Os Últimos Morgenstern escrita por Luna MM


Capítulo 30
Epílogo


Notas iniciais do capítulo

"A marquei como minha já em seu doce e primeiro respiro.
Minha, minha por direito, do berço até o último suspiro
Minha, minha - juraram nossos pais."
— Lord Alfred Tennyson, "Maud"



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Paris, dois anos depois

As clássicas ruas francesas estavam cobertas pela neve que, aos poucos, começava a derreter na espera pela chegada da primavera. Depois das férias de verão, os turistas não lotavam tanto a cidade como antes e andar na Cidade Luz ficava mais fácil e proveitoso. Clary e Sebastian estavam em Paris há pouco mais de três dias e já haviam feito tudo o que tinham direito; tomado chocolate quente na Saint Honoré, patinado no gelo numa das pistas de patinação mais bonitas que Clary havia visto e frequentado grandes festas populares na região. O tempo parecia ter congelado para que eles pudessem se divertir. De certa maneira, ela gostava de pensar que Paris era a cidade perfeita para eles.

Clary sempre pensou que todas as cidades ficavam mais bonitas no outono ou na primavera, mas estava enganada; no inverno, quando tudo ganhava uma coloração branca e as pessoas se cobriam com toucas e casacos grossos de frio, era quando a verdadeira beleza do lugar se esvaía. Tudo se tornava preto e branco, no estilo mais clássico possível, e a simplicidade transformava o lugar num paraíso, assim como as pessoas.

– Estamos andando faz quase uma hora – disse Sebastian, ao lado de Clary. Com o capuz preto do moletom na cabeça e mãos cobertas com luvas grossas, ele segurava o copo de chocolate quente próximo da boca, na tentativa de esquentar o rosto. Virando-se para ela, ele abriu um sorriso de diversão. – E esse lugar parece nunca chegar ao fim. Tem certeza de que ainda estamos dentro dos limites do país?

Clary riu, soltando um pouco de fumaça da boca ao abri-la. Eles estavam no Jardin du Luxembourg, um dos pontos turísticos mais conhecidos e bonitos da capital francesa. Ela gostava daquela visão de tudo coberto pela neve branca; a grama no chão, as árvores e até um pouco da água da fonte Médicis. Algumas pessoas enroladas em casacos grossos caminhavam ali, tirando fotografias nos jardins e nas estátuas. Sentindo uma chama de nostalgia se acender dentro de si, Clary desejou ter um lápis e um pedaço de papel para desenhar aquela paisagem, de modo que sempre pudesse se lembrar.

– Não é nenhum sacrifício ter que andar num lugar lindo como esse – Clary respondeu, admirada. Em seguida, cutucou o ombro de Sebastian com o dela. – Mas se estiver cansado, posso desenhar um Portal e vamos para outra cidade.

– Não, eu gosto de Paris – ele murmurou, dando uma piscadela para ela. Clary sabia o que ele estava pensando: fora ali, em Paris, que tudo que existia agora entre eles começara. Duas vezes. – Mas, você bem que podia nos levar para alguma festa. Esses franceses daqui sabem o que é dar uma boa festa!

Clary sorriu, distraída. Desde que Sebastian voltara à vida e anunciara o fim da guerra, eles estavam passando de uma cidade para outra, um país para outro, até conhecerem o mundo inteiro. Sempre fugindo, se escondendo quando algum Caçador de Sombras ou integrante do Submundo estava por perto. E embora Sebastian falasse que um dia eles iriam cansar, na tentativa de acalmá-la, Clary sabia que isso não era verdade. A Clave sempre procuraria pelos irmãos Morgenstern e eles nunca deixariam de ser fugitivos da lei.

– Você tem razão – ela falou, entrelaçando a mão na de Sebastian. Ele olhou para ela, com expectativa. – Vamos encontrar uma festa, irmãozinho.

Em resposta, ele abriu um sorriso tão gelado quanto a neve aos seus pés.

◌◌◌

Os dois acabaram indo parar em uma festa de adolescentes da classe alta de um bairro nobre de Paris. Haviam festas melhores, é claro, mas algo naquele bando de jovens curtindo a vida enquanto os pais não chegavam em casa atraiu a atenção de Sebastian que, de algum jeito, conseguiu uma maneira de fazer eles entrarem. Clary não contestou.

