Infortúnio escrita por Halina


Capítulo 1
Sorrow waited, sorrow won


Notas iniciais do capítulo

A música é Sorrow, The National.



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Ele chegou dois dias depois de ter ido. Disse:

— Você pode ser a minha amiga hoje e amanhã?

— Para sempre — eu respondi.

Meu marido sai para trabalhar todos os dias às sete horas da manhã, então acordo quinze minutos antes para preparar seu café. E é sempre faltando quinze minutos para as sete que o meu menino vem, vestido com o conjunto amarelo de roupas que lhe dei no último natal. Enquanto coloco a água para ferver ele me pergunta se quero ser sua amiga hoje e amanhã, mas apenas quando termino de coar o café é que respondo que o serei para sempre. É um ritual.

— Sorrow found me when I was young. — Havia uma música tocando no vizinho enquanto eu o enterrava.

Certo dia, fomos juntos para a praia. Era domingo, fazia tanto calor que meu menino havia tirado o lenço vermelho que normalmente usa no pescoço e eu tomei chá. Minha garganta queimou e, com medo de chorar, olhei para o céu. Havia um peixe voando nas ondas que quebravam metros acima de nossas cabeças. Quando procurei pelo chão, encontrei o firmamento gritando azul sob minhas sapatilhas novas. Sempre fui uma pessoa medrosa, de modo que logo meu coração urrava em meus ouvidos e minhas mãos tremiam. Presenciei naquela tarde o primeiro naufrágio de mim. O terror era um barco percorrendo-me. Iniciou seu trajeto nas pontas dos meus dedos afundados na areia do céu, subiu até o mar com entusiasmo e afundou no sorriso do meu menino.

— O mundo está todo ao contrário — ele falou. Seus olhos brilhavam. Rimos até começar a chover água salgada, então eu disse que era hora de irmos para casa.

Quando chegamos à nossa casa, meu menino pediu biscoitos. Ele se sentou sobre a bancada da cozinha e começou a balançar os pés. Sorrow waited, sorrow won, pensei. Joguei leite nas paredes azuis, mas elas não ficaram brancas. Nós cantávamos: “It's in my honey, it's in my milk”. Andei pela casa peneirando o trigo, porém o chão não ficou branco. Perguntei ao meu menino se preferia biscoitos com gotas de chocolate ou com pedacinhos de framboesa e ele respondeu:

— Sorrow's my body on the waves.

Sorrow's a girl inside my cave. Se a noite é longa e fria, o dia foi curto e quente. Se diante de mim há um fantasma clamando por vida, pele adentro há uma mulher flertando com a morte. Todas as minhas ilusões são como zumbis anunciando o fim do mundo, ecoam vazias por detrás de um esqueleto de imagens. E eu sou outro zumbi vagando em meio a elas.

Caí. Meu corpo tremia como se eu fosse um motor, ou uma mulher fora de si ou uma massa de biscoitos para Deus sovar. Deus sovava-me e eu naufragava. Se o mundo estava todo ao contrário, como eu poderia manter meus pés no chão? Peixes coloridos se escondiam nos espaços entre os meus silêncios agudos como os gritos que vinham depois. Mesmo assim, fiz biscoitos que não eram brancos, assim como eu não era branca e assim como eu não estava limpa nem livre. Como meu corpo, a canção tremia e as luzes da cidade se apagavam, uma a uma. Não fui dormir.

I live in a city sorrow built.

Meu menino andou até mim e colocou seu lenço vermelho em volta do meu pescoço. Deu um nó e puxou, mas foi ele quem perdeu o ar. Agonizei enquanto seus lábios ficavam roxos e sua pele se tornava tão branca, limpa e livre quanto a de um cadáver. Espero pelo dia em que um cientista dirá o que talvez algum escritor já tenha dito: as mães morrem com os filhos se os mesmos não voltam dois dias depois de terem ido.

O relógio anunciou meia-noite e meu menino se apagou.

Injetei em minhas veias doses de pesar que soavam como “deixe-o ir”. Eu não queria mais sobreviver, então fiz uma gambiarra com as palavras mais feias que minha consciência pudesse inventar e usei-as em frases que terminavam com o meu nome. Saboreei-as com biscoitos que eram pedaços de mim e, assim como chá no verão, elas me incendiaram. Queimei até o sol nascer e esperei pela criança que libertara. Sem perceber, eu já estava jogando sobre o seu túmulo os últimos punhados de terra.

Ainda estava acordada às seis e quarenta e cinco da manhã seguinte. Meu marido apareceu na porta da cozinha com os pés sujos de trigo e o menino riu sem ser mais meu. Estava me sentindo estranha, vazia, virada do avesso. Havia mar na minha cabeça e céu nos dedos dos meus pés. Eu chovia água salgada, ela escorria por minhas bochechas e matava a minha sede. Eu tinha sede de vida, porém bebi chá quente e lágrimas mornas. Era verão, queria algo fresco e branco.

Coloquei a água para ferver.

— Você quer ser a minha mãe hoje e amanhã? — o menino perguntou.

Percebi então que era uma tempestade. Debrucei-me sobre o fogão e gotas caíram na água que esquentava. Meus ombros tremiam no ritmo dos trovões e as palavras do meu marido quebravam como ondas:

— O que você fez?! Que bagunça foi aquela?! Olhe para mim! Você precisa se recuperar, já faz anos! Anos! Foi o nosso filho quem morreu, não você!

Coloquei as mãos nos ouvidos e cerrei os olhos com força, murmurando a canção para não ter que ouvir mais nada.

— Don't leave my hyper heart alone on the water. — E a canção também se murmurava contra mim, ansiosa. — Cover me in rag and bones, sympathy.

O menino abraçou minhas pernas, chorando, quando percebeu que já era quase a hora de coar o café. Mas me desvencilhei dele e fiz o que tinha de ser feito. Meu infortúnio já não me agradava mais, o conjunto amarelo de roupas me fazia chorar e o mar precisava voltar a correr rumo ao horizonte.

— Você precisa superar isso, querida — meu marido disse, mais calmo. E pela sua voz entendi que ele também cantava continuaria cantando comigo. I don't wanna get over you. — Você pode suportar pelo menos hoje ou amanhã?

Olhei para o menino. Ele seria meu onde estivesse, mas não ali.

— Para sempre.


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Notas finais do capítulo

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