– O que?! Clarkson, você sabia disso? - Amberly perguntou ao marido com os olhos debulhando em lágrimas. Clarkson não a respondeu.

Mas Jason, sim.

– Foi ele quem deu a sua filha para os sulistas.

***

Amberly chorava como eu nunca havia visto uma mulher chorar antes. Toda a sua calma e paciência de repente desaparecera. A tragédia que se jogou aos seus pés, no entanto, não podia ser mesmo suportada, ainda mais por uma mãe. Uma mãe traída.

Eu imaginei que o rei Clarkson fosse ao menos tentar se redimir, mas nem isso ele fora capaz de fazer. Seus lábios entortaram-se numa curva para baixo e os olhos marejaram. Ainda assim, com aquela expressão de destruidamente triste, eu não conseguia enxergar tristeza nenhuma! Era simplesmente impossível ver isso num cara que deu a própria filha para os sulistas! E se nós, os sulistas, fôssemos mesmo quem eles pensam que somos? Trogloditas malvados, estripadores e ladrões? Ele teria entregado Samantha a isso?

– Por favor, vão embora - Amberly ordenou aos soldados - E levem o rei consigo.

Apesar do rei ser a autoridade maior, por alguma força misteriosa no jeito com o qual Amberly falara convenceu os guardas a saírem dali. E a levar Clarkson junto. Ficamos só eu e ela. E isso logo pareceu mais assustador do que deveria. Amberly conseguiu se recompor aos poucos, enxugando as lágrimas com um lenço, mas a dor... Havia se instalado em um lugar provavelmente invisível de seu coração.

– Vamos. Conte-me tudo. - ela pediu.

Suspirei, e comecei.

***

Anna Parker saiu do hospital com disfarces. Encontrou uma enfermeira no caminho e trocou de roupa com ela. Seu fim foi um infeliz almoxarifado perto do elevador. Pobre enfermeira! Mas antes de sair, obrigou-se a levar Samantha. Anna sabia que depois que Amberly acabasse descobrindo sobre sua filha e Maxon também ficasse sabendo, Samantha seria posta entre a cruz e a espada. Portanto, nada melhor que uma fuga básica. Mercenários, sempre fugindo e aparecendo repentinamente. Anna gostava disso.

Indo em direção ao estacionamento da emergência, encontrou uma van e entrou. Não precisou das chaves - tinha os seus próprios truques. Abriu os portões e se mandou dali, levando Samantha junto.

Ela aos poucos foi abrindo os olhos. Ainda precisaria de ajuda médica, mas para o percurso, estava bem. Havia alguns analgésicos do lado da maca. Samantha ergueu a mão direita que estava boa e puxou um para engolir.

Anna olhou pelo retrovisor.

– Tudo bem? - perguntou. Samantha piscou os olhos e sorriu fracamente. - Você sabe que não tive escolha, certo?

Samantha assentiu.

– Eu estava esperando pela hora em que minha perna começaria a doer de novo. - ah, o belo e leve sarcasmo de Samantha. - Você fez o que deveria. Mas não espera que eu vá agradecer por isso. Faz ideia do quanto estou ferrada?

Anna riu.

– Antes de virar princesa, você precisa saber de algumas coisas.

Samantha franziu a testa.

– Eu sou a estrategista da Base Sul. O que há que eu não saiba? - perguntou ironicamente. Gemeu um pouco quando a van virou bruscamente e entrou em um caminho de terra escondido depois de um semáforo.

– Coisas sobre Jason. E... A família real.- Anna respondeu, apreensiva. Samantha apenas suspirou. - É aqui, Samantha. Chegamos.

– E como você pretende me tirar daqui? - ela perguntou, fazendo caretas de dor.

Anna simplesmente pôs a cabeça para fora da janela e assobiou alto. Rapidamente as portas da van se abriram, revelando cinco caras. Eram altos e musculosos, estavam fardados e tinham expressões sérias. Ah, senhor, me tire daqui antes que eu cause um estrago, pensou Samantha.

Dois homens puxaram a maca de Samantha, e logo ela estava sendo levada dali como uma verdadeira rainha!

Irônico?

Samantha não sabia para qual dos lados olhar. Por onde olhava, mais e mais bíceps!

– E então, o que vocês são? Seguranças de shopping? - Samantha perguntou, mas foi interrompida por um espasmo na perna esquerda.

– A senhorita está bem? - o rapaz perguntou, com uma expressão realmente aflita.

Samantha revirou os olhos.

– Mas que droga vocês são? Não podem ser Mercenários. E que droga foi essa de senhorita? Não me chama assim, não, viu! Posso estar quebrada, mas ainda sei ferrar com vocês! - Samantha disse, frustrada. Odiava ser o alvo de uma missão, em vez de a comandante.

Quando pararam em um certo ponto, um rapaz fardado apareceu e ordenou que apenas um ficasse para ajudar a carregá-la na maca.

– Eu avisei que ela era nervosa - ele disse e riu. Samantha ergueu a cabeça para ver quem era. Mas quando o fez, sentiu seu rosto ficar quente como se estivesse há dias embaixo do sol.

– Ah, mas que beleza! Não acredito nisso - Samantha deitou e fechou os olhos, lutando para respirar direito. - Kyle? Acho que vi um fantasma.

Ele se aproximou dela e lhe deu um beijo na cabeça.

– Também senti sua falta. Parece que agora você é princesa, então? - ele disse baixinho. Pouca gente sabia disso, e ainda era algo delicado para Samantha.

