Strong escrita por Ana Flávia Furtado


Capítulo 4
A Primeira Internação




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Eu não dormi aquela noite, fiquei pensando sobre o que falaria no dia seguinte para o profissional que me atenderia. Tomei o café normalmente, com direito a repetição de meu ritual para retirar a comida e fui me aprontar.

Quando estava quase pronta, olhei-me ao espelho e encarando os olhos claros daquela pequena e franzina figura, lembrei-me da primeira vez em que me encarei em um espelho daquele lugar.

Quando todos dizem que você tem um problema e você se recusa a aceitá-lo, acredite, você tem um problema.

Faltava pouco para que eu fizesse treze anos, continuava estudando com as mesmas pessoas, era difícil encará-las, mas logo chegariam as férias de Julho e eu poderia ficar longe de todos eles durante um mês, os meses que faltavam para o ano acabar, eu poderia aguentar.

Lembro-me que nessa época ninguém falava comigo e por estar sempre sozinha, dediquei-me aos estudos. Eu não fazia nada além disso. Em casa eu estudava sempre… Nunca ouviu falar em “ocupar a mente para evitar a dor”? Geralmente a frase era usada para fins de relacionamento, mas ela parecia se encaixar bem aqui também. De alguma forma, estudar fazia com que eu me concentrasse somente naquilo e eu conseguia esquecer do que as pessoas falavam ao meu redor.

Antes de entrarmos para as férias de Julho, algumas pessoas vieram me parabenizar pelas minhas notas e dois garotos começaram a falar comigo, eu ainda não me sentia bem em falar com eles, era estranho que pessoas falassem comigo, sabia que logo eles iriam pedir algo.

Durante duas semanas eles não me pediram nada e eu talvez pudesse estar sendo finalmente aceita e eu me sentia bem com isso. Entrei sorrindo nessas férias, mas foi quando a realidade deu um tapa na minha cara. Eu não tinha amigos, o que faria durante um mês inteiro?

Na primeira semana lembro de ter colocado todo meu sono em dia e lido um pouco, até a metade da segunda semana isso prosseguiu, até que um dia tentei sair. Andei de bicicleta em um parque ali perto, por um longo tempo, o intuito não era conhecer novas pessoas, era só pensar com clareza, colocar as ideias no lugar.

Fiquei fora e pensando até muito tarde, quando cheguei em casa, percebi que havia uma ambulância na esquina de casa, somente o motorista estava nela, um homem aparentemente alto e com cabelos escuros, pensei que talvez pudesse ser algum problema com nossa vizinha, ela era bem velha.

Todas as luzes estavam acesas e era estranho ver minha família em casa tão cedo, geralmente eles chegavam bem mais tarde, só pude deduzir que algo ruim havia acontecido, por isso demorei-me a guardar a bicicleta e a entrar em casa.

A primeira reação que as pessoas normalmente têm quando encontram um homem de jaleco e ar profissional é de segurança, no entanto minha reação foi de desespero completo… Aquele homem estava sentado no meu sofá junto de meus pais.

– Filha, podemos conversar? - Meu pai tinha um tom de voz calmo e sugeria segurança completa, percebi que minha irmã não estava presente e ao enquanto me sentava, rezava baixinho para que a visita daquele homem estivesse relacionada a ela. Encarei minha família.

– Esse é o Dr. Miguel, ele quer conversar com você… - Minha mãe começou, claramente ela tentava se controlar.

– Não quero conversar. - Cortei-a. Ela pareceu surpresa e fechou a cara.

– Claramente temos um problema aqui, entenda que é para seu bem, deixe-me ajudá-la. - O Dr. Miguel era um homem educado, reconheço.

Não havia problema, eu não tinha problemas, só não me sentia bem em sociedade, isso não era um grande problema. Percebi naquele momento que talvez eles não fossem desistir, eu não queria ser levada e podia me trancar no meu quarto, uma hora eles teriam que desistir.

Todos me encaravam, eu afirmei com a cabeça e então sorriram, a distração perfeita. Saí correndo em direção as escadas e tive a pequena esperança de que talvez não fosse a lugar nenhum. Mas ao tentar subir as escadas, encontrei minha irmã, de alguma forma eles previram que eu tentaria fugir e a deixaram na escada, esperando-me.

Ela me agarrou pelos pulsos e por ser bem mais alta e mais forte, arrastou-me até a sala, eu me debati, chutei, arranhei, gritei e mordi.

– Não! NÃO! NÃO! NÃO QUERO IR! NÃO QUERO SAIR DAQUI! - Era a única coisa que lembrava, únicas palavras que consegui proferir com coerência, além da minha eterna repetição de “não”.

Foi necessário que meu pai e minha irmã me segurassem pelo pulsos e tornozelos, minha mãe segurava minha cabeça por trás, eu ainda tentava escapar de todas as formas possíveis, aplicaram um sedativo.

O mais estranho daquela noite foi o fato de que eu não tive alucinações ou sonhos como os filmes retratam, eu só adormeci. Na verdade, nem lembro de ter adormecido, foi como piscar, entretanto em um momento eu estava na minha sala de estar brigando com minha família e no outro estava em uma cama de hospital com uma forte dor de cabeça.

Eu não ouvia máquina nenhuma conectada a mim, eu parecia bem, tirando a dor de cabeça, respirei fundo para levantar e quando o fiz percebi que havia outra pessoa ali, era uma mulher toda de braco, loira, alta e com olhos escuros, ela parecia contente por me ver ali.

– Olá, eu sou Cybis, sua enfermeira particular em seu processo de internação… - Parei de ouvir nesse momento.

"Internação." O dia passou e essa havia sido a única palavra que eu entendera, Cybis me acompanhava em todo lugar, me forçou a comer, dormir, andar, sempre com um sorriso deslumbrante, como se ela realmente gostasse daquele trabalho. Claro que não a obedeci.

Solicitei então que meus pais viessem me buscar, coisa que só poderiam fazer dali dois dias, então resolvi ficar calada e foi o que fiz. Durante os dois dias seguintes eu não fiz nada além de ficar trancada no quarto, não comi ou conversei com alguém e por mais que admirasse o esforço de Cybis, não cedi.

Quando meus pais apareceram, não sai correndo para abraçá-los, apenas franzi o cenho e quando finalmente ficamos sozinhos, eu implorei, me arrastei e chorei para que me deixassem sair. No fim, eles concordaram, contanto que eu começasse a me alimentar e isso eles controlariam. Concordei, concordei com tudo para sair daquele lugar horrível.

Essa foi minha primeira internação, por conta de meu péssimo hábito alimentar, não foi a pior internação, foi a de menor duração, mas nunca é fácil ouvir a palavra “internação” ou a frase “você tem um problema”, eu nunca aceitei que tinha um problema naquela época e nunca irei aceitar que tenho, mas era a primeira vez que tentavam me consertar, sendo que eu não queria.

Eles queriam me controlar, me moldar e me mudar para que eu fosse perfeita, porém eu nunca seria perfeita, ninguém entendia isso, eu não queria nada daquilo, eu não queria que todos me vissem como uma patética louca que necessita urgentemente de ajuda.

Agora eu encarava uma menina mais velha e com os mesmos problemas, ela estava indo falar com um profissional. Ela não é louca. Ela consegue sair daqui sem fugir novamente. Ela terá uma vida novamente.


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