Orleans escrita por MarianaCamara


Capítulo 11
Capítulo 11 - Everything




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Tudo bem. Pode ser que eu estivesse louca mesmo quando digitei uma mensagem para Bruce Campbell sem levar em consideração todos os últimos acontecimentos da minha vida agitada e todos os pequenos bons motivos que diziam em letras garrafais de néon: “não confie nesse cara”. Mas o desespero é irmão da loucura, ainda mais quando se trata de imaginar Kennedy Dalton desolado e privado de tudo que havia conseguido na vida apenas por conta de uma filha rebelde sem causa que acreditava que a liberdade de escolha é mais importante do que se casar com um cara bonito, rico e bem intencionado.

Não pretendia dar as costas para minhas convicções. Meu plano era ousado, mas casava muito bem com a ideia de Adria em partir para a casa de nossa avó no Louisiana. Claro que tinha seu preço, como deixar de passar as festas tranquilamente com minha irmã e curtir minhas férias que estavam sendo boas, na velha Inglaterra. Por isso, não conseguia dormir.

Depois da última mensagem que digitei, a tela do celular estava imóvel, apenas as horas seguiam mudando discretamente no visor. Bruce não respondeu mais nenhuma linha, nem mesmo titubeou para enviar um Okay qualquer para que eu soubesse que sim, ele viria conversar comigo no dia seguinte. Quando o sono começou a ganhar terreno e minhas preocupações pareciam ficar pequenas e distantes, o telefone tocou.

Uma telefonista sussurrante se desculpou por estar ligando naquele horário e ficou aliviada quando afirmei mais de duas vezes que estava acordada e não me importava pelo incômodo. Seguiu explicando brevemente sobre algumas políticas do hotel (que simplesmente não prestei atenção) e finalizou dizendo que eu deveria descer para receber um visitante que insistia em falar comigo.

Já passavam das três da manhã e Bruce Campbell estava andando de um lado para o outro do saguão do hotel, mão nos lábios, um pouco descabelado, mas impecavelmente bem vestido.

— Bruce? — me apressei a sair do elevador logo que o vi, apertando o cinto fofo do roupão na minha cintura.

— Kate... — ele apanhou as minhas mãos assim que se aproximou nitidamente exasperado — Você está bem?

— Com sono, despenteada, descalça, com um roupão de hotel, mas ligeiramente bem.

— Vim assim que você me passou o endereço. Por que não disse antes que estava em Londres? Eu teria vindo mais cedo.

— Exatamente por conta disso, Bruce — afastei as mãos dele e cruzei os braços — Pra você não vir antes.

— Oh...

Isso mesmo, acho que você captou a mensagem, Sr. Campbell.

Indiquei com os olhos na direção dos sofás que ficavam ao lado das belas janelas do Bristol e caminhamos em silêncio até lá, longe dos olhares curiosos do pessoal do hotel por trás do balcão na entrada. Acomodei minhas pernas em uma poltrona, enquanto Bruce ajeitava as mangas de seu casaco e evitava meu olhar, notando os enfeites e luzes natalinas do hotel.

— Desculpe por ter te tirado de York à uma hora dessas — recomecei o assunto.

— Não se preocupe. Eu estava sem sono e você me pareceu muito aflita com aquela mensagem. Gosto de dirigir a noite. Me faz pensar.

— Entendo — mesmo achando estranho alguém sair da própria cama quentinha para dirigir nesse frio por quase três horas.

— O que houve, Kate? Você disse que estava com sérios problemas.

— E estou. Não são problemas novos, mas um velho e que precisa ser solucionado o quanto antes. E infelizmente, preciso de você para me ajudar nisso, Bruce. Até porque, você tem uma boa parcela de culpa nisso.

— Tenho? — ele riu, acomodando-se melhor no sofá. Não pareceu levar muito a sério a minha conversa de “problema grave”.

— Tem.

Respirei fundo três vezes, exatamente como aquela mulher de collant nas aulas de yoga dizia na tevê enquanto repetia o mantra “ inspira-expira”. Já tinha passado da fase da conversa com Bruce que incluía as explicações da minha lista de duzentos motivos pelos quais um casamento arranjado não era legal em pleno século XXI, portanto não queria ter de começar do princípio de que ele teria esquecido minhas convicções.

— O casamento, Bruce. Isso tem que terminar.

— Casamento? Nosso casamento? — ele estreitou as sobrancelhas, dando um pouco mais de atenção ao caso agora. Seus cotovelos se apoiaram nos joelhos e sua forma de projetar o corpo na minha direção era um sinal expressivo de que nenhum papai Noel ou luzinhas coloridas o dispersariam.

— Não, do príncipe Charles... É óbvio que estou falando do nosso ultrajante, absurdo e inconcebível casamento, Bruce! — (Okay, eu me descontrolei um pouquinho nessa parte, mas vamos me dar um desconto por estar cansada, preocupada e insone).

— Pensei que já estivesse bem claro que isso não vai acontecer, Kate. Nós concordamos que o noivado e o casamento não eram aceitáveis. Já conversamos sobre isso.

— Sim, nós conversamos e nos acertamos, mas pelo visto o restante do universo decidiu que não é nada correto uma Dalton ficar solteira por escolha, portanto alguém deve sofrer as consequências.

— Do que você está fal...

— Meu pai foi retirado da empresa da família e perdeu os direitos de qualquer coisa que já construiu ou teve até hoje. Tudo porquê minha amada avó recebeu a notícia de que sua neta azarona não aceitou o bom casamento que foi proposto e achou que o melhor a se fazer seria punir o terrível pai que não conseguiu domar a rebeldia. Com isso a empresa passou para minha tia May, que nunca entrou pelas portas do lugar nem mesmo para beber um copo de água, e meu distante e bem apessoado primo que nunca mais vi desde meu aniversário de sete anos. Consegue entender porquê estou chateada, Bruce?

A avalanche de informações deixou Bruce com uma expressão vaga e ele precisou se recostar no sofá e passar a mão pelos cabelos três vezes antes de apertar os lábios e dizer alguma coisa.

— Sinto muito por isso, Kate.

— Eu também sinto. Mas preciso de você para me ajudar a resolver isso, Bruce. Nossos pais fizeram um acordo sobre este casamento, não é? Você disse que estava fechando negócios com a empresa da minha família, uma fusão de posses.

— Sim, uma fusão entre as empresas seria um ganho imensurável para todos. Famílias tradicionais estão envolvidas entre negociações, casamentos e ganhos a gerações, Kate. Você deve conhecer o passado da sua família.

— Barões do algodão, famílias sulistas, sei de tudo isso, Bruce. Mas temos que acabar com isso agora. Meu pai não pode pagar o preço por uma loucura dessas; essa tradição ridícula tem que terminar e precisamos de toda a ajuda possível.

O homem diante de mim pareceu imerso em pensamentos, silencioso, tomado por uma onda de ideias que eu torcia quieta para que fossem melhores do que a minha ou mais funcionais. Ele havia dirigido por horas até ali, então era bom que soubesse como resolver aquilo ou sua viagem seria totalmente em vão.

— Podemos falar com meu pai — sussurrou, como uma epifania distante.

— Seu pai? E no que ele poderia ajudar?

— Meu pai e o seu, fizeram o acordo matrimonial. Eu estava presente, claro, mas os maiores interessados sempre foram eles. Afinal a herança da sua avó passaria para seu pai apenas com o casamento e apenas assim ele aceitaria a fusão. Claro que meu pai vê mais do que uma ótima questão financeira nesse compromisso, já que ele particularmente acha que casar com uma mulher de família pode me transformar em uma pessoa melhor. Ele tem uma visão bem particular sobre o bem estar que os casamentos trazem ao homem.

— Okay. Você acha que ele nos escutaria? Que aceitaria abrir mão do casamento e apoiar o fim da tradição da minha família?

— Não sei. Mas acho que a família do noivo, tendo algo contra a tradição, deve pesar no julgamento da sua avó. E se seu pai mantiver a palavra da fusão mesmo sem um casamento, não vejo motivos para George Campbell declinar.

Precisa pensar sobre aquela ideia de Bruce. Não conhecia seu pai, nem mesmo quais eram seus pensamentos reais sobre aquele casamento tradicional, mas tinha de concordar que valeria o esforço de tentar uma conversa com o Sr. Campbell, se isso pudesse ajudar em qualquer coisa.

— Tudo bem, podemos tentar. Como falamos com ele?

— Você pode ir comigo para York pela manhã. Eu estou passando o natal com ele e acho que seria uma data perfeita para se conversar algo familiar.

York. A ideia de subir em um carro e viajar até a cidade não era ruim, qualquer pessoa que estivesse visitando a Inglaterra pela primeira vez (como eu) se sentiria muito feliz em poder visitar um local tão icônico. Mas havia um pequeno vestígio de borboletas no estômago que me impediam de dizer sim para Bruce e correr para arrumar as malas.

