Orleans escrita por MarianaCamara


Capítulo 21
Capítulo 20 - I get to love you




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/430081/chapter/21

Algumas informações durante a vida deveriam ser guardadas apenas para si, como certos segredos, manias, mentiras e vergonhas. E eu adicionaria na lista com uma clara seta de neon: “detalhes malucos da família Dalton”, talvez com uma nota de rodapé dando pequenos exemplos práticos para manter qualquer ser humano com um mínimo de juízo a um continente de distância.

Devia bastar.

O problema é que Viola Dalton, conhecida vulgarmente como “Avó”, não tinha esse tipo de opinião. Segundo ela e seus olhos ferinos, Katerina Emily Dalton tinha de saber sobre tudo que rodeou sua pequena, infeliz e manipulada existência até aquele momento estranho e familiar na sala de jantar de pelo menos três gerações de antepassados. Ela ignorava o fato de que sua última frase tinha me acertado como um soco de direita e fazia meu estômago dar voltas e meu cérebro gritar silenciosamente tentando acertar as peças do quebra-cabeça esquisito que tinha o desprazer de chamar de vida.

Não se tratava do escândalo ou da sexualidade do meu outro suposto futuro-ex-noivo, mas a clara realidade de que a imagem do rosto sorridente de cabelos pink não saia de dentro da minha mente. E aquilo só afirmava a sensação que tinha me perseguido durante aquele curto encontro na noite de réveillon.

Não era a toa que havia reconhecido estranhamente aquele homem de bigode lustroso que estava com Max no meio da multidão; eu havia visto aquele rosto mais jovem no retrato que derrubei dentro da casa de Mercedes Fighbright, o homem do casal que entre sorrisos se abraçava naquela moldura. Não tinha dúvidas de que aqueles eram os avós paternos dele, claramente os Davison.

— Foi por conta desse pequeno problema contido que decidimos acatar a decisão de sua mãe e como não havia coisa melhor, nem outra opção a vista, tive que aturar o pai do jovem e suas dezenas de aporrinhes e chateações com essa bendita junção de empresas. Ainda mais recentemente, depois da sua negativa e das novidades da Inglaterra.

Uma parte de tudo que Viola estava dizendo passou despercebida dos meus ouvidos até a palavra “Inglaterra”, que foi quando nossos olhos se encontraram e tive uma pequena turbulência do outro lado do estômago com o calafrio que percorreu minhas costas assim que percebi o sorriso estranho no canto da boca de minha avó.

— Novidades?

— Sobre sua viagem. Soube que passou as festas na Europa, mais precisamente em uma cidade nortenha chamada York. Estou errada? Quer acrescentar algo, Katerina?

— Não. Pelo visto a senhora está bem informada. O Sr. Campbell a deixou a par da minha viagem ou foi meu pai?

Minha dedução fez Viola rir enquanto a porta da sala de jantar foi aberta por Florence junto de um carrinho trazendo um bule quente e xícaras para o chá de gengibre, mas não trocamos mais palavras até a governanta nos servir e sair silenciosamente por onde entrou. Então era com minha avó que o pai de Bruce havia falado naquela tarde e se informado sobre toda a situação que estava acontecendo com meu pai e a família.

—Você não é tão boba quanto eu pensei. Pode ser que você ainda me surpreenda, Katerina. Foi George Campbell que desprendeu um bom tempo e energia da minha tarde de véspera de natal, balbuciando, resmungando e amaldiçoando as suas mais notáveis decisões. Pelo visto você decidiu escolher outro rapaz, exatamente um desafeto da família Campbell. Esperta. Na realidade, não esperava que você fosse tão ardilosa assim.

— “Ardilosa”? A senhora está pensando que eu fiz algo de propósito?

— E não fez? — ela me consultou por sobre a xícara entre um gole e outro.

— Mas é claro que não. Viajei para a Inglaterra por vontade própria e se acabei no meio dessa contenda ridícula, foi inicialmente por culpa de vocês. Foi uma imensa coincidência se conheci o Sr. Valois e...

— Valois?

Viola pousou o chá sobre a mesa e suas sobrancelhas se apertaram no topo do nariz. Nem era preciso ser muito esperta pra perceber que alguma coisa despertou o interesse dela.

— Valois D’Orleans. O Sr. Campbell não contou sobre eles? O desafeto da família?

— O assunto não me despertou curiosidade o bastante para sair perguntando sobre nomes e endereços, Katerina. Mas eu conheço um pouco sobre os Valois D’Orleans e a desgraça que se abateu sobre eles. Posso não estar mais ativa a frente dos negócios, contudo me mantenho muito bem informada sobre tudo que ocorre em nosso meio, principalmente algo que ameaçou o patrimônio centenário de uma linhagem reconhecida. Essa família possuiu uma longa participação no ramo têxtil inglês há séculos, ou ao menos era assim.

— Então a senhora sabe sobre o acidente... Foi o motivo da briga entre os Campbell e os Valois.

Não me senti a vontade para falar mais sobre aquele assunto com minha avó. Parecia muito intimo, como um segredo de Leo que estava agora contando para uma pessoa estranha, esperando qualquer resposta. Eu sabia que não podia expor toda a dor que os Valois haviam passado, nem as provas que ultrapassaram após toda aquela tragédia, mas Viola parecia envolta em pensamentos por um instante, talvez pesando alguma coisa dentro do arquivo de sua mente. Como ela se manteve quieta, resolvi continuar.

— Os filhos de George Campbell estavam presentes naquele acidente e um deles faleceu. A senhora pode imaginar o que isso desencadeou entre as famílias.

— Sim, eu posso imaginar. Uma infelicidade que nada tem a ver conosco. E se você escolheu se relacionar com esse Valois apenas para afrontar a família de seu suposto noivo, só posso achar que os pobres D’Orleans tem uma tendência a gostar dos desastres. — Viola quebrou seu silêncio, os lábios apertados e finos com o esforço que fez para se levantar e caminhar devagar até as largas janelas do cômodo. Consultei o relógio de parede enquanto ela abria uma fresta para o ar frio entrar.  Já havia se passado bem mais do que os dez minutos que ela tinha me dado e meu sangue estava quente, tanto que o vento daquela manhã fria de Nola me atingia mais do que devia.

— Eu não planejei nada disso, Viola. Diferente de vocês que têm planejado minha vida como se eu fosse uma espécie de boneca.— aquilo se soltou como um desabafo contrariado.

Minha vó encheu o peito de ar e se virou para mim com os olhos brilhantes. Eu tinha a chamado pelo primeiro nome e um gatilho despertou-a de seus pensamentos.

— Escute aqui, Katerina...

— Não, a senhora é quem vai me escutar. Eu viajei até aqui com os últimos centavos do meu bolso apenas para ter essa conversa e colocar as coisas a limpo. Não espero que a senhora devolva o emprego do meu pai ou se sensibilize com as minhas palavras ou seja lá o quê, mas quero deixar bem claro que estou cansada disso e não vou mais aturar ou aceitar qualquer Dalton, Campbell ou alguma família maluca que aceite fazer parte desse esquema absurdo de vocês! Eu fui despejada, vigiada, humilhada e tratada como moeda de troca no curto espaço de meses, a senhora não tem a mais vaga ideia do que seja isso.

A respiração de Viola estava suspensa e a minha completamente fora de ritmo. Embora não tivesse movido um músculo para fora da minha cadeira, meu corpo estava correndo uma maratona por conta própria e meu coração estava completamente a beira de um colapso. O olhar estarrecido e furioso da matriarca Dalton era o suficiente para me sentir menor do que comumente já me sentiria, mas naquele instante, ela não conseguiu tanto efeito.

