Herança escrita por Janus


Capítulo 68
Capítulo 68




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     A tarde chegava ao fim no dia seguinte a grande invasão de sombras, como o dia anterior já estava sendo chamado. Os adolescentes que tinham ido para as escolas já tinham retornado as suas casas, de sorte que apenas as crianças que ficavam em período integral ainda estavam estudando.
     Entre as que retornaram, estavam as sailors lunares. Algumas foram escolhidas pelos pais para executarem algumas tarefas e aprendizado sobre suas funções, outras acompanhavam os senshi mais experientes pela cidade procurando pistas da sailor Urano.
     A margem disto estavam os visitantes da cidade, a princesa do Reino do Norte e seus acompanhantes. Ela por estar ali representando o seu povo – o que já impossibilitava que pudesse participar das buscas, pois tinha sua própria missão ali – e os outros dois porque precisavam de permissão de seus pais para isso, e eles não a forneceram, dizendo que apenas se as sailors senshi pedissem. Assim ficaram o dia inteiro apenas conversando com os pais e acompanhando as notícias, sendo que ao final da tarde foram ao castelo verificar se já tinham alguma resposta para o pedido que Sumire tinha levado a rainha.
     Estavam aguardando serem atendidos por alguém. Mal tinham chegado, e já tinham se envolvido em uma invasão, viram seus primos atacados, levaram alguns puxões de orelhas por "interferirem", mal trataram do principal motivo de terem ido e nem puderam aproveitar a noite na cidade, uma vez que ela ficou em alerta pela invasão. E tudo isso no primeiro dia.
     E agora no segundo dia em Tóquio de Cristal, Sumire aguardava sentada de forma confortável e bem quieta em um dos sofás do grande salão utilizado para recepcionar visitantes diplomáticos. Ela preferia estar visitando sua prima, ou ajudando a localizar a tia. Arashi estava ao seu lado, com o braço em sua cintura, e Maya observava a cidade pela grande janela que existia ali.
     Não acreditava em como uma simples missão para solicitar informações sobre o paradeiro de uma criança youma poderia acabar em tudo isso. Bom, tinha falado com sua mãe sobre o que ocorrera na véspera, e esta disse para não interferir caso não fosse solicitada, mas logicamente fornecer informações se as possuísse.
     Já estavam ali há pelo menos trinta minutos aguardando a rainha recepcioná-los para lhes dizer se tinham alguma informação sobre o jovem youma desaparecido. Considerando que a cidade também estava ainda em estado de atenção e que estavam todos mais preocupados em localizar a sailor Urano, ela duvidava que houvesse algum progresso, ou sequer que a rainha lembrara de que tinha visitas agora.
     Ela recostou-se um pouco mais no sofá e fechou os olhos, quando ouviu passos se aproximando e o final de uma pergunta.
     - ... naves espaciais? – ela já tinha ouvido aquela voz no dia anterior.
     - Ainda não, filha – foi a resposta, e esta voz ela conhecia, era da sailor Venus – não acho que precise aprender a pilotar uma agora.
     Como que para confirmar, duas sailors entraram pelo salão. Uma era a sailor Venus e a outra tinha saias rosas. Não se lembrava quem seria, mas sabia que era uma lunar. Bom, se foi chamada de filha, só podia ser a Rita.
     - Ho – murmurou sailor Venus um pouco surpresa – boa tarde princesa. Eu... confesso que ainda não verifiquei se há alguma informação em nossos registros sobre o youma.
     - Eu já imaginava isso sailor Venus – respondeu ela um pouco enfadada – vocês estão muito ocupadas com outras coisas.
     - Informação sobre um youma? – perguntou a outra sailor.
     - Mais tarde Miranda – respondeu ela. Então aquela era a sailor Miranda – Sumire é a princesa do Reino do Norte e veio aqui com um pedido oficial.