Um pequeno vestígio do destino...

— Não precisa se decidir agora, Kate. Eu vou pagar por um quarto para esta noite, já que não pretendo pegar estrada agora e descansar um pouco. Podemos decidir logo de manhã, no café. O que você acha?

— Perfeito — minha resposta foi muito rápida.

Bruce sorriu e se piscou para mim, apanhando minha mão antes de se levantar.

— Vai dar tudo certo. Vamos resolver isso antes da virada do ano.

— Espero resolver isso amanhã — suspirei.

— Não deixa de ser antes do final do ano — ele riu e se afastou, indo diretamente para o balcão.

Meus olhos estavam analisando as costas de Bruce enquanto assinava os papéis de check-in, mas minha mente estava atordoada com algumas objeções claras do meu plano mirabolante de como deter um casamento impossível: a) passar o natal em York estava fora de cogitação, b) passar o natal em York com Bruce Campbell estava ainda mais fora de cena, c) passar o natal em York com Bruce Campbell e correndo o risco de esbarrar com os irmãos Valois, seria uma catástrofe!

Se eu me questionava o porquê de ter deixado passar todas as minhas boas chances de desmentir aquela história ridícula de noivado com Bruce para Luke e Leo? Muito. Agora ainda mais, pensando que viajaria com o Sr. Campbell por três horas e estaria destinada a conversar com seu pai sobre o motivo de todo o infortúnio: o maldito casório.

Bruce apanhou as chaves de seu quarto no Bristol e subimos de elevador. Não conversamos mais. Minha cara de poucos amigos enquanto remoía todos os problemas em que estava envolvida, não era das melhores, e Bruce parecia ter um bom faro para saber quando deveria ficar quieto.

Gentilmente ele me deixou na porta do meu quarto, se despediu educadamente e rumou para sua porta, apenas duas à direta da minha. Perto demais para alguém que até pouquíssimo tempo era considerado meu inimigo. Mas naquela questão, tínhamos de fazer aquela breve aliança em nome do bem estar da minha família e da minha pobre consciência. Kennedy Dalton me agradeceria pelo resto de seus dias de pai.

******

O telefone do quarto tocou por volta das nove da manhã, conforme o visor do celular avisou quando me espreguicei por baixo das cobertas. Depois de demorar em dormir, queria que o mundo caísse na minha cabeça ao invés de ecoar entre os meus ouvidos com aquele trinado irritante do aparelho fixo no criado mudo.

A recepção anunciava que o horário do café da manhã mudaria a partir daquela segunda feira cinzenta, antevéspera de natal; sendo assim eu tinha apenas quarenta minutos para descer e comer alguma coisa antes de fecharem o restaurante. E também me avisavam de que havia uma entrega para mim lá embaixo, mas não me senti muito animada para qualquer surpresa. Já conseguia imaginar que Bruce devia ter comprado algo caro e chique para me agradar e tentar se desculpar por ter destruído uma boa parte da minha vida no último ano.

Ele teria que comprar um novo Titanic se quisesse começar a se desculpar direito. E Leonardo DiCaprio teria de estar nele.

Aproveitei o tempo entre escovar os dentes e domar meus cabelos, para enviar uma mensagem de voz para Adria explicando sobre a ideia de Bruce, York e o senhor Campbell-pai. Tinha de mantê-la atualizada sobre meus movimentos agora, se esperávamos que os planos dessem certo.

Adria apenas respondeu, digitando:

“É uma tentativa válida, princesa, mas tenha cautela. Coloque roupas de frio na mala, a previsão do tempo diz que vai nevar. E não se esqueça das roupas que compramos, não leve nada que você usaria normalmente! Beijos!”

“Não leve nada que você usaria normalmente”? Será que minha irmã estava me dando uma indireta que meu gosto incomum por estampas de bichinhos e galochas amarelas estava fora de questão? Ela tinha sorte de que eu não havia trazido as galochas.

O apoio de Adria me deu alguma coragem. Separei as roupas quentes sobre a cama, meias, casacos e luvas, esvaziei a mala e fiquei olhando para tudo aquilo com um aperto no coração. Estava decidida. Nenhum pensamento sobre nenhum tipo de outra coisa até estar diante de George Campbell.

Refiz um discurso mental enquanto brigava para enfiar as botas de inverno dentro da separação e ignorei o sinal do celular que indicava a chegada de novas mensagens. Quando ganhei a disputa e consegui fechar o zíper da mala de rodinhas, vesti um casaco mais quente, calcei minhas sapatilhas e desci correndo para tentar apanhar o final do desjejum (ou passaria fome pelo restante da manhã).

Adria acertou. Londres estava muito mais fria naquele dia e todas as pessoas pareciam enroladas em cobertores particulares fofinhos e nada fashionistas, mas bem quentinhos.

Consegui comer alguma coisa que envolvia pãezinhos, queijo, salsichas, ovos e café expresso; nada saudável naquela manhã. Apanhei algumas bolachas de canela antes de sair do restaurante e Marco (o concierge), veio logo na minha direção com um largo sorriso simpático por baixo de seu bigode bem aparado.

— Senhorita Katerina, bom dia! — ele se curvou levemente, como um verdadeiro cavalheiro, me fazendo rir. — Espero que a recepção tenha interfonado para avisá-la da encomenda que chegou.

— Sim, eles me avisaram. Eu tinha esquecido completamente disso.

Marco seguiu na frente e logo estávamos no balcão, enquanto ele sumia pela porta logo atrás e me deixava trocando sorrisos sem graça com a telefonista ao lado. Começamos uma daquelas conversas bobas sobre “você está gostando da cidade?” e coisas assim, sem importância, até que Marco voltou do pequeno escritório carregando uma caixa retangular de papel branco, longa como um braço.

— Desculpe a demora, senhorita Katerina. Eu tomei a liberdade de deixar sua encomenda na geladeira.

A caixa foi posta sobre o balcão, exatamente onde eu podia ver através da sua tampa transparente. Um cartão escrito à mão estava colocado sobre um buquê de flores: tulipas vermelhas, as mesmas que Luke havia me presenteado no almoço do dia anterior.

“Sua capacidade de esquecer coisas me surpreende, Katerina. Coloque-as na água. Leo”.

Comecei a rir assim que consegui ler a nota, agradecendo o concierge pela gentileza de cuidar das flores para mim. Mas era estranho sair do saguão do Bristol abraçada com um buquê de tulipas empacotadas, sorrindo como se tivesse ganhado um bilhete premiado. Minhas bochechas estavam coradas quando me vi no espelho do elevador e juro que cantarolei até entrar no quarto e abrir as flores, relendo o papelzinho de anotações até encontrar um vaso na mesinha perto da janela, perfeito para colocar o buquê todo.

Essa sensação... Talvez nunca tivesse sentido alguma coisa parecida com aquela felicidade boba infantil de ver meu nome escrito com uma caligrafia tão feita às pressas. Tudo bem que o bilhete era um puxão de orelha e não algo que motivasse um sorriso, mas o mais próximo que me recordava de transmitir essa ansiedade adolescente eram os breves encontros de olhares que tive com um garoto de quem gostava no colégio.

Não. Não era a hora de ficar pensando sobre isso. Mesmo que o destino (esse jogador de dados da minha vida) estivesse me levando diretamente para York, preferia que não houvesse mais encontros inusitados com nenhum Valois. Minha vida já era bagunçada demais para adicionar taquicardias e sorrisos.

O celular bipou duas vezes e só então me lembrei dele. Havia mensagens de Samantha e algumas ligações de Bruce, provavelmente preocupado se eu havia morrido dormindo ou algo do gênero. Enviei um SMS avisando que estava arrumando minhas malas e o encontraria no saguão em alguns minutos, ele entenderia que aceitei sua proposta.

Durante a descida do elevador, comecei a ler as mensagens de Sam.

“Samantha Russell está sempre certa! Eu disse que sabia, Branquela! HÁ-HÁ!”

“Quero saber de tudo, tudinho mesmo, entendeu?”

“Branquela, já faz mais de uma hora que te mandei a última mensagem. Vai me dizer que esqueceu de carregar o celular de novo? Ou rolou alguma coisa com o seu “Carma”? Risos. Emoticon piscando”.

“Katerina Emily Dalton, responda minhas mensagens!”

A porta do elevador se abriu e Bruce estava sentado nos sofás da recepção, aguardando com seu melhor sorriso para me ajudar com a mala. Deixei as chaves com Marco e ajeitei o blusão sobre meu casaco antes de sair para a calçada do hotel. O vento frio de Londres estava cortante e havia poucas pessoas pela rua, mesmo sendo uma segunda de manhã.