— Você é apenas uma jovem, não sabe nada da vida, não tem o direito de...

— Julgar? O que a senhora sabe da minha vida se nunca participou dela? Ou minha mãe, que tão facilmente entregou o meu futuro em troca de dinheiro? Tradições, valores, negócios; a senhora a detesta tanto, mas para mim são exatamente iguais. Me disse que seus pais fizeram o mesmo por você, assim como seus avós antes deles. Então só posso concluir que a tradição da família é impor a infelicidade e o controle sobre suas mulheres e eu não vou me sujeitar a isso em nome de orgulho algum. Isso acaba aqui.

Empurrei a cadeira e fiquei de pé diante da mesa, minhas mãos tremendo, mas apoiadas na madeira lisa do móvel. Meus olhos e os de Viola brigavam silenciosamente e ignoramos o som do carro que parou diante da casa, assim como a conversa que veio da ampla sala de entrada e seguiu pelo corredor.

— Você é exatamente como seu pai...— ela respirou profundamente e desviou o olhar para a porta da sala de jantar, por onde Florence surgia com suas bochechas rosadas, claramente tentando conter mais alguma visita inesperada.

— Pelo amor de Deus, Florence, me deixe passar! — ecoou a voz masculina no corredor que rapidamente reconheci.

— Sr. Dalton, sua mãe me deu ordens...

— Pro inferno com suas ordens, eu quero falar com a minha filha.

Com um movimento amplo de braços, Kennedy Dalton rompeu o bloqueio da larga governanta e entrou pela sala de jantar com um suspiro ruidoso. O barulho alto de um par de saltos no assoalho de madeira veio logo atrás dele na forma de Adria com sua pior expressão de desgosto usando óculos escuros.

— O elo fraco da família. — Viola completou sua ideia e apanhou o apoio da bengala de madeira para caminhar ao lado da mesa e erguer seu queixo, impondo respeito e silêncio no filho e na empregada. — Kennedy.

— Mãe. Vim buscar a Kate e pelo jeito cheguei a uma boa hora.

Meu pai consultou meu rosto por sobre o ombro de Viola e suas sobrancelhas se ergueram, claramente surpreso. Minhas bochechas deviam estar vermelhas porque sentia elas queimarem, exatamente como as palmas das minhas mãos.

— Oi vó, sentiu saudades? — Adria acenou enquanto se encostava na moldura da porta.

— Adria. Ao certo não tinha planos em fazer uma reunião de família em uma data tão pouco comemorativa como hoje. Mas o jeito é aceitar as agruras que o destino me prega nesta manhã, não é? Pode pegar suas filhas e voltar pela porta da frente, Kennedy. Não temos mais nada o que conversar. Katerina já foi bem clara sobre sua opinião das coisas.

— Ela sabe o que faz, mãe. E você sabe que apoio totalmente a escolha dela.

Foi como se meu pai tivesse dito que havia matado algum homem no caminho e o corpo estava dentro do porta malas do carro. Viola ergueu os ombros e seu rosto ficou tão afetado pela fala de Kennedy que por pouco não conseguia imaginar que estava prestes a voar no pescoço dele por tamanha heresia contra tudo aquilo em que ela acreditava ser o correto. Para uma mulher tão enraizada dentro de limites e crenças tradicionalistas, ver a família ruindo diante dos olhos não era uma experiência que estava prevendo acontecer antes de sua morte.

Não que eu achasse que ela viveria muito tempo, mas vocês entenderam minha ideia.

— Eu sabia que você não tinha pulso suficiente para endireitar sua própria família, mas averbar em alto tom seu apoio a toda essa transgressão bem diante de mim? A audácia das suas filhas claramente contagiou você, Kennedy.

— Oras, mãe... Talvez seja hora de aceitar que os tempos são outros. Não se pode encarcerar o espírito livre de ninguém, menos ainda daqueles que amamos, obrigando nossas ideias sobre elas.

— “Não há torre de pedra ou muralha de aço duro, nem calabouço infecto ou fortes elos que possam resistir à força do espírito” — citei para mim mesma, surpresa em ter lembrado aquele trecho de Júlio César que ali cabia tão bem.

— Shakespeare. — Viola se voltou para mim. Seus ouvidos funcionavam bem, ao contrário de seus joelhos e quadris. Em seguida puxou uma das cadeiras e parecendo cansada da discussão e dos desprazeres daquele encontro, respirou profundamente. — Já basta. Não voltarei atrás em minhas decisões, muito menos quanto a sua colocação, Kennedy.

Imaginei que a chateação do meu pai fosse ficar visível, mas ele sorriu e pareceu muito satisfeito em conseguir fazer isso enquanto acomodava as mãos dentro dos bolsos do blusão jeans que estava usando.

— Eu não me importo. Já passou da minha hora de aprender a viver sem esta família também, não acha, mãe? Só posso agradecer pela oportunidade perfeita.

Ele se aproximou dela, se despediu e beijou o topo de seus curtos cabelos brancos antes de gesticular para mim que era hora de irmos embora. Vi quando ele e Adria voltaram para o corredor passando por Florence e arrumei as xícaras de chá na mesa antes de caminhar para as portas da sala de jantar. Minha avó estava pálida, sua aparência um pouco mais frágil do que naquele momento em que a encontrei na horta.

— Obrigada por ceder seu tempo, Sra. Dalton. — achei que devia agradecer, mesmo com nem tudo saindo como planejado.

A governanta correu para se aproximar de sua patroa, preocupada com sua saúde e sequer me olhou mais uma vez, mesmo quando Viola ergueu a mão para que ela parasse de bajula-la e a deixasse falar.

— Pode me esclarecer uma coisa apenas, Katerina?

— Claro — parei diante do corredor, escutando a buzina do carro de Kennedy me chamando para fora.

— Você deve estar orgulhosa de si mesma agora, mas me responda: está fazendo tudo isso por conta de quê? Sentimento pelo tal rapaz de York?

Uma pequena borboleta se formou no meu estômago e dançou lá dentro, formando um sorriso nos meus lábios.

— A senhora nunca sentiu nada por alguém em toda a vida? Não é possível que nunca amou outra pessoa.

— O sentimento é uma ilusão doce, Katerina. Sua família sempre estará ao seu lado, quanto ao amor... — ela tossiu algumas vezes e esperei que se acalmasse.

— É por isso mesmo que fiz tudo isso. Para ganhar o respeito da minha família e o amor dos membros dela que realmente se importam. Não se trata de barganhar por um homem, Viola. Eu não quero trocar Davisons por Campbells, ou Campbells por Valois; porque eu não quero um noivo. Quero o direito de me apaixonar se eu quiser e se não quiser também. De decidir sobre tudo isso e de não depender de qualquer poder, dinheiro ou tradição para ter a minha felicidade... Então eu fiz tudo isso por mim. Mas um pouco por ele também. Afinal, não é sempre que se tem a sorte de encontrar uma pessoa que tem a tendência de gostar de desastres, principalmente quando se é um.

******

Adria gritou comigo por mais de cinco minutos, contando do momento em que fechei a porta do passageiro e me acomodei dentro do carro do meu pai. Todos os carvalhos e salgueiros passaram do lado de fora, e ela continuava enumerando os bons motivos que tinha para que eu tivesse esperado antes de simplesmente vir sozinha até a casa de nossa avó.

Meu pai apenas sorria, dirigindo com uma pitada de orgulho presa em seus olhos e por fim ergueu a mão para afagar o topo dos meus cabelos e rir alto.

— Vocês viram só a cara da sua avó? É melhor eu ligar para lá depois, não quero que ela tenha um enfarto por nossa causa. Talvez sua tia May possa ir até a casa para fazer um pouco de companhia.

