fugitiva, saberá que é verdade – encarou-me intensamente enquanto eu analisava suas palavras.

Eu não podia negar o que achava. Ela sabia manipular seus argumentos, mesmo os mais verdadeiros. Além que sua intensidade não me desagradava o bastante para querer mantê-la em uma distância segura. Gostava de raridades, e mulheres ativas era uma delas. Eu ficaria de vigília, em todo caso. Algo me dizia que Jane não me permitiria deixá-la para trás e, confesso que, meu cansaço mental atingiu-me de modo perturbador naquela noite.

– Você não me desagrada – falei simplesmente e percebi que a aceitação foi interpretada corretamente – Porém não digo o mesmo dos seus mascotes.

Courteney riu enquanto os dois protestaram entediados.

– Nisso concordamos. São meus fardos, assim como Jane é para você.

– Ok, chega de conversar antes que vocês se dêem bem demais e eu acabo tendo que chutar o traseiro de alguém – Jane disse cruzando os braços e sentando-se na cama.

Encarei-a indignada. Estava envolvendo-me com estranhos para agradá-la e isso estava aos poucos me incomodando. Mas o máximo que poderia fazer era roubar o carro deles caso aquela peculiar parceria não acabasse bem. Eu não tinha muito mais o que perder aquela altura.

– Que seja... – crispei meus lábios em desgosto e me virei para os dois imbecis presentes no quarto.

E foi, infelizmente, neste momento que reconheci aquele rosto entediado.

Minha boca abriu levemente, enquanto lembranças de uma péssima adolescência invadiam minha mente.

– Kevin Crane. – Falei lentamente, saboreando o rancor contido naquele nome.

Ele apenas sorriu amarelo enquanto passava uma mão em seu pescoço.

– Que coincidência, não?

Analisei bem a pessoa a minha frente, sua feição e o contraste de seus cabelos negros com seus olhos âmbar, sua postura prepotente, a mesma de sempre, e seu olhar capaz de expressar exatamente o que pensava. Naquele momento eu podia julgar ver constrangimento e, até mesmo, culpa.

– O que você nomeou como coincidência, eu nomeio como minha desgraça particular – franzi minha testa em desgosto.

– Olha, sei o que você está pensando, mas já faz muito tempo e...

– Sabe o que estou pensando? – perguntei ácida – Você nunca soube, Crane. Poupe-me dessas emoções de reencontro desagradável, pois sabe que você não era uma prioridade em minha lista de quem devo matar. Tudo o que eu queria era não olhar mais para sua cara.

– Vamos lá – disse exasperado – Não seja infantil. Quantos anos se passaram? Três, quatro?

Cerrei meus punhos ao lado de meu corpo. Não, a capacidade de esquecer não era algo que se encaixasse em minha essência humana e o que mais me atrapalhava eram as lembranças, eram minha carga negativa a ser suportava e abandoná-la não era uma opção.

– Quatro anos desde o dia em que você me delatou. Três anos desde o dia em que devia ter me casado por sua culpa e tudo que você fez para se redimir foi fugir! Por sua culpa Rudorff deixou de confiar em mim! – elevei meu tom em toda a frustração que sentia.

A confiança de meu pai era tudo o que eu possuía. De minha família nada restara, um caos se instalara desde os primeiros anos de sua formação e a única pessoa consciente pela qual eu amadurecia era meu pai.

Jane, que até o momento permanecera calada apenas observando a troca de palavras entre ambos, pousou a mão em meu ombro. Virei para ela finalmente parando de encarar o rosto que agora me enchia de fúria.

– Moran... Você já quase se casou? – disse em um misto de deboche e incredulidade, prestes a formar um sorriso em seu rosto.

Olhei descrente para ela.

– Chega. Tenho mais o que fazer – tirei sua mão de meu ombro bruscamente – Não farei você escolher, Courteney, pois seria injusto, mas não irei viajar com pessoas as quais não me agradam. E Jane, você é capaz de decidir com quem seguir, não precisa mais de mim. Sinto muito, mas esta é uma péssima parceria.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Indômitos" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.