Com a bagagem guardada no carro e uma modesta gorjeta para o manobrista, Bruce esperou que eu me acomodasse no banco do passageiro. Hesitei por um segundo, tomando fôlego como se fosse mergulhar em uma piscina muito funda, e no segundo seguinte estava fechando o cinto de segurança e me despedindo mentalmente do hotel pelo próximo dia.

Bruce estava animado e falava sobre como eu ia adorar York, enaltecendo as qualidades da cidade, contando sobre a história de sua fundação pelos romanos e a tomada viking, descrevendo as ruas e prédios medievais de que os moradores se orgulhavam em cuidar e preservar.

Mas alguma coisa nas mensagens de Samantha havia me deixado melancólica para não dizer arrependida, e as palavras de Bruce eram apenas parte do som ambiente. Sam havia me dito durante nossa ligação algo que resumia bem o que eu estava sentindo: “Você precisa desfazer esse mal entendido. Porque desse jeito vai perder todas as suas chances com ele”.

Eu queria alguma chance com ele? Era isso que estava me fazendo sorrir feito boba apenas por ver meu nome escrito num pedaço de papel ou por ter sido pedida como amiga? Podia mesmo estar caidinha por um inglês insensível, arrogante, insuportável...

Admito. Era um sinal muito claro.

Estava me apaixonando por ele.

E pensar que aquela mentira poderia destruir qualquer coisa que tinha conseguido ganhar do apreço de Leo, estava me machucando agora. Não era mais apenas aquele incômodo em ser mentirosa diante de pessoas tão íntegras, mas uma dor incômoda que avisava um erro que poderia me custar muito.

Uma chance. Qualquer chance. Mesmo que a ideia toda de me apaixonar pelo cliente Carma das quartas-feiras ainda soasse como uma maluquice da minha cabeça.

Ri sozinha e Bruce sorriu, um pouco perdido se eu estava sorrindo por conta de alguma coisa que ele disse ou por algo que tinha visto de engraçado pela janela do carro. Desconversei o assunto e enquanto ele voltava a falar sobre sua família e como seu pai tinha raízes britânicas e gostava de pescar, apanhei o celular para responder Sam.

“Sam, estou viajando para York. Longa história, mas te ligo assim que puder. Torça por mim.

Não rolou nada com o “Carma”.

Ainda.

Beijos.”

 

******

Minha relação com carros e viagens vem desde a infância. Todas as vezes que precisava dormir e ninguém conseguia me fazer ir para cama bastava uma volta de quarteirão dentro de um automóvel e voilá: Katerina Dalton estava dormindo. E era exatamente isso que acontecia ainda hoje, mais de vinte e sete anos depois e depois de pouco mais de três horas de viagem devido ao mal tempo.

Fizemos uma parada em um posto de gasolina para esticar as pernas e usar o banheiro, beber um pouco de água e abastecer os bolsos com petiscos e depois o trajeto seguiu diretamente até York, onde Bruce balançou meu ombro algumas vezes para que eu acordasse a tempo de ver a entrada da cidade.

Embora o céu estivesse quase tempestuoso de cinza, tinha que concordar com Bruce quando seu ânimo o transformou em guia turístico, falando sobre o lugar com tanta paixão. York era inexplicável.

A cidade recebia os carros através de um portal de pedra que dizia claramente que além dali, as coisas eram diferentes. E realmente eram.

Por cada rua que passávamos, praça e casa, ficava nítido que York havia se mantido em uma época perdida, quando cavalos e donzelas usavam aquelas ruelas de pedra ou contos de fada eram escritos. Os ares medievais estavam na imensa catedral que era vista de qualquer ponto da cidade ou na torre sobre uma colina, bem no centro de tudo.

 O rio cortava York ao meio, apenas adicionando ao cenário um caminho ladeado de árvores pesadas de geada, com um ritmo muito diferente da loucura movimentada de Londres. Ali parecia que mesmo se tratando de uma data festiva, os moradores não tinham pressa. Tudo de que precisavam estava ali, ao alcance de dez minutos de caminhada e nada mais.

— Gostou? — Bruce perguntou quando me notou muito quieta, com os olhos brilhando contra a janela do carro.

— É linda demais, Bruce! Parece outro mundo, um set de cinema.

— Todos têm essa reação na primeira vez. Eu adorava ver os turistas emocionados tirando fotos em frente à York Minster.

Não poderia discordar dos turistas. Se a catedral gótica já parecia maravilhosa à distância, conseguia imaginar como seria de perto, quem diria por dentro!

Tomamos um caminho que nos afastava das ruas centrais e logo Bruce dirigiu para uma estrada que deixava York para trás e nos levava através de campos e mais campos.

— A casa da minha família fica fora da cidade. Não se preocupe, serão apenas mais alguns minutos até lá, você vai adorar, Kate.

Não duvidava que fosse. O ar bucólico que os campos ingleses carregavam mesmo no alto do inverno, tornava tudo tão bonito e poético que era impossível imaginar que houvesse algum lugar de que eu não gostaria de ver.

O carro tomou uma estrada de cascalhos ao lado de uma pequena igreja de pedra e adiante, uma casa de campo de tijolos vermelhos se erguia no centro de um gramado bem cuidado, rodeada por um muro baixo de cercas vivas. As janelas brancas no primeiro andar estavam fechadas, mas as portas da varanda de vidro na entrada pareciam bem abertas diante de um carro preto luxuoso que já estava estacionado.

— Ele deixou a porta aberta de novo — Bruce resmungou antes de balançar a cabeça em negativa e respirar fundo, buscando meu apoio — Chegamos.

Desci do carro ainda observando todos os detalhes ao redor, como a imensa mesa com bancos na lateral da casa e a horta de ervas que estava coberta contra o frio intenso que fazia ali fora. Uma estufa dava as caras por trás do portão nos fundos, junto de um celeiro de tijolos de onde alguns empregados espiaram nossa chegada.

— Bruce? — Uma senhora apertou os olhos por baixo de um chapéu largo assim que passou pelo portão vindo até nós.

— Sra. Couts. Onde George se meteu dessa vez?

— Está no armazém, menino. Você perdeu o almoço, afinal. Deve estar morto de fome.

— Nós estamos bem, Sra. Couts — Bruce sorriu e passou o braço ao meu redor, me trazendo para mais perto — Esta é Katerina Dalton, uma grande amiga de Nova Iorque.

— Nova Iorque. Pelo visto não comem muito bem por lá, não é, menina? Tão branquinha, pobrezinha. Vou esquentar um pouco de caldo de carneiro e fazer algumas batatas em um instante, para manter esses ossos em pé.

A senhora Couts sorriu e segurou meu rosto, dando uma risadinha gentil depois de me avaliar. Ela tinha o rosto marcado pelo tempo e pelo trabalho, mas seus olhos eram afáveis, como uma verdadeira avó deveria ser.

— A Sra. Couts trabalha na casa há mais tempo do que me lembro, Kate — Bruce sorriu carinhoso, enquanto víamos a senhora carregar uma cesta repleta de batatas e repolhos para uma porta ao lado da casa.

— Me esqueci de avisar, menino — Couts parou antes de entrar, aproveitando para tirar seu chapéu e limpar as botas no capacho. — A senhorita Fontaine chegou de manhã. Ela está com seu pai.

O anuncio não me atingiu de imediato, mas foi diferente com Bruce. Seus ombros enrijeceram e o ar ficou preso dentro dele, prestes a mantê-lo sem respirar por alguns minutos. Depois ele fez um aceno de que havia entendido o que a Sra. Couts havia dito e afastou um passo, para me olhar.

— Kate, eu...

Ergui o indicador no ar na mesma hora.

— Não me importa.

— Me desculpe, eu realmente não esperava por isso, Kate.

— Bruce.

— Sim... — pela primeira vez, Bruce Campbell parecia perdido. Alguma coisa tinha dado muito errado em sua agenda pelo visto.

— Não. Me. Importa. — quase soletrei — Podemos entrar ou ir atrás do seu pai?

Fato. O Sr. Campbell ao meu lado estava em pane. Eu me lembrava muito bem de Beatrice Fontaine e seus “bons modos” na bomboniere do teatro em Nova Iorque. O vestido com nome de fruta que minha irmã havia conseguido para mim, também se lembrava dela (e me lembrava de que precisava pegá-lo na lavanderia assim que chegasse em casa). E Bruce sabia que minha memória não era tão ruim assim.

Ele achava que me devia alguma explicação plausível, algum pedido de desculpas pela ex (ou talvez atual) namorada estar perambulando pelas dependências da casa de campo da família. O que Bruce não entendia era que eu não queria saber absolutamente de nada daquilo. A vida dele não era da minha conta exatamente porque não tínhamos nada a ver um com o outro. Éramos livres.