– Eu... Não sei de nada - ela deitou a cabeça no travesseiro. Olhando para Kyle, sentiu seu coração bater mil vezes mais rápido. De repente, a dor lacerante em sua perna simplesmente sumiu. Como isso aconteceu? Na verdade, como Kyle podia causar nela coisas que há anos não causava?

Flashback on

– Hey, tia Magda, é verdade que a senhora ganhou uma filha? Posso vê-la? - o garotinho chegou na Casa Helena correndo, afobado. Ficara sabendo por Ronan, que liderava o Treinamento Infantil, de que uma garotinha havia chegado para Magda.

Magda o olhou com olhos marejados. Era Kyle, um garoto de 6 anos que há pouco de três meses ficara órfão dos dois pais por causa da Guerra com os nortistas. De todos os garotinhos da Base Sul, Kyle despertara algo diferente em Magda. Ela adorava-o em especial.

– Hey, Kyle. Venha cá. Você quer vê-la? Seu nome é Samantha. - Magda disse.

Kyle pegou-a nos braços e a olhou por um longo tempo. Seus olhos brilharam.

– Samantha... - ele disse, encantado. A garota tinha uns três meses, mas já era linda como uma verdadeira princesa de contos de fadas. Seus olhinhos pequenos eram esverdeados, tinha feições delicadas e parecia que, se não a segurasse bem, a qualquer momento quebraria.

Kyle era apenas uma criança, isso era certo. Mas quando viu Samantha pela primeira vez, soube que havia se apaixonado como nunca antes. Não romanticamente, mas apaixonara-se. Talvez porque ela era o bebê mais belo que ele já havia visto!

– Eu vou cuidar dela, tia Magda. Até ficarmos velhinhos - Kyle disse sorrindo.

Passou-se o tempo, e logo Kyle já era um adolescente de quatorze anos. Samantha tinha oito, pois eles tinham uma diferença de seis anos. Apesar disso, Kyle e Samantha viviam juntos. Correndo pela floresta, caçando, brincando de espionagem. Kyle já iniciara seu treinamento para ser soldado, mas Samantha ainda estava no infantil. Kyle foi criado junto com Samantha, pois Magda resolveu cuidar dele quando seus pais morreram.

Mas num dia típico de amizade entre os dois, Samantha foi surpreendida. Kyle conversou com ela e até tentou explicar, mas Samantha não conseguiu evitar as lágrimas. Ele disse que já estava na hora de descobrir o que aconteceu com seus pais, e que partiria numa missão sozinho. Os dois teriam de se afastar. Ele tinha quinze anos nessa época. Samantha jurou que não o esqueceria, e ele fez o mesmo. Disse que mandaria cartas, e realmente mandava. Antes de partir, porém, algo inusitado aconteceu. Kyle a beijou.

Mas foi embora. E foi nessa época que Samantha conheceu Jason. Quando ele se mostrou seu único porto seguro.

Samantha só o viu novamente quando conheceu Anna Parker, a Mercenária. Anna lhe contara tudo sobre Kyle, que ele havia entrado para os Mercenários e que pedira licença para poder visitar uma "velha amiga". E então, Kyle reapareceu. Mas quando chegou, havia outra pessoa em seu caminho: Jason.

Samantha havia se apaixonado por Jason. E Kyle, ficara em algum lugar do seu passado.

***

Kyle levou Samantha aos paramédicos da Base Mercenária. Ela ficou lá por algumas horas, e então a deram alta. Anna apareceu sorridente, mas parecia cansada.

– Você vai ficar na minha bela suíte, alteza. - Anna disse, imitando a voz de Maxon. Samantha riu, mas Kyle pareceu apreensivo. - Ah, não. Vocês ainda não superaram, né? Certo. Vou me mandar. Agora. No três.

– Que enrolação. - Samantha resmungou. Anna piscou e saiu.

– Então... - Kyle começou. Samantha tentou, mas não conseguia sustentar-lhe o olhar.

Kyle era alto e másculo. Tinha cabelos escuros, era moreno e de um sorriso largo. Ela não pôde deixar de se lembrar do episódio da banana, quando estavam caçando na floresta e um bando de macacos começaram a jogar banana nele.

– Está se lembrando do episódio das bananas, não é? - Kyle perguntou, rindo. Ela assentiu.

– Acho que não precisamos mais conversar sobre o que aconteceu, Kyle. Talvez devamos apenas seguir a vida - Samantha disse, por fim.

– Está colocando um fim na nossa história. - Kyle abaixou a cabeça, mais afirmando que perguntando.

Alguns segundos pairaram no silêncio. Kyle se levantou para se despedir, e Samantha por um tempo pensou que talvez fosse melhor para os dois quebrar logo aquela ligação e seguirem as suas vidas... Mas quando ele deu um passo, Samantha sentiu-se com o coração na mão. Com o máximo que pôde alcançar, puxou a mão de Kyle.

– É claro que não. - ela disse, sorrindo - Não se pode apagar uma história sem que os personagens deixem de existir.

Kyle se aproximou dela.

– Você estava apaixonada por Jason. - ele disse, com certa mágoa na voz.

– Eu me enganei, Kyle - Samantha falou - Ele foi apenas um refúgio para mim.

– Tem certeza? Eu não quero te magoar de novo.

– Então não queira me perder outra vez - Samantha disse.

Num movimento rápido, Kyle chegou mais perto de Samantha. Olhando-a nos olhos, passou as mãos sobre seus cabelos e enxugou algumas lágrimas que escorreram em seu rosto. Então, a beijou.