     - Filha da rainha Rika? – exclamou ela olhando para Sumire – prazer, eu sou sailor Miranda.
     - Encantada – sorriu ela vendo que a mãe da sailor estava um pouco incomodada por ela não ficar quieta.
     - Bom – continuou Venus tentando cortar a filha antes que ela fizesse alguma desfeita – vou verificar agora se alguma informação foi obtida, mas se ele estiver oculto por aqui, provavelmente não teremos nada.
     - Um youma oculto? Escondido em Tóquio de Cristal? – começou a jovem sailor com o dedo na boca.
     - Agora não Miranda, se por acaso for decidido que você deve se envolver, nós...
     - Eu conheci um ontem – continuou ela ignorando a mãe - tinha dentes grandes e pelos no rosto e disse que estava aqui escondido. Também ficou dizendo que eu tenho um brilho laranja que não posso ver e ficou me chamando de venusiana o tempo todo. Acho que o nome dele era Demétrio.
     Sailor Venus ficou com a boca aberta e Sumire, Maya e Arashi olharam espantados para a jovem sailor, o que a deixou um tanto encabulada.
     - Hã... – ela olhou para suas roupas, ajeitando a sua saia – minha roupa está suja?
     - Não – Sumire começou a sorrir – você apenas acabou de dizer que encontrou o youma que estávamos procurando.
     - E porque não disseram que estavam procurando ele? Opa... ele disse que não queria ser achado. Mas não sei porque...
     - Você não sabe onde ele esta escondido, sabe? – perguntou sailor Venus.
     - Sim, na casa de um amigo.
     - E... sabe onde mora esse amigo?
     - Não – disse ela simplesmente.
     Maya olhou para o chão e maneou a cabeça. Pelo jeito, a venusiana era meio desligada como Ishtar. Devia ser mal de família, pois não acreditava que uma raça inteira poderia ser assim.
     - Então não sabe onde ele está... – continuou Venus.
     - Sei sim, ele está com um amigo. Eu não sei é onde o amigo dele mora.
     Venus apertou os lábios e olhou para o lado.
     - E tem alguma idéia de como localizá-lo? – Venus parecia impaciente pela filha ainda não ter percebido que na verdade não sabia onde estaria o youma.
     - Claro, é só ficar zanzando pelo local onde o vi da primeira vez que cedo ou tarde vou cruzar com ele de novo. Só preciso de um identificador de holograma. Quando achar um youma camuflado que não estiver registrado, deve ser ele.
     Venus abriu levemente a boca, e Maya olhou impressionada para a jovem sailor. Talvez aquela venusiana não fosse assim tão distraída quanto pensava.
     - Sailor Venus – começou Sumire – sei que tem outras prioridades no momento. Assim eu gostaria de poder, com a sua permissão logicamente, me incumbir dessa tarefa.
     A sailor cruzou os braços e ficou pensando por alguns minutos. Obviamente não estava muito disposta a deixar uma representante de um outro reino executar uma tarefa que não era dela. Sua missão era a de efetuar uma solicitação diplomática para tentar localizar um youma desaparecido, não procurar pessoalmente pelo youma. Sumire aguardava pacientemente ela dar uma desculpa qualquer de que não poderia permitir isso, ou que deveria consultar a sua mãe, ou qualquer coisa para ela não fazer nada de excepcional em Tóquio de Cristal.
     Mas a resposta dela foi tão inesperada quanto decepcionante.
     - Princesa – começou ela – não creio que seja correto para a sua posição e principalmente pelo motivo de estar aqui atuar diretamente no assunto – sabia que iria dizer isso – no entanto, estou realmente interessada em utilizar todos os recursos que temos para localizar a sailor Urano. Assim, eu irei designar minha filha e aceitar que Maya possa auxiliá-la, caso isso esteja de seu agrado.