— Ela bem que merecia um enfarto! — Adria alterava a voz chispando no banco de trás entre seus suspiros. — Velha teimosa. Custava ajudar a própria família e facilitar as coisas? Tudo ficaria tão melhor assim, mas não, vamos continuar valendo das tradições empoeiradas dos Dalton.

— Não vamos desejar o mal para ela, Adria. Sua avó vai ter muito que pensar daqui por diante e quanto a você, Ratinha... Estou orgulhoso. Foi preciso coragem para se impor diante de uma pessoa tão difícil como sua avó e você foi forte.

— Essa é a minha princesa! — Adria se debruçou e beijou minha bochecha um monte de vezes, rompendo em uma crise de gargalhadas que logo estávamos compartilhando.

Durante o percurso para longe das plantations e na direção do Garden District, alheia ao falatório dentro do carro, fiquei observando a boa e velha Nova Orleans com novos olhos. Me sentia diferente depois daquela onda de adrenalina.

Me sentia livre e isso era maravilhoso.

Paramos para caminhar pelo French Market, já que Adria queria comprar nozes-pecã a qualquer custo e passamos algum tempo entre todas aquelas barracas cheias de especialidades e produtos frescos, camarões, peixes e morangos, coisa que não me lembrava de fazer desde a infância, com aqueles perfumes e sons misturados, pessoas sorridentes e música pelo ar. Petiscamos tudo que foi possível, até meu pai ficar com os lábios roxos de amoras e decidirmos esticar as pernas para espiar os artesanatos. Pedi um pequeno empréstimo para comprar um agrado para Samantha e as irmãs, saindo dali diretamente para encontrar um bom lugar onde poderíamos descansar de toda a manhã agitada e almoçar em paz.

Kennedy sugeriu uma pequena lanchonete longe da agitação e das filas dos cafés tradicionais como o du Monde e suas dezenas de turistas, um lugarzinho discreto entre as ruas principais onde poderíamos estacionar o carro e conseguir uma mesa sem muito esforço, curtindo o aquecimento que permitia ficarmos com menos blusas do que o lado de fora.

Aproveitei o momento para enviar algumas mensagens para Sam. Imaginava que ela devia ter aproveitado seu primeiro final de ano ao lado de Lex e que as coisas estariam bem calmas, já que não havia maiores notícias nos últimos dias. Adicionei no final das pequenas novidades: “Missão cumprida”.

“Essa é a minha Branquela!”, Sam respondeu minutos depois com uma chuva de figurinhas sorridentes e cornetas de festa acompanhando pela tela. Depois enviou uma foto fofa de Jenny e Tabby com óculos comemorativos do final de ano e uma série de fotos melosas dela com Lex (que eu pessoalmente preferia não ter visto, obrigada).

— Quando você volta para Nova Iorque, princesa? — Adria perguntou assim que suas batatas fritas chegaram à mesa, revezando sua atenção entre o pote de catchup e minha cara ao digitar uma série de razões para Sam não me mandar fotos de casaizinhos alegres no réveillon.

— Amanhã. Meu voo de retorno está marcado pro horário do almoço, então não vai dar pra irmos até o City Park dessa vez, pai. — sabia que ele estava programando algo para o dia seguinte.

— Não se preocupe com isso. Tivemos ótimas horas hoje e uma passagem de ano bem movimentada. Foi muito bom estar com vocês, meninas.

Kennedy sorriu, segurou nossas mãos e logo bebeu um gole enorme do refrigerante de cereja que tinha pedido. Nós sabíamos que ele não queria ficar emotivo, por isso preferia falar pouco e ingerir mais açúcar do que o recomendado.

— Por falar nisso, porque você não comentou que aquele seu amigo de cabelo colorido estava da cidade, Kate? Ele é muito luxuoso, podia ter passado a festa com a gente — a boca cheia de Adria a deixava parecida com um hamster usando perfume Dior, mas eu tinha que acabar com aquela pequena felicidade dela em ter um colega da moda. Era o momento exato de contar sobre Max.

— Eu preciso compartilhar sobre um detalhe com vocês, uma coisa que envolve Max.

— Que Max? — meu pai voltou ao tópico sem entender muito bem do que eu estava começando a falar.

— O amigo da Kate que encontramos na noite da queima da Fleur de Lis, o senhor se lembra? Com os cabelos coloridos e casaco de pele. Nós estávamos com ele quando o senhor nos encontrou no começo da contagem regressiva — Adria gesticulou.

— Não cheguei a ver. Mas o que tem esse Max?

Fiz uma pausa enquanto a garçonete colocava as cestinhas com frango frito e bacon na mesa, perguntando se precisávamos de alguma coisa mais. Dispensamos a pobre moça o mais rápido possível, todos mais interessados no assunto do que na comida.

— Bem, Max é o suposto dono do porão que eu alugava. A avó dele mora na casa acima e eles são parentes da professora do primário que trabalhava no colégio Petersburg comigo: Martha Davison. Foi ela quem me indicou Max porque ele estava alugando o lugar. Eles são primos de segundo grau.

— Ah sim, o neto da sua vizinha. Ele estava preocupado com você naquela noite que marcamos de jantar. Fez todas as ligações para seus amigos só para tentar te localizar. — Kennedy localizou de quem eu falava.

— Ok, mas o que tem isso? — Adria voltou para as batatinhas.

— Max se apresentou com o sobrenome Fighbright e foi meu único contato em Nova Iorque por meses. Acontece que um dia eu fui convidada por ele para ir até a casa da avó, a Sra. Dolores, e vi um porta retratos na casa dela. Havia três pessoas na foto e uma delas era um homem com um bigode bem exclusivo, difícil de esquecer. Esse mesmo homem estava com ele no réveillon.

— Algum parente? Talvez o pai dele — minha irmã adorava mistérios e já estava animada com toda a história, porém Kennedy ficou silencioso, acompanhando o raciocínio.

— Nossa avó me disse que o neto dos Davison que era o primeiro pretendente da minha pequena lista de noivos, não pôde continuar com o acordo matrimonial porque Aida descobriu que ele era gay. Papai disse que o rapaz morava em outro estado com a família materna.

— Seu locador era seu noivo? — Adria falou tão alto que as pessoas das mesas ao redor olharam incomodadas.

— Maxwell Davison... Sim, acho que era esse o nome do rapaz. — Kennedy ruminou, coçando a barba rala do queixo. — Eu bem que notei ter visto alguém conhecido perto de vocês naquela noite. O senhor Davison tem um bigode que parece um escovão pintado de preto embaixo do nariz.

— Exatamente!

— Espera — Adria começou a rir, tampando a boca para terminar de engolir a comida. — Quer dizer que você fugiu de Nola para morar em Nova Iorque no porão da casa da avó do seu primeiro noivo prometido e ninguém sabia disso? Impossível, essas coisas não acontecem assim!

— É nesse ponto que eu queria chegar. Maxwell sabia quem eu era. Depois de ter perdido o apartamento, eu voltei à casa da Sra. Fighbright para pedir um contato para implorar o porão de volta ao Max, mas Dolores estava hospitalizada. Quando fui fazer uma visita no hospital, ela me fez perguntas que dificilmente uma vizinha distante saberia fazer. Sobre meu casamento, o apartamento, sobre os Campbell...

As sobrancelhas de Adria quase colaram no começo do cabelo e meu pai estava cobrindo a boca com uma mão, os óculos quase caindo da ponta do seu nariz. Pareciam espectadores de um filme de horror sangrento.

— Maxwell é o único herdeiro da Sra. Fighbright e estava a chantageando para que ela pudesse continuar vivendo naquela casa. Por isso convenceu a mulher a me vigiar, dizendo que um parente meu queria notícias para se certificar de que eu estava bem.