Caminhamos ao lado da grande casa e passamos pelo portão de madeira no fundo, o mesmo por onde a Sra. Couts tinha acabado de passar, cumprimentando alguns homens que carregavam lenha para a casa e um saco com milho. Havia um gato velho enrolado sobre o assento de um trator vermelho, pouco antes das grandes portas do celeiro, que apenas abriu um olho para nos espiar e depois saiu correndo assustado, quando o estampido de um tiro ecoou por todo o lugar.

Me encolhi na mesma hora e Bruce começou a rir, estendendo a mão para que eu não me assustasse.

— Meu pai. Aposto que George está se gabando com suas armas por algum lugar.

Bruce estava certo. Atravessamos o celeiro e a estufa, repleta de hortaliças e legumes, para dar em um campo aberto e plano, coberto por vegetação rasteira escura e opaca. Adiante, um homem alto de cabelos grisalhos penteados para trás, vestindo uma jaqueta com lã de carneiro na gola e luvas, gargalhava ao apontar para uma desajeitada Beatrice Fontaine que não conseguia manter uma espingarda firme nos braços.

— Coloque forças nessas mãos, Trice! Nem parece que consegue segurar um copo com esses dedos!

Um conjunto de armas estava no gramado ao lado deles, assim como um atirador de alvos, onde ele se ajoelhou e apertou o timer.

— Prepare-se. Lá vem ele! Olhos focados, menina!

No fim do bipe do atirador, um alvo de argila foi arremessado no ar e Beatrice apertou o gatilho pouco tempo depois, mas a demora lhe causou um tiro completamente torto, que acertou uma ripa de madeira na cerca mais próxima.

— Desse jeito ela vai matar algum desavisado por aí — Bruce ergueu a voz, apenas para se fazer notar. E conseguiu atenção, claro.

Ver a cara de surpresa de Beatrice a me ver, não foi algo inédito. Mas assistir a reação de George Campbell quando pôs seus olhos em mim, foi uma cena que me lembraria para sempre.

Aquele homem alto, sisudo, de olhos cinzentos e rapinos, estava na minha memória assim como as ações da tal pianista ex-namorada logo ao seu lado. Eu me lembrava muito bem do rosto do Sr. Campbell-pai e pela forma com que sua testa criou vincos profundos e sua boca crispou, ele também se lembrava de mim...

E da garrafa de água que derrubei em seu jornal no aeroporto em Nova Iorque.

******

Eles apanharam as armas e o equipamento antes de nos cumprimentar. Beatrice andou para perto e fez uma tentativa de sorriso que quase ganhou dos meus piores repuxões musculares. Quem não odeia câimbras?

— Katerina, não é? Que prazer encontra-la novamente.

Sério? Fale por você.

— Não esperava vê-la em York, Beatrice — Bruce a encarou e ela conseguiu sorrir magnificamente diante dele, como se alguma coisa corresse pelas veias de Fontaine com a voz de Campbell a acertando.

Sério. Quem deu o direito dessa mulherzinha ter o sobrenome idêntico ao nome do meu restaurante favorito?

— Uma mudança de planos. Estava em Leeds para uma audição e tinha certeza de que encontraria algum Campbell na velha casa de York. E fiz muito bem em vir, pelo visto — ela olhou de canto para mim.

— Não precisa se incomodar comigo, “Trice”. Estou apenas de passagem.

— É mesmo? Que pena. Aposto que Bruce adoraria a companhia da amiga de Nova Iorque para o natal. Não é Bruce? Ou será que a senhorita vai passar as festas com seu amigo Lucas D’Orleans?

— Beatrice, por favor.

Bruce estava massageando a testa quando George empurrou uma mala com as armas contra seu peito. O senhor Campbell havia perdido qualquer traço das risadas que tinha dado há menos de um minuto e seu olhar poderia me perfurar se quisesse. Sequer deu atenção ao filho que tentou manter tudo aquilo entre os braços antes que caísse na grama.

— Que bom que voltou para casa, Bruce. Essa é a sua noiva?

Noiva?

— Noiva? — Beatrice grasnou.

— Katerina Dalton. Já tivemos o prazer de nos encontrar em outra situação — George estendeu a mão e me cumprimentou com força. Juro que engoli em seco.

— Infelizmente, uma situação muito constrangedora, Sr. Campbell.

— Vocês se conhecem? — Bruce e Beatrice questionaram juntos, estranhando a situação.

— Sua noiva é a desastrada que estragou todo o meu jornal antes do voo para Londres, como contei. Não me admira em nada que seja filha de Kennedy Dalton, senhorita Kate.

Quando é que o mundo vai parar de rir da minha cara daquela forma? De todos os bilhões de humanos no planeta Terra (e alienígenas por aí), o homem sem educação do aeroporto JFK tinha de ser exatamente o pai de Bruce Campbell e uma das minhas poucas esperanças de finalizar meu improvável noivado?

Eu estava perdida. Já conseguia escutar a marcha nupcial.

— Eu me desculpei sobre o acontecido. Foi um acidente, Sr. Campbell.

— Causado por sua falta de atenção. Onde se viu uma pessoa andar por aí com a cabeça no mundo da lua? Simplesmente parecia cega quando me acertou.

— Chega, pai — Bruce espalmou contra o peito do pai, afastando-o um passo de mim. Sua vergonha com a situação estava clara em cada movimento de seu rosto — Foi uma idiotice, Kate já se desculpou. O senhor foi grosseiro com ela e gostaria que se desculpasse.

— Humpf... — George bufou, ajeitando a alça da espingarda no ombro tenso. Cruzou os braços como um velho birrento e por fim expirou todo o ar guardado dentro dele, sem esmorecer o olhar duro sobre mim. — Está bem. Perdoe-me pela atitude grosseira, Katerina. Não acontecerá novamente.

George claramente não aceitaria que seu filho ficasse noivo de uma mulher desastrada, cega e que não tinha a companhia de pessoas decentes (se bem me lembro do discurso dele no aeroporto), o que significava que minha conversa com o orgulhoso senhor Campbell não seria muito longa e teria um maravilhoso final feliz.

Agora escutava o DJ desligando a marcha nupcial. Aleluia.

Seguimos todos pelo caminho de volta até a casa, um silêncio absoluto reinando. Era possível contar meus batimentos cardíacos e tinha certeza de que estava pálida e com cara de idiota, como comumente acontece quando passo por embates como aquele. Bruce apanhou minha mão e sorriu de lado, apenas um breve movimento, para não me sentir tão sozinha.

Mas eu estava sozinha. Mesmo aceitando aquele gesto de Bruce que tentava dizer “tudo vai ficar bem”, meu íntimo entendia que aquelas pessoas não me queriam ali, não me achavam suficiente, não gostavam da minha presença de nenhuma forma. E estava incluindo Bruce nesse pensamento.

Me perguntava se alguma vez desde que me conheceu, Bruce Campbell realmente gostou de mim. Será que alguma vez ele sentiu aquele riso bobo e infantil brotando dentro do peito apenas por escutar a minha voz ou me ver? Será que machuquei seu coração quando desdenhei de todos seus convites ou nunca retornei suas ligações? Seria ciúmes que o fez me levar ao concerto ao invés de deixar Leo e Luke me apanharem?

Não, eu não alimentava nenhuma pequena esperança com Bruce. Embora ele demonstrasse ser um homem bom, mesmo com falhas, ainda havia uma peça obscura em seu quebra cabeças que eu não conseguia desvendar e sabia que estava intrincada com as peças que formavam outro mistério: Leopold.

Os dois homens, de uma forma estranha, estavam ligados e inexplicavelmente surgiram no meu caminho ao mesmo tempo. Um por obrigação e o outro por acaso. Ambos com opiniões bem claras sobre mim.

Até quando eu conseguiria esperar para escutar a verdade sobre o que houve entre eles?

— Vamos entrar, Kate. Está ficando mais frio aqui fora — Bruce interrompeu meu pensamento antes de entrarmos pela porta lateral da casa, diretamente para uma larga e linda cozinha com armários de madeira, balcões de mármore escuro e uma larga vidraça aberta para o campo, onde algumas vacas pastavam.

A Sra. Couts estava no fogão, remexendo uma panela de ferro que borbulhava um caldo com batatas, carne, salsinha e couve escura. Seus cabelos brancos estava imaculados em um coque e seu blusão de lã azul era repleto de desenhos de carneiros e pastores.

— Pedi para o Peter pegar suas malas e levar para cima, menina. O quarto de hóspedes já está arrumado.

— Obrigada, Sra. Couts, mas eu não vou ficar.

— Claro que vai — George passou por nós, colocando as armas e a bolsa que estava com Bruce junto das coisas penduradas em cabides perto da porta. — A noiva do meu filho não vai dormir em nenhum pulgueiro na cidade. Temos quartos á vontade.