     Maya ficou com os olhos brilhando e com um grande sorriso, ao passo que Sumire estava com os seus arregalados. Estava impressionada porque sailor Venus aceitou sua oferta de auxilio, mas decepcionada e irritada por preferir que Maya – Maya? – auxiliasse sailor Miranda na tarefa.
     - Porque Maya? – perguntou quase sem pensar.
     - Ao que me consta, ela apenas está acompanhando o irmão, não está em visita oficial e não irá ocorrer nenhum tipo de incidente diplomático se a mesma atuar por aqui. Além disso a tia dela pode assumir a responsabilidade pela mesma.
     - Porque não eu? – disse Arashi claramente decepcionado – Estou na mesma situação que minha irmã e tenho mais experiência.
     - Justamente por isso – disse ela – sua irmã tem menos experiência que você. Que melhor oportunidade para ela obter mais um pouco com uma tarefa simples de localizar alguém? Além disso, não acredito que seja uma tarefa perigosa para ela ou para minha filha.
     Mas que droga! Ela queria ir. E agora tinha de deixar Maya se divertir em uma missão oficial em Tóquio de Cristal. Tudo bem que era uma missão chata – ficar esperando o youma aparecer – mas era algo melhor a fazer do que ficar ali simplesmente sentada esperando respostas.
     - Bom... não vejo porque não, se o irmão dela aprovar... – e olhou para Arashi que já trincava os dentes antecipando o que iria ocorrer.
     - Deixa mano, vai.. por favor... por favor... – insistia Maya – nunca tive uma missão e as coisas na fazenda são bem paradas.. vai.. deixa...
     - Tudo bem irmãzinha – disse ele – você pode ajudar, mas deve seguir as ordens de sailor Venus, entendido?
     - Sim senhor – disse ela batendo continência e explodindo felicidade – Júpiter Pirate Knight júnior se apresentando, sailor Venus.
     - Junior? - murmurou Arashi.
     - Posso brincar, não posso?
     - Bem Miranda – disse Venus – amanhã você pode ir com Maya procurar o youma.
     - Porque não hoje? – disse Miranda bruscamente – Pelos uniformes que vi com os colegas dele, ele deve ter aula em período integral, e não deve ter saído ainda da escola, se é que foi para a escola hoje.
     Ela olhou para o lado, pensativa antes de responder.
     - Muito bem, vá até Orion e veja se ele tem algo para identificar hologramas. Maya, pode ir com ela e a acompanhe, e por favor... – ela a olhou séria – vocês apenas vão procurar pelo youma. Qualquer outra coisa que ocorra, entrem em contato.
     - Sim senhora – disse Maya já saltitando para ficar ao lado da sailor Miranda. Conversaram um pouco em voz baixa e ambas saíram por um dos corredores.
     - Bem princesa, acredito que para o momento, o sua solicitação esteja bem encaminhada.
     - Sem dúvida – respondeu ela lentamente – vou informar a minha mãe. Mas acho que devemos também informar os pais de Maya.
     - Pedirei para Lita fazer isso – disse ela – se me derem licença, irei retornar a meus afazeres.
     Após uma mesura que foi correspondida por Sumire, a sailor saiu da sala, deixando-a sozinha ali, e muito desgostosa.
     - Querida – começou Arashi assim que voltaram a ficar sós – eu...
     - NEM UMA PALAVRA – disse ela no melhor tom de bronca que tinha na hora.
     - Mas...
     - Que idéia foi essa de deixar Maya ir com Miranda? Você é quem devia ter ido. Sabe o que vou ouvir agora da minha mãe? Ou pior! Do meu pai?
     - Eu realmente não tinha uma boa desculpa para não deixa-la ir – disse ele – e nem mesmo você.
     Ela bufou e cruzou os braços, irritada e nervosa.
     - Não acredito nisso... agora vou ficar ouvindo um monte da Kaede por isso. Não dá para acreditar! Maya... convidada para participar de uma missão pela sailor Venus?
     - Não é assim uma grande missão...