— Aida ? — os dois falaram juntos no mesmo tom de incredulidade.

— Viola não mandaria um rapaz envolvido em um “escândalo” para me vigiar. Se ela estivesse me monitorando, já teria mandando o papai para fora da empresa há meses. O senhor nunca faria isso...

— Jamais! — Kennedy se exaltou e um velho na mesa ao lado fez um pedido de silêncio que nos obrigou a baixar a voz.

— Eu sei que não. Só consegui pensar nela desde que descobri. Nossa querida mãe pagou Maxwell Davison para mantê-la informada sobre mim e com certeza a minha mudança para o apartamento foi o que motivou seu segundo pedido de separação para conseguir o imóvel de volta. E para ter certeza de que haveria pressão o suficiente para o casamento, contou para nossa avó sobre a minha negativa em seguir a tradição de família, que resultou no afastamento do nosso pai. Aida sempre soube que eu não ia aceitar que papai sofresse por minha culpa. Ela contava que isso fosse o cheque mate que me faria aceitar o casamento forçado.

Adria rangeu os dentes e isso resultou em um murmúrio revoltado e abafado, que eu compreendia completamente. Aquilo era um misto de raiva e vergonha, um sentimento entalado que compartilhávamos por ter que aturar uma mulher tão inescrupulosa como mãe.

— Mas como sua mãe soube sobre Maxwell? Você deixou algum bilhete ou recado dizendo para onde estava se mudando quando saiu daqui? — Kennedy suspirou.

— Não, mas ela pode ter consultado o registro do telefone depois que eu saí ou alguém do colégio procurando meus contatos e sabendo da indicação da professora. Na verdade, ainda não pensei sobre isso e nem me importa.

— Nós temos que tomar uma providência contra essa mulher. Ela não pode sair impune! — as pobres batatas sentiram a fúria de Adria ao serem mergulhadas no catchup.

— E que provas eu tenho contra ela, Adria? As separações entre eles foram legais, ela tinha direitos sobre os imóveis e valores. Como eu comprovaria que Max estava me vigiando? O máximo que aconteceria é uma ordem de restrição.

— Muito bem vinda, em minha opinião.

— Se ele chantageava a avó, pode ser que ela coopere nessa questão, Ratinha. — meu pai ponderou — Podemos ajudar com a casa dela. Basta um bom advogado e desde que a Sra. Fighbright esteja viva, o usufruto da casa ainda é dela de qualquer forma. Retirar o rapaz do testamento também não deve ser difícil, ela apenas precisa de aconselhamento.

— Tenho um amigo na cidade que vai ficar muito feliz em ajudar — Adria sorriu radiante. A ideia de ferrar alguém mau caráter a deixava com um olhar de felicidade que era assustador e engraçado ao mesmo tempo, quase um Hannibal Lecter que fazia parte da família (o que não era muito confortável de se pensar).

Conversamos por mais um bom tempo sobre as implicações legais e todo o absurdo que aquela nova informação causava para meu pai e Adria. Já era o terceiro copo de refrigerante de cereja sobre a mesa quando Kennedy lamentou ruidosamente seu casamento fracassado, mas mudou de ideia ao se lembrar de que ao menos, tinha suas filhas ao seu lado.

— Um brinde — Adria apanhou seu copo de água tônica — A liberdade dos Dalton e as lições aprendidas pelo caminho. Salute!

Rimos do sotaque forçado que Adria fez e encontramos os copos, rindo e chamando ainda mais atenção no café, exatamente como os bons Daltons eram quando se encontravam e como deveriam ser sempre dali por diante.

******

Já passava da hora do jantar quando me sentei no colchão do quarto de hóspedes e comecei a dobrar minhas roupas para colocar dentro da mala. O dia seguinte seria bem curto e a viagem de retorno para Nova Iorque prometia ser cansativa. A primeira semana do ano prometia uma volta a rotina da livraria e um bônus por começar a procurar por uma nova casa onde levar todas as minhas coisas.

Tinha certeza de que Adria voltaria a oferecer seu apartamento em Manhattan antes que meus dois pés chegassem ao aeroporto e que meu pai tentaria me convencer a ficar em algum hotel até que tudo se resolvesse e houvesse um bom teto sobre a minha cabeça. Mas eu estava decidida a conseguir um canto aconchegante onde meus livros pudessem tomar mais espaço do que o considerável saudável, onde meu gato pudesse se espreguiçar em alguma boa janela onde batia o sol e uma planta ou duas poderiam sobreviver mais do que uma semana (se eu não me esquecesse de regar).

Claro que não estava sendo muito exigente comigo mesma. Qualquer lugar servia, até mesmo outro porão ou sótão por aí, desde que meu salário me permitisse comer todos os dias e me dar ao luxo de um café com meus amigos de vez em quando.

Escutei do quarto quando Adria pessoa pelo corredor falando em italiano com alguém ao telefone e fiquei na dúvida se era algum problema chamando por ela do outro lado do mundo ou apenas o ex-namorado tentando mais uma vez revalidar o prazo de validade do relacionamento dela. Ou as duas opções, se eles ainda trabalhavam juntos.

Não seria besta de sair pelo corredor para fazer perguntas e correr o risco de receber um sapato de sapato arremessado no nariz. Sabia bem como Adria ficava quando tinha que se portar como dona do próprio nariz, principalmente diante de problemas. Nesta questão da via, acho que estava começando a aprender como me defender das reviravoltas ao meu redor e cá entre nós, ainda estava me sentindo muito orgulhosa de ter conseguido dizer tudo que estava entalado na minha garganta, bem diante da matriarca Dalton.

Papai bateu de leve na porta do quarto e perguntou se eu ia descer pra jantar. Pelo jeito ele tinha se arriscado a fazer uma torta de legumes com Vivi e eu sabia (pelo cheiro) que alguma parte dela tinha dado muito errado e provavelmente transitava entre carvão e pó. Mas preferi dizer que com certeza devia estar ótimo e que desceria em breve para apanhar um pedaço.

Óbvio que eu não ia descer, mas ele não precisava saber disso.

Estava ansiosa por voltar para Nova Iorque depois de todos aqueles dias longe da cidade em que havia me acostumado. A Inglaterra era linda e Nova Orleans perfeita, mas nada se compara ao cheiro de liberdade que vem das águas ao redor da baía ou das árvores no Central Park. E mesmo com toda a insegurança e incertezas dali por diante, estava completamente animada com as surpresas que os deuses do destino — que comumente me odiavam — tinham para me mostrar.

Com a mala fechada e minha troca de roupas para a viagem separada sobre uma cadeira, desci para procurar alguma coisa na cozinha que não fosse a torta queimada de Kennedy Dalton. Trombei com Adria na cozinha, com o nariz vermelho e os olhos brilhantes, claramente abatida depois da discussão ao telefone.

— Quer conversar? — me senti em uma daquelas cadeiras altas ao lado do balcão, roubando algumas nozes pecã da compra mais cedo.

— Não se preocupe comigo, princesa, isso é apenas um daqueles momentos em que ser mulher e sensível é um saco. — ela fungou, sentando por perto para beliscar as nozes comigo.

— Trabalho ou Paolo?

— Um pouco de cada. O idiota quer as chaves do meu apartamento para tirar as coisas dele de lá. Vou jogar tudo na rua quando chegar em casa, ele vai ter que apanhar os cacos na calçada.