— Pai, preciso falar com você.

George parou para notar a urgência da questão nos olhos do filho e em seguida deu um soco brincalhão no ombro dele, voltando a rir como antes de me ver no campo.

— Alguma bobagem, eu aposto. Se for sobre dividir o quarto com Katerina, já aviso que somos muito tradicionais. Aqui não é a América. Para qualquer outro assunto, podemos conversar mais tarde. Eu tenho um encontro com Edward na cidade. Parece que ele quer discutir aquele negócio sobre lã mais uma vez. O velho não desiste.

— Pai...

O Sr. Campbell ergueu a mão no ar, um gesto rigoroso e imperativo.

— Conversamos mais tarde.

Bruce aquiesceu e se sentou em uma das cadeiras de carvalho ao redor da mesa da cozinha, desistindo temporariamente de tentar dialogar com o pai, que saiu para a sala adiante e sumiu pelas escadas. Por um momento, Bruce Campbell me pareceu um menino diante de um severo pai, obedecendo como um cãozinho.

Senti certa pena dele.

— Tudo bem. Você tentou. Nós podemos conversar com ele mais tarde.

Beatrice se sentou do outro lado da mesa e a Sra. Couts começou a colocar pratos e talheres diante de todos, insistindo que eu me sentasse ao lado de Bruce. Guarneceu a mesa com um pão sovado fresco e um pote de manteiga, azeite com ervas e algumas linguiças fritas frias, para beliscarmos antes do caldo ser servido.

Fiquei pensando no quanto seria obesa se morasse na Inglaterra.

— Então, vocês estão noivos — Beatrice murmurou, arrancando uma fatia do pão e besuntando de azeite.

— Não estamos — Bruce parecia irritado — Quantas vezes mais vou ter que repetir isso?

— Seu pai parece bem acomodado com a ideia de que você trouxe sua noiva para passar o natal aqui. Você está feliz em ser a noiva de Bruce, Katerina? — o sorriso ardiloso de Beatrice me lembrava uma cobra, aquele sorriso que não soube desvendar muito bem enquanto tomava o café na bomboniere. Meus instintos não estavam errados sobre ela desde o início.

— Nós não somos noivos. Tecnicamente falando.

— É mesmo? E como funciona essa coisa de “tenicamente”?

— Tecnicamente — corrigi. — Meus pais e o Sr. Campbell fizeram um acordo tradicional de casamento. Eu estou aqui para desfazer isso. Não quero ser noiva. Tampouco ele quer seu meu noivo.

— Você concorda com isso? — ela consultou Bruce.

— Nós conversamos sobre este casamento arranjado, Beatrice. Kate não concorda com as tradições de família e eu não vou obriga-la a isso. Somos adultos, nada mais razoável do que decidirmos nossos próprios destinos.

— É isso que você quer falar com seu pai?

Não, gênio. Vamos discutir se ele gosta de gerânios ou rosas.

Fontaine não teve mais tempo de ter suas incríveis deduções sobre coisas óbvias, pois uma panela de ferro foi posta exatamente entre ela e Bruce, fumegando com batatas coradas e ervilhas. O cheiro da carne e da comida quente era mil vezes melhor do que escutar aquela conversa por mais algum tempo.

A Sra. Couts serviu o molho espesso e corado em cada um dos pratos, sem perguntar quem aceitava ou não. Depois tirou do alto do armário de cozinha um queijo duro e amarelo, com uma faca, caso alguém quisesse se servir. Limpou as mãos no avental branco com barras de crochê vermelho e sorriu, satisfeita como qualquer boa avó, antes de nos deixar sozinhos.

A quietude bem vinda do som dos talheres contra os pratos de louça era uma música para os ouvidos e um deleite para o estômago. A comida de York tinha gosto de casa, algo aconchegante que poderia ser culpa do carinho da Sra. Couts ou os temperos da estufa.

Beatrice comeu uma quantidade misera e se levantou depois de limpar a boca em um guardanapo, deixando a cozinha sem nenhuma palavra mais. Com a saída da incomodada (e incômoda) pianista, dei mais uma colherada no caldo antes de comentar baixo:

— Agora é a parte em que você me conta que Beatrice Fontaine é sua ex-namorada, Bruce.

Ele quase engasgou. Ops, timing errado?

— Devia ter te contado antes.

— Pois é. Quando ela virou duas xícaras de líquido quente em cima de mim, talvez. Ou quando você a salvou com guardanapos e me deixou na humilhação completa. Eram ótimas ocasiões.

Eu estava calma. Para cada frase, um pedaço de batata, uma mordida na carne, uma colherada de caldo. Mas eu poderia virar a panela em Beatrice e considerar um empate... Por que não pensei nisso antes dela sair?

— Não era importante, Kate. Nós não estamos juntos há algum tempo, só que ela ainda não superou.

Nem deu pra perceber, Bruce. Quase nada.

— Gostaria de saber qual será a ocasião em que você vai passar a me contar as coisas. Será que eu posso confiar mesmo em você? Você não vai se esquecer de me contar mais nenhuma coisa importante antes de provavelmente se casar comigo?

— Eu não estou mentindo pra você.

— Você poderia ter dito para o seu pai que não éramos noivos, mas você supostamente saiu daqui para buscar sua “noiva” em Londres. Estou perdendo algum detalhe?

— Eu não contei para ele que rompi o acordo, está bem? Não tenho uma relação linda de pai e filho como você tem com seu pai. George não se importa. Ele quer fundir a empresa, ter dinheiro suficiente para as próximas gerações e passar o resto dos dias dele aqui, atirando em vasos de argila voadores. Satisfeita?

— Sim. Mas da mesma forma que eu não tenho nada a ver com a sua ex-namorada neurótica, também não tenho nada a ver com seu problema familiar, Bruce. Estou tentando resolver um problema em que seu pai e o meu, nos meteram. Só que acho que na realidade você está gostando dessa história toda de casamento. Está mentindo pra mim quando diz que respeita minha opinião, não é?

— Eu não estou mentindo, Kate. Olhe, mais tarde vamos conversar com o George, colocar tudo a limpo e acabar com esse casamento completamente.

Nos encaramos. Eu não estava satisfeita com aquela resposta. Não conseguia acreditar que Bruce não soubesse que Beatrice estava prestes a chegar à casa de campo, assim como não conseguia engolir aquele papo de que o problema paternal havia o impedido de esclarecer o assunto do noivado. Aquilo tudo estava me incomodando. Precisava sair dali.

Deixei o prato de lado. Meu apetite tinha acabado (a Sra. Couts que me perdoe) e saí para frente da casa, para andar até perto do carro. Era um momento de questionar minhas escolhas. Talvez York tivesse sido uma daquelas péssimas.

Bruce surgiu pela varanda e se aproximou devagar, as mãos enfiadas nos bolsos de sua calça jeans, chutando algumas pedrinhas do calçamento.

— Quer sair daqui? Ir para York?

— Sim.

— Vou pegar suas coisas — ele deu as costas, mas deixou a chave do carro para que eu entrasse e ficasse longe do frio cortante.

Ia nevar, com certeza.

******

Sem conversas, sem nenhuma palavra, sem indicações ou tentativas de boa educação e cavalheirismo, Bruce Campbell dirigiu para a cidade, deixando o carro em um imenso estacionamento no centro da cidade, bem aos pés da Clifford’s Tower.

Algo tão medieval e fantástico quanto uma torre, erguida no topo de uma colina, contrastando com cada carro popular, van e ônibus no centro de York. Um belo lugar para se pensar em paradoxos.

Caminhamos alguns minutos lado a lado, até uma rua muito pitoresca repleta de casas decoradas e janelas que permitiam ver as árvores decoradas no interior. Ali havia diversas pensões, todas próximas umas das outras, bastando apenas que se escolhesse um. Mas graças à proximidade do natal, encontrar uma vaga foi bem mais difícil do que pareceu.

Depois da quinta tentativa e de uma indicação local, consegui um cômodo modesto no Knight’s Inn. Um bom quarto com cama e banheiro privativo com direito a café da manhã. Era o suficiente, não pretendia ficar em York mais do que aquele dia e logo na manhã da véspera de natal subiria no primeiro ônibus da National Express para Londres, mesmo que estivesse com uma nevasca lá fora.

       Bruce ajudou com a bagagem e ficou alguns minutos conversando com os donos da pensão, conhecidos da cidade. Disseram que em York todos se conhecem e eu não duvidei. Não devia ser nada diferente de alguns lugares no mundo, que como a avó de Sam dizia “é como uma cidade pequena, basta você arrotar fora da janela que alguém sempre vai estar vendo”.

— Quer tomar um café? — Bruce convidou, antes de se despedir.