     - Mas é uma missão – insistiu ela – séculos nos mantendo longe, achando que só vamos trazer dores de cabeça se fizéssemos algo por aqui e... oras.. esqueça – murmurou ela – tenho certeza que é porque talvez ela possa ser a substituta da sailor Plutão. Essa "queridinha" da sua irmã...
     - Amor..
     - Vamos embora – disse ela pondo-se de pé e já caminhando em direção a saída – tenho que falar com minha mãe e informá-la da situação. Só espero que aquelas duas não encontrem nada ainda hoje.
     Sem dizer nada, Arashi a seguiu deixando o grande salão vazio novamente.
    

-x-

 

     - Não Miranda, esse botão aqui – dizia Orion pela quarta vez explicando como o dispositivo funcionava.
     - Assim?
     - Isso! – ele quase bateu palmas quando ela finalmente entendeu como utilizar o pequeno aparelho. Bastava apertar o botão central e apontar para a pessoa. Se ela estivesse com um holograma, iria acender uma luz verde. Em seguida ela deveria pressionar o botão da direita para que o aparelho identificasse se o alvo seria ou não um youma, e finalmente o da esquerda iria entrar em contato com a central de registros e verificar se o youma estava registrado ou não, acendendo uma luz vermelha se não estivesse.
     Tinha levado apenas alguns minutos para configurar o seu scanner portátil para executar essas funções – ainda bem que ele costumava criar muitas coisas sem definições específicas no projeto, permitindo que fossem programadas – mas quase meia hora para explicar para a sailor Miranda como utilizar – uma pena não haver meios de configurar para que tudo fosse feito com apenas um botão. Se tivesse mais tempo, poderia configurar o visor dela para fazer tudo isso. Mas seu tempo era escasso. Ainda tinha que construir mais daqueles pequenos robôs flutuadores de busca, para tentar localizar a sailor Urano pelo sinal da bateria do dispositivo que ela estava usando para ninguém poder sentir sua semente estelar ou energia.
     Ainda ia demorar mais um dia até o dispositivo ficar sem energia, e todos queriam localizá-la antes deste prazo. Imaginavam que os seqüestradores perceberiam a mudança e talvez a levassem para um local ainda mais difícil de localizar.
     - Certo Orion – dizia Maya – mais alguma coisa?
     - Hum?
     - Tem algum para mim? – ela deu um doce sorriso.
     - Não, desculpe, só tinha esse aqui. Eu uso este para analisar se meus aparelhos estão com vazamento na bateria de energia.
     - Tudo bem – sua desilusão era evidente – bem sailor Miranda, vamos indo?
     - Aonde? – perguntou ela curiosa.
     - Oras... procurar o youma!
     - É mesmo – ela sorriu – porque não disse logo?
     Ela apenas apertou os lábios e após agarrar o seu cotovelo a puxou para fora da sala. Orion segurou uma risada com a cena. Rita podia ser muito inteligente algumas vezes, mas era sempre uma completa desligada.
     Agora ele estava sozinho novamente, e podia retornar ao seu trabalho. Primeiro acessou seu visor para examinar o que as unidades que tinha enviado desde a manhã daquele dia tinham descoberto. Não ficou surpreso de não terem identificado Haruka, mas ficou satisfeito por ver que mais de noventa por cento da cidade já tinha sido esquadrinhada, o que deixava menos espaço para procurar agora. As outras sailors procuravam nas redondezas da cidade, e ele examinava todo o interior desta. Confirmando que ela não estava ali, ao menos sabiam onde não mais procurar.