Rimos um pouco, o que ajudou o humor de Adria a ficar um pouco mais leve. Fofocamos um pouco sobre detalhes do rapaz do bonde que tinha deixado minha irmã eufórica naqueles dias e estávamos dando risadas altas quando Vivi entrou pela porta com meu celular seguro na ponta dos dedos. Parecia que o aparelho estava infectado, mas na verdade estava apenas tocando insistente e barulhento como sempre.

— Vocês precisam se lembrar de andar com esses telefones por perto. Qual o sentido em se ter isso se você deixar em cima da cama, Katerina? — ela tentou me dar uma bronca, mas estava se divertindo mais com a música brega do meu toque.

Quando coloquei as mãos no aparelho, a ligação já tinha caído e fiquei bem surpresa ao ver que Lucas Valois D’Orleans (sim, falar o nome completo adicionava um pouco de drama) é que estava me ligando.

— O violinista? — Adria riu — Você precisa decidir com qual dos irmão vai ficar, Kate. Não dá pra ter os dois... Se bem, que eu já fiz isso uma vez. Eles eram gêmeos e...

— Me poupe, Adria.

— Oras, foi divertido!

Tentei retornar a ligação, mas Luke não atendeu. Mesmo sabendo que o ruivinho poderia fazer um interurbano apenas para falar sobre seu tédio ou sua próxima marotice, preferia alimentar aquele friozinho na barriga que acompanhava qualquer contato com algum Valois existente na face da terra.

— Relaxa, Kate. Ele vai retornar a ligação. Não deve ser questão de vida ou morte.

— Já passam das dez da noite para ele. Porque ele me ligaria tarde assim?

— Tarde? Que idade você tem? Nem parece que nasceu na cidade dos boêmios.

— Está me rotulando? — rimos.

— Não, só te chateando mesmo.

Adria ficou me observando de canto enquanto tentava ligar mais uma vez e vencida pela demora, mandei uma mensagem para que quem sabe, Luke conseguisse ver. Quando deixei o aparelho no balcão, ela começou com uma risadinha.

— Eu estava aqui me lembrando da primeira vez que te vi apaixonada. Você tinha quase uns quinze anos, eu acho, e estava doida para ir à festa de uma garota idiota da sua classe só para ter a chance do garoto milagrosamente te notar. Qual era o nome dele mesmo? Frank? Daniel? Milo?

— Colin. E eu não estava apaixonada por ele.

— Você até aceitou entrar em um vestido. E olhe que você e vestido sempre foram inimigos mortais. Vide o que você fez com o último coitadinho que vesti em você. Infeliz Burberry.

— Nunca vai me perdoar por aquele vestido, né?

— Talvez. Você já pensou em trabalho escravo? Ah, olha, seu celular.

O visor do aparelho brilhou e o vibrar parecia uma batedeira na pedra lisa do balcão. Não era uma ligação, mas uma pequena mensagem com um emoticon sorridente que invariavelmente sempre me lembrava dos largos sorriso que Luke conseguia dar.

“Oi Kate, tudo bem? Eu tentei te ligar sim, mas você não atendeu.”

“O celular não estava por perto, Luke, me desculpe. Está tudo bem por aqui e com vocês?”

“Vocês”. Eu nunca soube bem como ser discreta.

— Pergunta logo de uma vez sobre o irmão dele, Kate. Me dá esse celular que eu mesma digito. — Adria tamborilou os dedinhos na direção do telefone e fui obrigada a mudar de banco para evitar a chegada do fim do mundo.

“Tudo ótimo! Saímos um pouco de York para aproveitar o final da folga de final de ano.”

“Que legal, Luke!”, acompanhei a mensagem com algumas carinhas felizes.

Fiquei esperando que Luke me respondesse com uma mensagem repleta de imagens coloridas ou talvez um de seus vídeos repletos de animação para contar sobre o lugar onde estavam e reclamar também — provavelmente sobre o frio ou sobre Leo. Porém depois de quase 10 minutos e uma bateria caminhando para o final, não havia nenhuma resposta do inglês ruivo na minha tela e as nozes tinham acabado. Adria já estava distraída lendo um caderno de receitas e se perguntando se alguma vez alguém havia usado aquilo.

Foi então que a resposta de Lucas tilintou por perto.

“Kate! Acabei de me lembrar de você, sabia?”

Aquilo não explicava muita coisa, mas eu gostava de saber que alguma coisa pelo mundo afora fazia o mais jovem dos Valois se lembrar de mim. Óbvio que por dentro eu estava pensando: “Ainda bem que alguém lembra de mim, não é?”, mas era melhor não comentar.

É mesmo?”, adicionei um sorrisinho, apenas para não parecer muito interessada, nem tão entediada. Não era lá muito eloquente quando estava curiosa sobre alguma coisa.

Claro! Não tinha como ser diferente!”, ele respondeu imediatamente e naquele instante podia afirmar que estava no meu limite de segurança da curiosidade. Algo entre a curiosidade capaz de matar um gato e aquele tipo de coisa saudável que permite que as pessoas continuem vivas por mais tempo.

E posso saber o porquê?”

Houve mais uma pausa nas mensagens de Luke e em seguida o aplicativo carregou uma foto. No começo um tanto embaçado, uma profusão de laranjas e pontos iluminados que não dava para imaginar o que viria em seguida. Adria até esticou o pescoço entre a página de galinha desossada do caderno e meu ombro, para saber do que se tratava.

A imagem carregou e ficou nítida, mostrando um salão iluminado por um antigo lustre de corda e uma grande quantidade de pessoas acomodadas em bancos de madeira e almofadas. Adiante delas um pequeno espaço em que uma banda tocava e aquele ambiente todo me causou uma repentina crise de gastrite nervosa.

— Santa Brontë das desesperadas... Eles estão aqui. — gaguejei, tampando a boca sem nem perceber minha reação. Adria se pendurou em mim e apertou os olhos pra tela.

— É o Preservation Hall?

— Parece que sim... — murmurei incrédula. Na verdade, não saberia explicar com riqueza de detalhes minha situação naquele instante. Só sentia que havia um cavalo árabe de corrida entre as minhas costelas e uma reprodução perfeita do castelo de gelo da rainha Elsa de Arendele fortemente fixado no lugar do meu estômago com direito a boneco de neve e tudo mais.

Porque ia ser bem mais legal se você estivesse aqui!”, Luke completou após a foto e meus dedos gelados quase erraram todas as letras para digitar uma resposta decente, já que meu cérebro estava tentando digerir a informação e fazer Adria parar de rir de mim ao mesmo tempo.

Você está no Preservation Hall?????”, exagerei no número de exclamações.

Não tinha exatamente uma primeira lembrança sobre aquele lugar que tinha visitado tantas vezes. O conhecido salão histórico era um local de encontro para os amantes da boa música da cidade. Sempre cheia de turistas por todos os lados e filas de entrada, o Preservation era definitivamente um lugar perfeito para certo ruivinho violinista estar em Nova Orleans.

O problema era: o que raios os irmãos Valois estavam fazendo em Nova Orleans? Desde quando? Onde? Por quê? Pra quê eu estava fazendo tantas perguntas?

“Sim!”, ele respondeu com risos em caretinhas amarelas. “Vem pra cá, a apresentação está incrível. Podemos passear depois? Quero conhecer tudo!”

Imediatamente minha mente passou a trabalhar para pensar em todas as probabilidades possíveis de desastre. Eu precisaria desfazer minha mala, levaria algum tempo para chegar ao lugar, não tinha nenhum dinheiro para levar ninguém a um restaurante interessante na cidade e por todos os bons santos escritores do firmamento literário, precisava me recompor.

— Vá se trocar. — Adria bateu a mão no meu ombro, ainda rindo da minha cara. — Eu te levo lá, vou pegar as chaves do carro com o papai. Mas vê se não demora por que não se deve deixar nenhum inglês esperando nesse mundo, menos ainda um que vem até Nova Orleans só pra ver a sua cara feia.