Não queria mais um pouco da companhia do Sr. Campbell filho depois daquela discussão, mas ele prometeu que era apenas um lugar que queria me mostrar enquanto eu estivesse na cidade. Seria apenas uma xícara de alguma coisa quente, alguns minutos e nada mais, para compensar pelo clima ruim entre nós.

— Não quero ficar desta forma com você, Kate. Vamos, só um café. Como da primeira vez que nos vimos.

— Está bem.

Aceitei. Não vi nenhum mal em ficar mais alguns minutos com quem estava me acompanhando desde o começo do dia. Além disso, estava em York e por pior que fosse meu humor e maiores que fossem meus problemas, uma cidade medieval era sempre um motivo para se ficar animado.

O centro da cidade não permitia carros e poder caminhar pelo meio das ruas de pedras com aquela liberdade, era algo surreal. Tente andar no meio da via na Quinta Avenida de Nova Iorque sem morrer. Um desafio e tanto.

Tantas lojas, tantas coisas diferentes, lembrancinhas, mercados, grifes. Tudo colocado em vitrines de época, iluminados com a luz do dia nublado, com tanta gente de um lado para o outro, correndo para encher as geladeiras e sacolas para o natal. O clima cativante fazia um sorriso em qualquer rosto. Ou quase todos, no meu caso, depois disso:

— Eu ia me casar com ela — Bruce suspirou, como um desabafo.

— Casar? — fui pega de surpresa, enquanto olhava a vitrine do tal café maravilhoso, chamado Betty’s. Uma cascata de chocolate simplesmente vibrava, pedindo uma colherada. — Desculpe, Bruce. Não entendi.

— Beatrice. Eu ia me casar com ela.

— O que te impediu? Ela não ser filha de um descendente dos barões do algodão creole?

Bruce virou o rosto, as mãos ainda nos bolsos, a defensiva clara.

— Eu acertei mesmo? — me indignei. — Não acredito nisso, Bruce. Agora começo a dar razão para Beatrice ser tão rancorosa. Você a deixou por minha causa!

— Você não depende da sua família. Eu tenho um nome a zelar, Katerina. Eu comando a empresa que é do meu pai e logo, será minha. Não posso dar as costas para um legado por conta de...

— Amor? — procurei os olhos dele, entrando diretamente a sua frente — Você deixou Beatrice por causa de um negócio, Bruce. Dinheiro não é nada.

— Espere, você não pode me julgar. Onde está aquela mulher que defendeu ardorosamente que não acredita no amor?

— Eu acredito no amor, só não acredito em finais felizes, Bruce. Ninguém é feliz para sempre. Existem obstáculos na vida, problemas, privações, a realidade batendo na porta. Ninguém é princesa da Disney para cantar uma canção e ter passarinhos fazendo as tarefas. Mas isso não quer dizer que eu defenda você deixar uma pessoa por quem havia sentimentos em troco de um monte de notas e moedas!

— Eu não a amo — ele afirmou.

— Então é ainda pior, Bruce. Você a iludiu e ainda está iludindo todas as vezes que se encontra com ela e é gentil como foi no concerto, ou permite que ela se aproxime, como hoje...

— Chega, Katerina — ele ergueu o tom da voz, atraindo alguns olhares na rua — Você queria que eu fosse verdadeiro, estou sendo. Mas isso não te dá o direito de me julgar. Eu não sei quem foi que te disse qualquer coisa sobre minha relação com Beatrice, mas a partir de hoje, esse assunto cabe somente a mim e a ela, entendidos?

Como um ponto final, Bruce entrou pelas portas de vidro da Betty’s e se sentou na primeira mesa ao lado da vitrine confeitada. Dei um sorriso murcho para algumas senhoras que passaram por mim para também entrar no café e fui logo atrás, sentindo um aperto no peito que era frio e desagradável.

Seria um dia muito frio. Era bom pedir algo quente e doce para balancear.

A tarde seria longa, tinha certeza. Por mais que o clima natalino do lado de fora do café ainda inspirasse pequenos sorrisos, as confeitarias e ruas medievais convidassem para um passeio pelas calçadas de pedras repletas de ares novos; tudo que eu queria era afastar o amargor que aquela conversa com Bruce tinha deixado no topo da minha língua. E nem mesmo o chocolate quente com canela estava fazendo esse trabalho corretamente.

De fato, nada parecia capaz de acertar completamente as coisas entre nós. Parecia que sempre haveria rebarbas em cada assunto que tentasse (em vão) resolver com o gentil Sr. Campbell. E talvez Bruce fosse assim mesmo: apenas um homem bonito, educado e gentil, que parecia viver entre o limite da minha desconfiança e da repleta verdade das coisas.

Ele parecia chateado, girando a colher em falso dentro da xícara de café, os olhos perdidos no líquido fumegante diante dele. Sabia que não tinha nenhum direito de me meter naquele assunto, de revirar o passado de duas pessoas que haviam cruzado meu destino por acaso. Mas eu desejava confiar em Bruce. Queria que a qualquer momento ele desse um de seus sorrisos de comercial de pasta de dente e me dissesse "pela madrugada, Kate", como se tudo fosse ficar bem.

Talvez não fosse ficar.

Passei a observar o movimento dentro do café, as garotinhas que apertavam os narizes vermelhos contra a vitrine, apontando a cascata de chocolate que abria o apetite. Um pequeno grupo de senhoras que dava risadinhas em frente ao balcão, cada uma delas segurando um livro de capa rosa chá, distante da dupla de senhores que estavam juntos, porém mais entretidos nos próprios jornais do que em qualquer conversa.

— Quer provar algum chocolate, Kate? Os doces de York são ótimos, garanto — Bruce quebrou o gelo depois de tanto silêncio, um meio sorriso.

— Talvez. O que você me indica?

— Me espere aqui. Vou buscar alguns dos meus favoritos.

Ele se levantou um pouco mais animado e fiz um esforço de sorrir de volta, educadamente. Como eu queria estar em casa, mesmo estando em um lugar que parecia saído de um conto de fadas. Sim, eu preferia minhas cobertas, meu gato e meus livros, do que George e Bruce Campbell e todos os problemas que me causavam.

Bebi mais um gole do chocolate quente e roubei um pedaço da torrada dentro da cestinha na mesa, distraída enquanto Bruce não retornava. Então passei a escutar a voz dele misturada com outras, dentre elas uma particularmente animada: uma das senhoras que estava diante do balcão tinha acabado de abraçá-lo forte e agora apertava uma de suas bochechas, enquanto as outras riam.

Nada mais comum, não é mesmo? Bruce havia passado grande parte de sua juventude em York, seu pai era filho de um influente morador local e seu sobrenome não era estranho. A mulher devia conhecê-lo desde pequeno ou algo assim.

Optei por não dar importância.

Notei quando ele começou a se aproximar da mesa e deixou um prato repleto de bombons sortidos, mas não se sentou novamente.

— Kate, deixe-me apresentá-la a uma pessoa...

Ergui os olhos do chocolate e limpei a boca no guardanapo. A senhora que estava com Bruce era muito elegante, cabelos loiros curtos e um sorriso contagiante. Sua blusa de frio tinha amores-perfeitos bordados perto da gola e o livro que ela segurava contra o peito, era nitidamente "O Grande Gatsby", edição da Penguin.

— Senhorita Katerina, eu suponho — ela estendeu a mão, entusiasmada e me levantei para cumprimentá-la, por educação. Aida Dalton não tinha criado uma caipira.

— Sim, Katerina Dalton — ri quando ela balançou minha mão e sorriu ainda mais, entre pequenos risinhos.

— Você é de fato uma garota muito bonita. Exatamente como eu imaginei.

— Desculpe... — estranhei, óbvio — Nós nos conhecemos?

Bruce e a mulher riram juntos e ela deixou a minha mão, entreolhando-se com ele.

— Esta, Kate, é a Sra. Janet...

— Janet Arietha Thomas Valois D'Orleans, minha querida.

Ai. Meu. Deus.

— A senhora é... — gaguejei.

— Mãe de um espevitado ruivinho que falou de você mais do que de toda Nova Iorque — ela riu novamente e se aproximou, cobrindo a boca para cochichar — e de um tal mau humorado "Próspero", acredito."

Definitivamente, em algum lugar do Cosmo, uma entidade bêbada do destino tentava equilibrar a minha vida do topo de uma garrafa de tequila após um dia tomando margaritas na beira da piscina do universo. Só tinha aquela explicação em mente no momento, além da vontade insana de sair correndo pela porta da Betty’s e desaparecer no interior de Yorkshire para viver em uma fazenda com outro nome que não fosse Katerina Dalton.