     Havia também um adicional. Era verdade que os pequenos robôs que ele enviara para examinar a cidade tinham como primeiro objetivo identificar o sinal de energia do dispositivo que mascarava a presença da senshi de Urano, mas eles também eram alarmes para qualquer coisa – entenda-se aquelas criaturas sombrias – estranha que fosse detectada. Ele apostava que estavam utilizando algum dispositivo de origem nemesiana – isso explicava e muito o portal negro que foi visto pela primeira vez na lua, e como aquelas coisas aparentemente apareceram do nada por toda a cidade. Alguns poucos relatos informavam sobre "terem saído de um buraco negro no chão". Se sua pesquisa estava correta, caso um portal deste tipo fosse utilizado novamente nas proximidades de uma destas unidades, eles receberiam um aviso.
     Levantou-se e foi até o seu armário pegar mais placas metálicas para dobrar e deixar no formato oval daqueles pequenos robôs. Fazendo mais vinte destes teria o bastante para terem um excelente sistema de alarme integrado a defesa da cidade.
     Assim que se virou em direção ao armário, ouviu um sinal vindo de seu visor. Quando atendeu a chamada viu que era Setsuna contatando-o.
     - Sim? – disse ele simplesmente.
     "- Orion, quantos robôs já estão pela cidade? Ou melhor, qual a área da cidade que os robôs estão observando?"
     - Cerca de noventa por cento – respondeu ele um pouco curioso.
     "- Você pode adicionar outro tipo de busca para eles? Tipo... uma pessoa?"
     - Sim – respondeu após pensar um pouco – mas eles já estão programados para identificar Haruka ou a sailor Urano.
     "- Não é ela quem eu quero localizar – a voz dela agora estava mais lenta, demonstrando preocupação – mas os generais que já conhecemos."
     Ele ficou um pouco pensativo. Não tinham nenhuma imagem dos generais para poder programar os robôs para os identificarem.
     - Setsuna, eu precisaria de uma imagem deles para isso. E se eles estiverem disfarçados os robôs não poderão identificá-los...
     "- Eu tenho uma imagem, ou melhor, a sailor Titã acabou de passar duas para mim que ela fez com o seu visor."
     Ele ficou mudo por alguns instantes. Titã teve presença de espírito para esquadrinhar os generais assim que os viu? Aquela menina era incrível!
     - Bom, se é assim, me envie os arquivos e eu programo os robôs para avisarem se os localizarem também.
     "- Estou enviando – disse ela – e Orion... eu estou preocupada. Faria mais sentido se eles tivessem capturado uma das crianças."
     - Eu sei – respondeu ele – fiquei pensando nisso desde ontem. Eu realmente não imagino como sailor Urano pode ser mais útil para eles. A não ser que não estivessem querendo um refém, mas outra coisa.
     "- É isso que está me preocupando. Bom, vejo você mais tarde, um beijo."
     Ele ouviu um estalo de um beijo pouco antes da comunicação se encerrar. Logo em seguida seu visor recebeu as imagens que Titã tinha feito e ele já as programou nos robôs. Pelo menos agora o inimigo tinha um rosto. Ou ao menos dois rostos.
    

-x-

 

     Ela nunca teria imaginado que tal tipo de tortura era possível. Não sabia mais quantas vezes tinha vivenciado a morte de sua filha nas mais variadas e impensáveis situações.
     Não... não impensáveis.
     Era isso o que realmente deixava-a apavorada... todas as vezes, todas as cenas que tinha sido forçada a vivenciar tinham algo em comum: Todas eram possíveis de terem acontecido. Todas!
     Um atropelamento, um assassinato, um acidente, uma doença, uma queda... todas as formas normais e até banais de morte ela tinha presenciado ocorrer com a filha, e nada pôde fazer para evitar. E em todas, todas às vezes ela não foi capaz de ver que era uma ilusão.
     Não conseguia imaginar como ainda podia ter lágrimas, mas ela as tinha. Seus olhos estavam mareados a cada vez que aquela maldita a forçava a ter uma daquelas ilusões. Em todas as vezes ela se lembrava exatamente do que tinha ocorrido, e em todas as vezes suas emoções foram reais.
     Todas as vezes ela viu sua filha morrer.
     Todas as vezes ela chorou por ela.
