Um Início No Fim escrita por -thais-estrela-


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

Ficou estranho. '-'



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Meia noite. Hora em que os zumbis saem de suas covas e iniciam sua busca carnívora. Queria eu ser um deles ou, talvez, de novo, outro mero mortal naquela noite fria e ter o sangue drenado por algum vampiro faminto. Mas o destino não o quis e eis-me ali: o bilionésimo centésimo vigésimo nono arrastador de correntes à espera do julgamento.

Após sentir o toque das mãos gélidas da morte, diferente dos que já foram citados, se você morre com algum assunto mundano pendente, nada de céu ou inferno, apenas purgatório. A partir daí se tem duas opções: ou se espera o julgamento de seus pecados, ou se procura um sensitivo caridoso que o ajude a descobrir suas pendências e dissolvê-las. E como há muita gente morta e pecadora, nada é mais tedioso do que ser um fantasma.

Nós, almas penadas, não podemos ficar divagando por aí peneirando nossas amizades porque somente médiuns conseguem nos ver. Sabe o quanto é difícil achar um sensitivo são? Provavelmente não, mas aviso que é uma tarefa árdua. Meus seiscentos e poucos anos nesta condição comprovam isto.

Então, o silêncio dela quando me viu a primeira vez soou música para meus ouvidos. Mariah vestia uma camisola semelhante a que eu usava em tempos de vida, coisa bem antiquada para uma mulher em pleno século XXI, seus fios ruivos estavam lindamente bagunçados e, juro que o copo trincado que segurava parecia belo. O fato de ela não ter esperneado ou ter jogado um dente de alho em mim (como em outras – muitas – vezes) me deixou em estado de êxtase e um fio de esperança de um dia, talvez, poder descansar em paz passou por mim. Porém logo se esvaiu de minhas células ectoplásmicas quando vi que seus passos continuaram cozinha a dentro para encher o copo de água.

– Ei, você está me vendo? – Já tinha em mente que aquele fora mais um de meus devaneios.

– Sim, mas isso não significa que eu não possa beber água quando acordo no meio da noite. – E tomou dois goles.

Pisquei algumas vezes. Ela era mais incrível do que eu imaginara. Onde, em todo o mundo mediúnico, se encontraria outra criatura daquela que falava com um fantasma como se ele fosse algum ser humano normal? Senti que necessitava dela para sair da condição de purgante e passar para anjo (ou demônio, nem me importava mais).

– Preciso. – Pensei alto.

Ela riu.

– Você é direto! Geralmente, quando meus clientes vêm me solicitar, tem uma conversa antes. Mas você chega assim, como quem não quer nada, e logo “ei, olha pra mim, eu preciso de você”. – Mariah fez alguns gestos semelhantes aos de um gorila macho mexendo os braços tentando me imitar, mas, mesmo não tendo dito as palavras que ela usou, assenti.

– Por favor. – Soltei um sorriso amarelo.

– Pois então, venda-me seu peixe! – Puxou uma cadeira e se sentou. Foi tudo tão rápido que quando vi, minha longa história já havia sido contada quase que duas vezes e com detalhes. – Então você está me dizendo que era um escritor dedo-duro de cartas para a coroa inglesa na época absolutista que morreu em um naufrágio após um ataque de piratas?

– Fora o dedo-duro, é exatamente isto. – A mulher se dirigiu a uma gaveta, pegou uma caneta e papel, colocou sobre a mesa de jantar e começou a desenvolver rabiscos. – O que você está fazendo?

– Silêncio. Preciso de concentração.

– Mas quero saber se você vai me ajudar ou não.

– E o que acha que estou fazendo?! – Ela se virou para mim, encarou-me por uns segundos e girou o corpo em direção à mesa novamente. – Estou usando um método que uma amiga me ensinou. É quase tão importante quanto o processo de sovar massa de pão! Estou traçando uma possível rota para o que pode ser o seu assunto pendente aqui na terra.

Aproximei-me para ver o resultado, esperando encontrar uma trama bem elaborada. Nunca me senti tão ingênuo ao ver que não passava de uma gambiarra bem estranha e garranchosa.

– O que acha? Será que foi isso mesmo que aconteceu? – Seus olhinhos verdes brilhavam e iluminavam ainda mais seu lindo sorriso.

– Talvez. – Respondi como se tivesse entendido o que aquela coisa (não há melhor descrição que essa) significaria.

– E então, quer que eu seja a sua mediadora?

Minha mente sofreu um verdadeiro rebuliço e eu sentia que dizer sim iria me fazer perder mais alguns anos da minha existência fantasmagórica já que, uma vez escolhido, o médium só se separa de sua alma companheira ao descobrir qual a condição que prende seu fantasma na Terra (coisa que ela não era capaz de fazer) ou ao morrer, correndo o risco de ter esta alma como um assunto pendente e se transformar também em fantasma.

Normalmente, minha resposta seria mais que imediata, mas aquele brilho em seus olhos me fez desistir.

–Lógico. – Respondi.

E foi assim que consegui minha companheira de eternidade.


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