Mas como uma fuga em estilo não estava no menu, tinha de lidar com o amplo sorriso da Sra. Valois bem diante de mim, falando comigo como se fôssemos amigas de colégio, dividindo o infame apelido de seu filho mais velho. Que lindo.

— Minha nossa... — estava corada. Sentia minhas bochechas ardendo como uma chapa George Foreman — É um prazer conhece-la, Sra. Valois.

— Janet. Me chame de Janet, por favor. Não sabia que vinha passar o natal em York, Kate. Posso te chamar de Kate, não é? Lucas falou tanto de você neste último mês — ela cantarolava as palavras com seu sotaque inconfundível. Ninguém negaria que era realmente mãe do Carma.

Para quem mais Lucas Valois tinha passado suas semanas falando sobre mim? Por quê ela sabia sobre “Próspero”?

— Claro, Janet — quase gaguejei. Estava tremendo. Agora entendia de onde vinha toda a energia e alegria de Luke — Ele falou sobre mim? Lucas é um garoto maravilhoso.

— Sim, meu pequeno pedaço de sol — ela suspirou de orgulho do filho — Ele disse que convidou você para o natal diversas vezes. Ficou tão contente quando soube que você estava em Londres, foi uma surpresa e tanto, mas eu não sabia que estava com o seu noivo. Ele não mencionou nada...

Noivo? Ai, minha nossa...

— Eu fui resgatá-la em Londres hoje cedo, Sra. D’Valois. Kate ia passar o natal com a irmã, mas por um infortúnio as duas não poderão aproveitar o feriado. Nada melhor do que raptar minha noiva para conhecer York, não é?

Bruce estava me salvando? Oh, isso me dava medo.

Janet quase não prestou atenção em toda a explicação de Bruce. Pareceu mais interessada em acenar para as amigas com seu Grande Gatsby e mandar pequenos beijos, prometendo para todas que a reunião do próximo mês seria imperdível.

— Clube do Livro — ela se explicou para mim. Estava realmente ignorando Bruce ali como se fosse parte do design da Betty’s — Lucas me disse que você trabalha em uma livraria, Kate. Deve amar livros!

— Sim, na Barnes & Noble. Não tem como amar mais os livros — rimos juntas. Oficialmente já gostava de Janet tanto quanto gostava de Luke.

— Ah, então com certeza você vai amar... Ah sim, só um segundinho antes que eu me esqueça — Janet estendeu o indicador, antes de se virar de lado e colocar a mão sobre o ombro de Bruce. — Você vai me levar até em casa, está bem?

— Levar a senhora... — Bruce estava entretido pegando um bombom da mesa já que ninguém tinha lhe dado qualquer crédito para seu valente salvamento da donzela em apuros e se surpreendeu com aquela questão, basicamente uma ordem.

— Para casa, Bruce. Está ficando surdo, rapaz? Você sabe bem onde fica, aquele casarão velho não mudou de lugar no último século, não vai ser agora que vai criar pernas e sair andando por aí como se fosse a casa de Baba Yaga, não é? Collins está ocupado demais por aí e eu tenho que estar em casa até as seis para servir o chá. Você se lembra do quanto o Sr. Valois fica chateado quando o chá atrasa, não é?

— Meu carro está estacionado... — Bruce tentou articular, mas não tinha muito jeito com isso. Bem vindo ao clube, Sr. Campbell.

— Na Clifford’s Tower, com toda a certeza. Vamos caminhando. Está um dia muito bom para aproveitar e caminhar. Conheço uma venda de castanhas torradas no caminho que com certeza Kate vai amar experimentar.

Janet se afastou da mesa levando Bruce com ela como um garoto seguro pelo braço até o caixa do café, para acertar nossos pequenos pedidos o quanto antes. Ela também era um raio de sol naquele dia cinzento e terrível, pena que não sabia.

Saímos do Betty’s juntos, dividindo os bombons que Bruce havia comprado. Janet falava divertidamente e apontava cada uma das lojas que adorava comprar, desde abotoaduras e cadarços, até óleo de peixe (para quando os meninos ficavam muito gripados ou alguma máquina enferrujava, o que viesse primeiro). Com sua companhia, os minutos que separavam as shambles — as ruelas de pedras de York — do estacionamento, ficaram muito pequenos. Em um salto estávamos ao lado do carro, cada um carregando um cone de papel pardo fervendo, esfumaçando com as castanhas quentinhas lá dentro, banhadas em caramelo.

O plano era simples. Deixaríamos Janet Valois em sua casa e depois Bruce voltaria para me deixar no Knight’s Inn bem a tempo de encontrar George para o jantar e ter a conversa fatídica. Ainda nesta noite saberia qual a resposta do Sr. Campbell e poderia pensar no que fazer definitivamente pela manhã. Tudo daria certo.

Bruce dirigiu para fora da cidade, o mesmo caminho que fez antes para chegar até a casa de campo, passando pela igreja de pedra que vi na entrada da propriedade. Porém ia além da pequena vicinal de cascalhos e adentrava por outros campos, que ficavam lindos com o começo do anoitecer, mesmo o dia estando mais e mais frio e o céu ainda mais cinza.

Uma grande área de árvores, carvalhos e pinheiros, se abriu ao lado do carro como um corredor e dali o carro trepidou ao alcançar uma entrada de paralelepípedos que passava por baixo de um arco de metal recoberto por heras, onde os portões abertos davam espaço para a vista de um imenso casarão jacobino de tijolos aparentes, com grandes vidraças e janelas em seus três andares.

— Esse lugar realmente não muda nunca, Sra. D’Valois — Bruce sorriu, aparentemente com uma lembrança boa. Pena que sua dicção continuava péssima.

— Eu disse que a casa ainda era a mesma, não disse? Está firme e forte desde o século XVII, não vai cair hoje — Janet riu antes de se debruçar para trás, apenas para analisar a minha cara espantada com aquele cenário. — Gostou, Katerina?

— Nem sei o que dizer.

— Me diga quando estiver lá dentro. Eu ainda me sinto como da primeira vez que entrei nesta casa.

— Lá dentro? — Bruce questionou exatamente o que eu tinha pensado naquele instante em que manobrou uma pequena curva para o carro parar diante do lance de escadas que levaria até a porta principal.

— Vocês não vieram até aqui apenas para me deixar na porta e dar as costas, não é? Não seria nada educado. Estou convidando os dois para o chá, vai ser ótimo receber algumas visitas.

Janet não esperou Bruce dar a volta e abrir sua porta. Era independente demais para isso. Simplesmente desceu, ajeitou a saia até os joelhos, arrumou os ombros, apanhou seu livro e fez um sinal para mim.

— Vamos, Kate. Levante logo daí e me siga.

Ela falava como se fosse minha mãe. Tudo bem que Janet era milhões de vezes mais gentil do que Aida, mas me senti como uma criança diante dela, exatamente como Bruce devia ter se sentido no café. E não me surpreendi de levantar correndo, deixar as castanhas no banco e fechar a porta do carro para subir os degraus de pedra logo atrás dela, ainda abobalhada pela dimensão daquele lugar.

 Se York tinha saltado de um livro de conto de fadas, ali certamente poderia ser o lar de um nobre, onde criados sairiam pelas portas uniformizados e candelabros brilhantes penderiam do teto. Não era exatamente isso, mas o deslumbramento equivalia.

Toda a frente do casarão era repleta por um gramado perfeito e jardins circulares que provavelmente tinham flores maravilhosas na primavera. As grandiosas janelas tinham cortinas claras e leves que podia ver dali e a porta da frente, de madeira maciça e escura, marcada com o brasão dos Orleans; uma coroa sobre três flores de lis.

— Santo Edgar Allan Poe... — suspirei, parando pouco abaixo do último degrau, enquanto Janet batia a aldraba contra a madeira, esperando alguém atender.

— Vamos homem! Já estou atrasada demais para sua moleza não abrir a porta — Janet suspirava acirradamente — Collins! Collins!

— A senhora não disse que Collins... — Bruce se juntou a nós, antes de ser interrompido novamente.

— Disse? Ora, com certeza ele já deve estar em casa. Ele sabe da hora do chá. Collins! — Tornava a gritar, até que o ferrolho da porta gemeu e chiou, abrindo uma imensa fresta que permitia ver metade do mordomo com seus olhos miúdos por trás dos óculos.

— Senhora, desde a cozinha até a porta, é um caminho nada revigorante para se correr. Paciência, sempre paciência.

— Meu amado Collins! — Janet abraçava o rechonchudo homem e beijava sua bochecha corada com carinho, antes de deixar o livro e as castanhas em suas mãos e seguir entrando e abrindo caminho — Trouxe dois convidados comigo, para o chá.

— Oras, se não é a senhorita Katerina!

— Collins, que bom te ver — ele me abraçou e rimos juntos, sinceramente. Todas as nuvens do dia haviam se dissipado e nenhuma lembrança de estar por um acaso, na casa dos Valois, me incomodou.