Luke, estou indo!”, foi o que consegui digitar quando parei de rir.

Vivi começou a rir na entrada da cozinha, provavelmente escutando parte da conversa, e passei por ela correndo, pulando os degraus para chegar no quarto de hóspedes e virar minha mala sobre a cama. Adeus roupas dobradas, olá escolha do que vestir quando se é Katerina Dalton.

Quase caí no meio do quarto para tentar tirar as confortáveis calças de moletom com que estava vestida e dei graças quando Genevieve entrou pela porta, em ajudando a separar meias de lingerie, casacos de jeans e organizar um pouco do pequeno caos que se transformou por ali em poucos minutos só para me vestir com algo socialmente aceitável.

Decidimos juntas por algumas peças quentes e que não me fariam parecer um rolinho de sushi multicolorido, enquanto Adria bateu na porta sacudindo o molho de chaves do carro e aprovando o visual. Quando nossa polvorosa passou pela sala de estudos rumo a garagem, Kennedy afastou os óculos de leitura e seu livro de contabilidade, apenas para assistir as filhas entre risadas e explicações bagunçadas, parecendo duas adolescentes mais uma vez.

— Aproveitem o passeio, meninas — ele aconselhou resignado ao detalhe de que só tinha entendido que o carro seria devolvido e que o Preservation Hall estava envolvido. Já era o suficiente.

— Conferindo a lista! — Adria anunciou quando paramos diante de um semáforo vermelho. Sempre fazíamos aquele tipo de coisa quando estávamos no colégio, principalmente antes de excursões e passeios.  — Chiclete?

— Confere.

— Casaco? Meias? Os dois pés diferentes da mesma bota?

— Confere... Eu acho. — consultei meus pés. — Não sei se esse casaco vai bastar.

— Não se preocupe, um deles vai te oferecer um casaco melhor. Sutiã? Calcinha? Celular?

— Checado.

— Toma. — ela se esticou e pegou a própria bolsa no banco de trás, aproveitando a demora do sinal. Tirou de lá algumas coisas e colocou na minha mão.

— Adria! Estou indo para uma apresentação de jazz, não um encontro — tive uma crise de riso ao perceber que eram algumas notas de dinheiro em volta de um pacote de preservativos.

— Nunca se sabe!

Chegamos a Bourbon Street e seu costumeiro movimento noturno sem precisar procurar exatamente onde estacionar. Adria não parecia nada disposta a vir comigo, mas estava se divertindo demais em ver meu nervosismo com aquela situação.

Assim que paramos Adria se debruçou, abriu minha porta, apontou a calçada e foi deveras gentil.

— Agora desce do carro e se lembre: Nunca faça nada que eu não faria.

Pronto. Em menos de um minuto ela estava acenando e tirando o carro dali para me deixar do outro lado da rua, bem diante da pequena fila que se formava recostada nas paredes de madeira do Preservation Hall.

Ainda me surpreendia pela quantidade de pessoas que estava disposta a se acotovelar dentro daquele espaço limitado para ver boas bandas de blues e jazz e passar horas sentados sem direito a nenhum copo das bebidas que fervilhavam em qualquer outro estabelecimento por perto. Talvez fosse essa a magia do lugar. Tudo de que você precisava era apenas a música e nada mais.

Perto das portas centenárias de ferro o som se espalhava e o público que aguardava a próxima apresentação arriscava alguns passinhos desengonçados, assovios e palmas no final de cada música, espiando pelos vãos das largas janelas de madeira da fachada para captar algum trecho da banda. Parei diante das pessoas e me ergui na ponta dos pés na esperança de enxergar algum topo de cabeça ruiva que identificasse onde encontraria dois ingleses perdidos pelo Mississipi, mas não tive muita sorte.

Precisaria entrar na fila para chegar lá dentro e de alguma forma isso era um alívio para meus pobres nervos e minha ansiedade. Ainda teria alguns minutos para não parecer com uma jovenzinha ridícula e correr o risco de gaguejar alguma coisa idiota ao invés de conseguir articular uma frase inteligente.

Depois de algum tempo ali sentindo os dedos dos pés gelarem e a fila andar tão pouco que os portões pareciam distantes, meu nervosismo começou a se transformar em irritação e me afastei para o meio da calçada, erguendo o celular para ver como estava o sinal. Só conseguia imaginar o quanto Leopold devia estar me nomeando de uma série de adjetivos como “caótica, desajeitada” e coisas do tipo por conseguir me atrapalhar estando na minha própria cidade.

— Maldito inglês... — resmunguei comigo mesma, apanhando meu celular para digitar outra mensagem para Luke e avisar que estava do lado de fora. Isso se eles ainda estivessem lá dentro e não tivessem se cansado e ido para qualquer uma das outras mil opções que a rua dos pecados oferecia. Uma parte de mim torceu para que eles não fossem parar em algum Hooters.

Bastou a barra do sinal ficar estável para dar um pulinho de satisfação, discreto, para não esbarrar nas pessoas ao redor; e estava começando a abrir os aplicativos da tela do aparelho quando senti um conhecido aroma de bergamota vindo de algum lugar.

— Se eu não a conhecesse, diria que não acredito que consegue parecer mais perdida do que os turistas em um lugar que conhece completamente, senhorita Dalton. E posso ser uma pessoa um tão detestável na maioria das vezes, mas lhe garanto que não cheguei ao posto de “maldito”.

Logo que me virei na direção daquele aroma, dei de cara com uma pequena bandeja de papelão com dois copos de isopor de uma bebida quente. O perfume vinha dali, mas tinha certeza de que grande parte dele provinha do homem que estava segurando aquilo, me olhando com uma pitada de reprovação e uma sobrancelha arqueada que poderia ser reconhecida do outro lado do estado e capaz de revirar meu estômago sem esforço.

— Realmente, um exagero da minha parte. Mas não abuse, Sr. Valois, ou ganhará mais este renome para minha lista.

— Ah, a famigerada lista de bons adjetivos sobre mim. Nem mesmo a mudança do ano fez com que a deixasse de lado, Katerina? Não estava entre suas resoluções?

— Pensei em desistir de acumular defeitos e qualidades sobre o senhor, mas depois de sua gentileza em me considerar tão incapaz de ler Shakespeare, tive que reconsiderar. — ri um pouco.

— Era um favor.

— Oh, eu agradeço imensamente. Tenho que admitir que algumas anotações foram muito pertinentes, mas acabou tirando minha concentração no texto diversas vezes. Não acho que o senhor aprove minha distração diante dos textos do Bardo.

— Uma clara heresia, Katerina. — Leo sorriu suavemente e o tom de provocação daquela conversa era mais claro do que nossos comuns debates. — Talvez seja por uma vaga intuição de seu descaso com a obra que viajei até aqui para recuperar meu tomo.

— Então, o senhor definitivamente atravessou o oceano para vir até Nova Orleans buscar seu livro. Minha amostra do rio Mississipi não deve ter encantado o senhor suficientemente na noite de réveillon. Uma pena.

— Ao contrário. Nova Orleans possui outros encantos ao que tudo indica.

Trocamos um sorriso mais e num passo Leo tocou meu rosto com sua mão protegida por uma luva, quente pelo contato recente com os copos de bebida, e se curvou para beijar meus lábios frios de ansiedade. Foi inevitável o arrepio que ele me causou com um beijo tão gentil e o quanto me senti feliz em sentir sua proximidade depois daqueles dias separados.

Não reclamaria se todos nossos debates acabassem daquela forma. Não mesmo.