     Por Anne!
     Tudo o que ela queria era arrancar a cabeça daquela mulher. Nada lhe daria mais satisfação do que isso. Não importava que tudo tinha sido falso. Para ela, para suas emoções, para a sua mente enquanto aquilo ocorria era real. Sua perda era real, sua dor no coração era real, sua tristeza era real. Realmente aquela era a pior forma de tortura ao qual tinha sido submetida. E aparentemente iria continuar. Há quanto tempo estava ali sendo forçada a viver aquelas imagens? Horas? Ou já se teriam passado dias?
     Levantou a cabeça e a viu ali a sua frente, a observando com o rosto inexpressivo e com as mãos na cintura. Já fazia alguns minutos desde que sua ultima ilusão tinha acabado e estava imaginando se a mesma estava cansada ou se estava sem idéias.
     Surgiu uma sombra na porta que tinha ficado entreaberta desde que àquela mulher tinha entrado, e logo uma outra mulher estava lá dentro. A mesma que a tinha capturado antes. Vagarosamente remexeu-se causando leves estalos nas correntes que a prendiam ao teto e ao piso, sentindo agulhadas terríveis de dor no processo. Estava indefesa e a mercê delas. Sem chance de fazer algo a respeito.
     - E então? – disse a mulher parando defronte a ela, com um olhar curioso e critico – ela já está pronta?
     - Esqueça – disse a outra com um certo tom de deboche – não há como fazê-la matar a filha. Não importa o quanto esta possa ser ameaçadora. Ela nunca a matará ou fará algo para feri-la. Descobri isso na primeira imersão que fiz com ela.
     - E o que esteve fazendo desde ontem? – questionou a outra irritada – estava apenas se divertindo?
     Desde ontem? Já fazia um dia que estava sendo torturada com aquelas ilusões?
     - Bem – ela riu-se um pouco – sim. Mas também estava verificando algo. Essa sailor faria qualquer coisa pela filha, qualquer coisa mesmo – enfatizou – assim, se a capturarmos, ela irá fazer o que pedirmos para salva-la.
     Ficou horrorizada com o que ouviu. Iriam agora capturar Anne para forçá-la a obedecê-los? E porque precisavam dela afinal?
     A outra ficou pensativa por algum tempo, avaliando a informação recebida.
     - Aquela criança é tudo para ela – continuou a outra – em uma das imersões ela atacou a própria rainha para salva-la.
     Não se lembrava disto agora, mas considerando todas as ilusões que tinha vivenciado isto bem que era possível. De fato estava se lembrando vagamente de ter atacado sua soberana por alguma razão. Mas não conseguia orientar sua memória para saber se tinha sido durante as ilusões ou se era outra situação mais antiga.
     - Não temos muito tempo – disse por fim a outra mulher – o ideal seria ela – indicou a cativa – atacar a filha e deixar os defensores confusos sobre o que fazer enquanto agíamos. Capturar sua filha e ordená-la a atacar um deles sem motivo lógico não teria o mesmo efeito. Precisamos de uma distração grande na cidade, e tem de ser eminente. Mas vamos conversar longe dela – e sem dizer mais nada se afastou saindo pela porta, sendo seguida pela outra mulher que a fechou e a deixou na escuridão novamente.
     Seria outra ilusão criada por aquela maldita? Não... desta vez tinha certeza. Em nenhuma das outras vezes ela sequer pensou que poderia ser uma ilusão. Agora contudo ela estava ali, lembrando-se de tudo o que tinha ocorrido, totalmente imobilizada e indefesa.
     Testou novamente as suas amarras e percebeu dolorosamente que não havia meios de escapar. Os músculos de seus braços estavam praticamente se recusando a se mover, e o mesmo estava ocorrendo com as suas pernas. Tudo o que conseguia eram agulhadas de dor e desconforto para as costas, bem como uma maior dificuldade para respirar. Mas havia algo a seu favor desta vez. Pela primeira vez desde que tinha sido capturada estava sozinha e com possibilidade de pensar no que fazer a respeito.