— Senhor Campbell — eles se cumprimentaram com seriedade, antes de Collins abrir completamente a porta, para dar espaço à nossa entrada.

Acho que não estava psicologicamente preparada para aquilo e nem nunca estarei. Janet não estava errada quando disse que não saberia o que dizer quando estivesse lá dentro.

Tudo era inconcebível para mim. O piso claro repleto de ornamentos e as paredes revestidas de madeira avermelhada e tecido estampado, cada móvel antigo, cada lustre e lamparina presa nas paredes. Não era de se duvidar que um lugar daqueles tivesse criado uma criatura tão incomum quanto Leo, que parecia viver com um dos pés em uma época tão distante da nossa.

— Eu nunca me acostumo — Janet sussurrou do meu lado, quando me viu andando em círculos pelo hall, encantada — Todos eles são parentes do meu marido, cada um destes quadros. Todos Orleans.

As pinturas não tinham passado despercebidas. Cada uma delas parecia de uma data diferente na história, com roupas distintas e nomes pomposos e nobres. Uma grande armadura estava erguida ao lado de um relógio de torre e tentava manter minhas mãos para trás para não tocar em nada ao redor.

— Ainda me pergunto como conseguem limpar tudo isso, Sra. D’Valois — Bruce riu.

— Claude tem uma equipe muito eficaz, Sr. Campbell — Collins respondeu, fechando a porta atrás de nós. E com um pequeno sorriso, se retirou por um dos arcos laterais, por certo para cuidar do chá que Janet estava tão preocupada.

— Ora, fique a vontade. Eu vou tratar com Claude e Mary na cozinha, portanto não se preocupe com a minha demora — Janet apanhou minhas mãos — E pode tocar nas coisas. Não são feitas de vidro e se forem, não eram para estar onde estão. Com exceção das vidraças, é claro.

Como não podia sorrir com aquela posição de uma mulher que na minha mente, devia ser uma mulher amarga e solitária, digna das crises de mau humor do filho?

Ela ainda piscou para mim antes de subir as largas escadarias de madeira que começavam logo no centro do hall e abriam dois caminhos, um para cada lado. Bruce estava rindo baixinho, parecia entretido com toda presença de Janet.

— Já tinha me esquecido de que ela era assim.

— Ela é maravilhosa — sorri, espiando dentro de um vaso de louça francesa, que estava em um pedestal.

— Um tanto impertinente, no meu ponto de vista.

— Não diga isso. Ela nos convidou para o chá, está sendo muito gentil.

— Claro — Bruce pausou, caminhando até o corredor da lateral e sentando em um divã de veludo escarlate que devia valer meus dois rins vendidos no mercado negro. Na parede sobre sua cabeça havia dezenas de porta retratos — Agora me diga uma coisa, Kate. Quando foi que você contou para o jovem Lucas que nós éramos noivos?

A pergunta de Bruce gelou meu sangue, mas tentei não transparecer ou deixaria um caríssimo bibelô de cristal saltar da minha mão diretamente para o chão.

— Não contei isso para Luke. Contei para o irmão dele.

— “Próspero”? A Sra. D’Valois me disse no café que adoraria conhecer minha noiva, de quem tanto Lucas e Leopold falaram...

Franzi as sobrancelhas. Bruce estava blefando, era impossível ele saber daquele apelido. Não estava entendendo o motivo, mas algo me dizia que aquele ataque tinha a ver com a nossa discussão.

— Você chamou D’Valois de “Próspero” quando estava dentro do carro comigo naquela noite depois do concerto, se lembra? Minha memória não é ruim, Kate. É um apelido carinhoso?

Como Bruce se lembrava disso? Foi apenas um momento, algo muito rápido.

— Desde quando você se importa? Leo e Lucas não têm nada a ver com nosso problema.

— Desde que você esteja mentindo para mim também, Kate. Eu estou prestes a arriscar meu pescoço, minha carreira e minha posição para acabar com esse casamento de mentirinha. Mas se você sair por aí dizendo que somos noivos, vai ser difícil de fazer isso, ainda mais quando você parece tão íntima de “Leo”. Onde ficou o Sr. D’Valois... Aliás, Valois. Falha na minha dicção, não é?

Santo Dickens. Bruce não tinha apenas uma boa lembrança, mas parecia guardar algumas mágoas de mim.

— Você está sendo um idiota. Foi apenas uma coisa que eu disse em um momento de irritação, não achei que...

— Todos iam saber? Mas eles sabem, Kate e pelo visto acreditam bastante que nosso noivado existe. O que me incomoda, é que você esteja mentindo para mim, exatamente como estava pregando que eu fiz com você.

— Não menti pra você. Essa é a verdade.

— Não... — Bruce se levantou e mesmo que seu sorriso ainda fosse o gentil e belo sorriso, meu estômago doeu. Era um aviso estranho de perigo que só aumentou quando seus passos foram me obrigando a recuar até a parede — Você quer se livrar desse casamento não só pelo seu pai, pelo seu orgulho e sua liberdade sem finais felizes. Você quer se livrar do compromisso por causa dele, não é?

— O quê? — me irritei. Não gostava de estar acuada, menos ainda daquela mudança brusca nas atitudes de Bruce.

— Próspero. Você quer se livrar da tradição para poder correr para ele, não é? Kennedy Dalton é apenas uma desculpa para conseguir o que quer, usando essa proposta de filha de família preocupada.

— Você não sabe do que está falando, Bruce. Está parecendo mais uma crise de ciúmes infantil do que uma pergunta vinda de um adulto razoável. Me deixa sair — era uma ordem. Não gostava da forma com que ele estava me pressionando.

Bruce ergueu os braços e andou para trás com um sorriso vitorioso. Seus belos olhos faiscavam como um predador, algo que nunca havia visto até aquele momento e parecia um véu, que tinha permanecido oculto dos meus olhos destreinados.

Me afastei dele sem dar as costas, caminhando pelo corredor que não tinha ideia de onde poderia dar. Um intenso nó na garganta me incomodava e parei de andar apenas para engolir a súbita vontade de chorar. Estava em um pequeno átrio quando me apoiei na parede para sentir direito meus joelhos bambos.

Luke estava certo.

Recostei contra o papel de parede macio e ao invés de voltar a remoer aquela cena com o Sr. Campbell, me deparei com uma sequência de fotos de família na parede diante dos meus olhos.

Molduras douradas enquadravam cada imagem em preto e branco com cuidado, exatamente do tamanho recortado. Algumas eram antigas, de homens e mulheres de gerações anteriores da família Valois e outras continham recortes de jornal com reportagens interessante sobre feitos de antepassados e até mesmo alguns avós mais recentes.

E bem próximo de mim, ao alcance de um braço, estava a família Valois D’Orleans — ao menos a que eu conhecia quase por completo. Lá estava Juliet abraçada com um gato assustado, possivelmente segundos antes de o pobre bichano correr dali e deixa-la com os braços arranhados; e logo abaixo um chihuahua fotogênico, que tinha ganhado um quadro apenas para si. Eu me lembrava dele nas fotos da casa em Nova Iorque e como Luke fez um biquinho ao dizer que a mãe amava mais o cachorro do que eles (algumas vezes).

Ao lado estava a foto do ruivinho, num belo sorriso emoldurado por uma fita azul de primeiro lugar, mas que não possuía identificação do motivo da premiação. Janet e seu esposo seguiam pouco abaixo, em uma foto de casal que não deixava dúvidas dos traços que seus filhos haviam ganhado. E logo acima dos pais, em uma moldura tão simples como as demais, Leopold sorria como não costumava sorrir, de uma forma muito parecida com aquela que guardei de lembrança na despedida perto da Trafalgar Square, muito melhor do que o suvenir do Globe.

Me aproximei dos retratos, timidamente, como faria se qualquer pessoa estivesse ali, e deslizei o indicador sobre as molduras que não tinham nenhum rastro de pó. Invejei Lucas e Leo por terem pais que aparentemente eram tão bons para eles e por viverem em uma casa daquelas e serem livres. Invejei até mesmo a parede de retratos que mantinha todos eles unidos, mesmo quando estavam separados, e parei meus dedos sobre a foto daquele inglês que me ajudou a descobrir meu dom de fazê-lo sorrir.

— Aposto que você teria uma palavra ou duas para me dizer sobre tudo isso, não é? Com toda a sua arrogância e sarcasmo, mas certamente tornaria todo esse circo tão óbvio e absurdo que me faria rir no final de tudo, dando razão para o que você disse.

Estava enlouquecendo de fato. Estava conversando com uma foto.

— De certo. Sempre estou correto no que digo, senhorita Katerina.

Meu.

Coração.

Não era a foto que estava me respondendo.


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