— É muito bom reencontrá-la, Kate. — ele olhou em meus olhos e se afastou sem pressa, acomodando os copos junto do corpo.

— Nunca imaginei que um dia ia escutar isso vindo de você, Leo. Sempre me surpreendendo.

— Uma de minhas tantas listadas qualidades, lhe asseguro.

— Kate! Kate! — ouvi do outro lado da rua a voz de certo ruivinho que correu na minha direção antes que conseguisse me virar completamente para ele. Rapidamente estava sendo tirada do chão pelo abraço com cheiro de baunilha que só podia vir de Lucas. — Que bom te ver! Ah, vocês já se encontraram, que bom! Olha só o que eu comprei? Legal, não é? Ah, você conseguiu achar chocolate quente?

Como de costume, Luke falava pelos cotovelos quando animado e lançou mão de um dos copos de isopor para tomar um gole e acabar com a boca quase queimada, rindo e assoprando o conteúdo fervente.

— Demorou mais que o previsto. Pelo jeito o chocolate só é feito por aqui com acompanhantes alcoólicos e isto está fora de cogitação, Lucas.

— Eu sei, eu sei... — Luke respondeu um pouco fanho por estar com a língua para fora. Ele estava usando uma camiseta berrante por cima de um moletom cinza, onde as cores do Mardi Gras estampavam um coração com os dizeres de “Eu amo Nola”. Muito discreto.

— Achei que estavam assistindo o show no Preservation Hall.

— Estávamos, contudo Lucas achou muito pertinente aproveitar o tempo para algo quente e comprar bugigangas. O jantar do hotel não foi suficiente para ele, menos ainda esperar até amanhã para se embrenhar pela cidade.

— Não é todo dia que se vem até Nola, não é? E aqui não neva, então temos que aproveitar ainda mais. Ou vai me dizer que não está animado, Leo? — ele cutucou o braço do irmão e riu baixinho. Tive a certeza de que estava em um daqueles momentos em que Luke sabe mais do que o resto do mundo sobre o que está acontecendo ao meu redor.

— Deveras.

Nossos olhares se cruzaram e não evitei sorrir quando vi aquele sorriso no rosto de Leo. Era como se fosse a primeira vez que ele sorria, lembrando aquele dia no Globe, marcando minha memória com uma coisa tão simples.

— Então, vão ficar alguns dias na cidade?

— Ainda não decidimos. Pelo visto tem muitas coisas legais pra se fazer por aqui, não é? Você vai embora quando, Kate? — Lucas ainda tentava dar alguns goles em seu chocolate.

— Amanhã.

— Amanhã? — os dois falaram juntos.

— Sim, meu voo está marcado para o horário do almoço. Foi o que eu consegui por uma viagem feita às pressas. E volto a trabalhar ainda essa semana, então não posso me dar ao luxo de ficar zanzando por aí.

— Ah, não Kate. Você tem que ficar mais uns dias. Quem vai me mostrar todos os pontos turísticos? — Luke abraçou meus ombros com sua carinha de cachorrinho perdido.

— Tenho certeza de que seu irmão fará um ótimo trabalho. Ele é um excepcional guia turístico quando quer.

— Não confio. É bem capaz de acabarmos no meio dos pântanos, entre os jacarés! — Luke gargalhou, dando uma volta antes de se afastar das pessoas aglomeradas por perto do Preservation Hall.

Começamos a caminhar e rir quase sem notar e logo estávamos andando calmamente pela Bourbon Street, fazendo pequenas observações enquanto eu indicava os bons lugares e recantos de que me lembrava dos anos vividos pela cidade. Claro que tudo seria mais interessante durante o dia e sem o risco de esbarrar em turistas bêbados, mas ao que parecia os irmãos estavam bem entretidos pela minha desastrosa tentativa de mostrar um pouco do lugar para eles.

Citei uma dúzia de coisas interessantes que eles deveriam fazer por Nola se ficassem mais dias, como visitar os locais históricos, o cemitério local, as plantations e o aquário. Não sabia quanto eles estavam se programando para ficar, mas sentia por não poder ficar com eles.

Mas ânimo, Katerina!

 Ao menos você estava ao lado do Carma mais uma vez, trocando pequenos olhares, caminhando sem a preocupação de que o destino estapeasse minha cara em alguma esquina, jogando um noivo ou um parente maluco no meu colo. Mal via a hora de contar para Próspero sobre minha conversa com meu pai e Viola.

Fizemos uma parada no Du Monde, o café tradicional da região, pedindo alguns beignets para Lucas se lambuzar com todo aquele açúcar salpicado. Era um prazer ver o ruivinho se deliciar com os pãezinhos e pralinés, além de escutar todas suas reclamações sobre a festa de réveillon dos Valois D’Orleans, sempre pontuado pelas observações do irmão mais velho que parecia bem mais resignado ao acontecimento do que ele.

Quando notei já havia passado das dez da noite e a lembrança do avião para Nova Iorque que me esperava no dia seguinte era uma pontada de chamada para a realidade.

— Bem, já está tarde para mim, rapazes. Preciso voltar para casa. Vocês estão hospedados aqui perto?

Lucas soltou um suspiro audível e consultou o mais velho antes de encostar a cabeça no meu ombro, me espiando de esgueio.

— Estamos, mas você tem que ir mesmo, Kate?

— Não seja inconveniente, Lucas.

— Se me convencer de que você não liga se ela for embora, eu paro com a inconveniência. Concorda? — o ruivo riu, estendendo a mão em um claro desafio para Leo, fazendo o irmão soltar um longo suspiro antes de limpar a boca com um guardanapo.

— Não preciso convencer você.

— Então? — ele estendeu o som do final da palavra em um ritmo cantado, apenas para provocar.

— Eu adoraria que ela ficasse mais tempo, porém o bom senso diz que não é pertinente questionar a decisão dos outros, Lucas. Muito menos se Kate diz que precisa ir. Ela sabe sobre seus horários e compromissos e nós estamos aqui para acompanha-la até sua casa, se ela assim desejar.

Touché.

Lucas e eu ficamos suspensos em silêncio por um momento. Com certeza o ruivinho não acreditava no que tinha acabado de escutar o irmão dizer tão informalmente, assim como eu também não (sem citar o quanto meu rosto estava quente naquele instante), mas meu ego estava nas alturas. Se pudesse teria rasgado meu voucher do voo naquele instante, ligado para a livraria e avisado que ficaria mais uma semana em Nola apenas por conta daquela pequena frase de Próspero... “Eu adoraria que ela ficasse mais tempo”.

Porém, minha situação atual não me permitia sair por aí rasgando passagens de avião e mandando um emprego pelos ares. Então aceitei a gentileza de Leo em se oferecer para me levar até em casa e apanhamos um táxi na saída do café, em direção ao Garden District.

O táxi mal estacionou diante dos portões de ferro do casarão dos Dalton e me lembrei de que não tinha as chaves para entrar. Teria que torcer por meu pai não estar dormindo seu conhecido sono profundo noturno, aquele em que seus roncos o impediam de ouvir qualquer ruído exterior.

Leo não permitiu que eu pagasse a corrida e aceitei a gentileza, já que não pretendia gastar mais do dinheiro que Adria havia me emprestado. Lucas mal saltou para a calçada e já olhou ao redor com seus olhos brilhantes.

— Uau, que lugar legal! Parece uma daquelas casas de filmes.

— Tive a mesma impressão quando cheguei na sua casa, Luke. — ri, apertando o interfone.

— Mas a minha casa não parece que saiu do “E o vento levou”. — ele rebateu.

— Não, mas com certeza saiu de algum romance britânico. Posso enumerar dezenas se você quiser.