     Sabia que não havia meios de escapar, e imobilizada daquela forma não teria forma de enviar qualquer aviso. Ou teria?
     Se conseguisse acionar o seu visor poderia tentar um contato, mas não tinha como ativá-lo. Que idiota fora em não aceitar um daqueles novos que Orion estava fazendo para aceitar comandos mentais. Forçou a cabeça para baixo, tentando visualizar sua cintura. Aquele dispositivo que estava usando para não ser detectada por Anne ainda devia estar lá. Enquanto estivesse ativo, nem Anne ou Sohar poderiam achá-la.
     Relaxou os músculos do pescoço e evitou de soltar grunhidos de dor pelo protesto que sua espinha e seus ombros fizeram após ter movido a cabeça. E ainda fora inútil. O dispositivo era pequeno, basicamente uma pequena caixa presa a sua roupa. Por mais que se contorcesse não conseguiu vê-lo por sobre os seus seios.
     O que mais poderia fazer para dar um sinal de onde estava? Podia apenas gritar e, logicamente, alguém iria vir bater nela para ficar quieta ou até amordaçá-la para ter algum sossego. Duvidava que estivesse próxima a algo ou alguém que pudesse ouvir seus gritos.
     Como poderia tirar aquele dispositivo de sua cintura? Não tinha caído quando lutou contra a mulher, e nem iria cair facilmente. Orion sabia fazer bem seus brinquedos. Na verdade, bem demais...
     Fechou os olhos e tentou relaxar. Sabia que estava indefesa. Indefesa e a mercê do que quer que seus captores pretendiam fazer. Aquela mulher... aquela maldita comentou de seqüestrarem sua filha... para forçá-la a obedecê-los. E o pior... ela sabia que provavelmente iria obedecer. Faria qualquer coisa pela sua filha. Qualquer coisa pela doce criança que a tinha conquistado desde que era um bebe chorão e que adorava rir quando a balançavam. Por mais dura que tenha agido para com ela, por mais que a criticasse e desse sermões ou fosse exigente com a sua conduta ou obrigações, amava aquela menina como uma mãe amaria uma filha. Faria qualquer coisa para protegê-la.
     A única chance que tinha seria achar uma forma de desativar aquele dispositivo e esperar que Sohar a encontrasse. Sabia que enquanto fosse prisioneira deles eles tentariam usá-la de alguma forma. Antes, ela tentaria evitar isso de qualquer forma, mesmo que precisasse se sacrificar para isso. Agora contudo se o fizesse, Anne ficaria a mercê deles.
     Tinha perdido a liberdade para se sacrificar em prol de um bem maior. Agora seu maior bem era sua filha. A que tinha metade dos genes herdada dela. Não fazia diferença que tal coisa tinha sido engendrada por um inimigo cruel e até inesperado. Na verdade, sempre seria grata a Narthale - o maior inimigo que já tinham enfrentado - pela existência de Anne.
     Rangeu os dentes. A única coisa que podia fazer seria reverter a transformação, mas isso não faria o dispositivo sumir. Apenas a faria retornar as suas roupas antes de ter se transformado. Somente se o dispositivo estivesse o seu corpo quanto se transformasse era que o mesmo iria desaparecer...
     Por um instante arregalou os olhos. Como tinha sido burra! Era isso que precisava fazer... Voltar ao normal e se transformar novamente. Só esperava que Sohar a localizasse antes de Anne. Conhecia bem a sua filha para imaginar que a mesma viria correndo assim que a sentisse. Mas também a conhecia o suficiente para saber que ela iria avisar alguém caso isso ocorresse. Mas sem duvida ela não iria esperar apoio antes de se aventurar a salva-la.
     O mesmo que ela própria faria caso a situação fosse inversa


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