Já estava listando mentalmente todos os autores que poderia colocar de exemplo para Lucas, quando o fone chiou e foi atendido lá dentro.

— Quem é? — a voz do Sr. Dalton soou rouca e mecânica.

— Sou eu, pai.

— Kate? Você não está com sua irmã? O controle do portão está no carro.

— Adria não está comigo, pai. Pode abrir pra mim?

— Claro, Ratinha. Só um minuto.

Minha bochechas coraram e balancei o corpo torcendo para que ninguém tivesse notado, mas Luke começou a rir, mesmo com um tremendo esforço para o riso não escapar pela boca.

— “Ratinha”? — Leo ergueu a fatídica sobrancelha, apenas desenhando um sorriso engraçado de canto.

— É coisa de infância, ok? Meu pai acha fofo.

O clique do portão se juntou com as risadas de Luke e seguimos pela rampa até a porta com ele contando como nunca teve um apelido fofinho quando criança.

— Mas minha mãe chamava o Leo de Leozinho. Nunca entendi o motivo porque ele sempre foi essa vareta. Não faz sentido chamar uma criança tão alta de um apelido no diminutivo.

— É carinhoso. Podemos te chamar de “Lukinho” se você quiser.

— Não faço questão. — ele riu.

— Eu faço. “Lukinho”. — Leo provocou e Lucas estava prestes a socar seu ombro quando o trinco da porta emudeceu todos e a figura do Sr. Dalton espiando pela fresta foi o centro das atenções.

Kennedy abriu a porta do casarão com uma careta confusa, enrolado em seu roupão de listras azuis e segurando a caneca de café quente que o acompanhava com um rastro de vapor. Primeiro ele olhou para mim e depois mediu os rapazes, tendo um pequeno lapso de tempo para seu cérebro conseguir localizar que já havia visto aqueles rostos. Papai sempre foi péssimo com fisionomias.

— Kate, onde está sua irmã? — ele parecia desconfiado.

— Deve ter encontrado alguma coisa interessante para fazer pela cidade. O senhor se lembra dos meus amigos?

— Eu acho que já nos conhecemos... — ele arriscou.

— Em Nova Iorque, Sr. Dalton. — Leo fez o breve comentário para iluminar meu pai.

— O senhor conheceu os irmãos D’Orleans naquela noite em que achou que eu tinha sido sequestrada, pai. Lembra que eu estava jantando com eles?

— Eu não achei que você tinha sido sequestrada, oras. Ah, claro! — houve um estalo e o rosto do Sr. Dalton se transformou em um simpático sorriso, mesmo levando em consideração que ele não estava em seus melhores trajes para se receber visitantes. — Que prazer em revê-los. Por favor, entrem, entrem!

— Não se incomode, Sr. Dalton. Viemos apenas trazer a senhorita Kate até sua casa.

— Ora, não façam desfeita. Não é nenhuma casa inglesa, eu suponho, mas aposto que tenho alguns saquinhos de chá e uma lareira lá dentro que é muito melhor do que essa noite gelada.

A porta foi escancarada e entramos para o átrio, onde todos tiraram seus casacos com algum alívio realmente por fugir do frio lá de fora. Kennedy não parecia ligar muito para a hora da noite e recebeu todas as blusas para pendurar em um mancebo e convidar os rapazes para uma xícara de café de chicória, sua bebida quente favorita.

— Não desejamos atrapalha-lo, Sr. Dalton — Leo voltou a afirmar.

— Bobagem. Sentem-se e sintam-se a vontade. É bom receber visitantes por aqui para variar. Essa casa já é muito silenciosa por grande parte do ano, então um pouco de barulho é sempre bem vindo. Mas me desculpe por perguntar, por acaso o senhor possuí algum parentesco com os D’Orleans europeus? Não deixei de notar o seu sotaque, mas acho que fomos apresentados por um nome diferente quando nos vimos a primeira vez. Ou talvez eu esteja confundindo as coisas. Não estava muito calmo naquela noite em Nova Iorque.

— O erro foi meu, pai. Apresentei os dois com outro sobrenome naquela noite, deve ser por isso que o senhor está imaginando que se confundiu. — tentei remediar.

Leo então estendeu a mão em um gesto firme, porém gentil e meu pai aceitou o aperto com uma grande gratidão em sua expressão, como se fosse um fio de esperança de que no mundo havia ainda homens que se importavam com boas maneiras.

— Leopold Thomas Valois D’Orleans. Mais uma vez, é um prazer, Sr. Dalton.

— Valois D’Orleans. O prazer é todo meu, já ouvi muito sobre sua família no meu ramo de trabalho. Quero dizer, ex-ramo de trabalho — Kennedy riu segurando a mão de Leo com suas duas mãos e em seguida indicando a direção da sala onde poderiam se sentar.

Genevieve surgiu pelo arco lateral assim que nos sentamos nos sofás e sorriu como há muito não via a velha fazer, questionando amavelmente o que eles desejavam tomar, sem ligar nem um pouco por estar ela mesma usando um roupão acolchoado confortável e pantufas fofas. Depois de decididamente afirmar que não tinha a mínima ideia do que seria um chá Earl Grey (e que não havia mais chá na despensa), acabou contente com a decisão de todos em acompanharem o Sr. Dalton no seu peculiar café local.

— É uma casa e tanto, Sr. Dalton — Lucas comentou, bem ocupado em observar um piano antigo no fundo do cômodo e as estantes repletas de livros empoeirados e alguns porta retratos de família.

— Basicamente uma herança. Essa casa foi dos meus bisavôs e considerem um milagre que eu esteja nela ainda hoje. Nossa cidade preza muito pelo valor histórico das coisas, principalmente nessa região do Garden District.

Sentia um incômodo no topo da garganta, uma coceirinha de intuição que era insistente. Não sabia exatamente o que era, mas continuava ali mesmo enquanto Leo e o Sr. Dalton conversavam sobre a conservação dos prédios e casarões de Nova Orleans com grande importância.

O cheiro do café servido por Vivi atraiu a atenção deles e logo que Luke apanhou sua xícara, tocou minha mão com seu típico largo sorriso.

— Me mostra sua casa, Kate? Parece bem mais legal ver tudo do que ficar escutando sobre o lugar. Sem ofensas, Sr. Dalton.

Kennedy riu, balançando a mão no ar.

— Não se preocupe. Eu concordo que é muito mais bonito e interessante ver os detalhes pessoalmente.

— Bom, por aqui não temos passagens secretas e hectares de terreno, nem jardins iluminados ou estufas. Mas posso te mostrar, é claro. — sorri e agradeci mentalmente pela chance de deixar aquele café de lado.

— Vocês se importam? Kate vai me mostrar o casarão. — ele consultou meu pai e Leo, deixando a xícara na mesa de centro para se levantar e me levar alguns passos com ele bem segura pela mão.

— É claro que eles não se importam. Não participamos dessas conversas de homens sérios. — ri um pouco, gostando do sabor arteiro de poder deixar meu pai com Leo na sala, mas como todas as coisas para mim não duram muito...

— Apenas comporte-se, Lucas.

— Ora, é claro que vou me comportar. Vamos pular em algumas camas e lutar com travesseiros, mas nada pra se preocupar, garanto. — ele piscou para o irmão.

— Se quiser ir com eles, Sr. D’Orleans, não precisa fazer cerimônia.

— Eu prefiro ficar, Sr. Dalton. — Leo pausou elegantemente para um gole de café e depois descansou a xícara no braço do sofá, desviando os olhos de nós para meu pai com um ar brevemente mais nobre. — Gostaria de aproveitar a oportunidade para falar com o senhor sobre um assunto mais sério. Negócios, que provavelmente serão do seu interesse.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Orleans" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.