– As chances de nós encontrarmos algum Nephilim aqui são enormes – Clary falou para Sebastian, tentando elevar a voz para que ele escutasse através da música alta que já os alcançava na entrada.

– O que é a vida sem algum perigo, irmãzinha? – Ele respondeu e, trocando um sorriso, os dois entraram na casa.

A casa era, na verdade, uma mansão enorme. Havia algo de clássico naquela construção, algo parisiense. Clary arregalou os olhos ao ver os três andares bem-acabados, com uma varanda rodeada por cercas brancas e um pátio confortável, que levava à uma grande piscina. No pátio havia uma pista de dança iluminada por luzes coloridas, onde ao canto um DJ agitado trocava discos e animava as pessoas que dançavam na pista. Um pouco mais ao lado, adolescentes jogavam uns aos outros na piscina, decorada com algumas bolas coloridas. E havia bebida, muita bebida.

Sebastian abaixou o capuz do moletom, libertando as mechas brancas de seu cabelo para caírem sob a testa, e pegou um copo de plástico em uma das mesas perto, enchendo-o com o líquido de uma garrafa de vidro. Bebeu um gole.

Vodca – disse ele, levantando o copo para Clary, como se estivesse propondo um brinde. – Parece que são somente mundanos mesmo.

Clary concordou distraidamente, num gesto de cabeça. Sebastian manteve o copo na mão por mais algum tempo, até virá-lo na boca e esvaziar o conteúdo rapidamente. Enquanto ele se afastava para buscar mais bebida, Clary não pôde evitar imaginar se Sebastian teria sido assim se tivesse tido uma vida normal e comum; o tipo de garoto que desobedecia aos pais para ir em festas e beber até não aguentar mais ficar em pé. Ela sabia que aquilo não combinava muito com ela na vida mundana, já que sempre havia sido mais reservada à cinema e videogames com Simon. Mas olhando para os outros garotos na festa, curtindo a música alta e bebendo tudo o que podiam, ela percebeu que seu irmão podia se encaixar facilmente, se um dia quisesse, embora aquilo fosse praticamente impossível. Em outra vida, onde ele fosse um mundano, talvez.

– Pegue – Sebastian disse ao voltar, entregando um copo igual ao que ele segurava para ela. Clary bebeu um gole e fez uma careta, como sempre fazia, quando o álcool desceu pela sua garganta, queimando. – Vamos nos divertir um pouco, irmãzinha.

Puxando-a pela mão, Sebastian levou Clary para o centro da pista de dança, onde outros jovens se espremiam no pouco espaço para conseguir dançar. A música eletrônica explodia nos ouvidos de Clary que, já animada pelo efeito do álcool, bebeu o que restava de uma vez e jogou o copo para o lado, em seguida erguendo as mãos para o alto e balançando a cabeça. Sebastian abriu um sorriso malicioso e se aproximou até estar com o corpo colado ao dela, a mão livre dele passeando pelo corpo dela enquanto ela se mexia no ritmo da música.

Clary fechou os olhos e jogou a cabeça para trás, sentindo a música alta entrar no seu corpo até atingir a alma. Ela começou a sentir calor, embora não soubesse se estava suando por causa da dança ou por conta do álcool. Virando-se de costas, ela encaixou seu corpo no de Sebastian e arrancou o copo de plástico da mão dele, bebendo o restante da vodca. Mesmo com os olhos fechados, ela sentiu quando Sebastian aproximou a boca da curva do pescoço dela e começou a explorar a pele dali, depositando beijos e mordidas leves que provocaram arrepios no corpo inteiro de Clary. De certo modo, isso foi o suficiente para fazê-la sentir como se estivesse derretendo, cada centímetro de seu corpo queimando de prazer. E a sensação era boa.

O DJ trocou a música por outra mais animada e famosa e, instantaneamente, mais um grupo de adolescentes chegaram na pista de dança, absurdamente alterados pelo efeito da bebida. Sebastian lançou um olhar irritado para os que chegavam perto e puxou Clary para longe de dezenas de pessoas que dançavam desajeitadamente e completamente fora do ritmo. Parecendo conhecer a casa melhor do que ninguém, Sebastian deu a volta na piscina e se dirigiu aos fundos da residência, onde havia um outro pedaço de um pátio; esse era coberto por um telhado simples e tinha um sofá grande e algumas poltronas confortáveis, além de várias almofadas coloridas jogadas no chão. O ambiente era iluminado apenas com a luz fraca de algumas lâmpadas em formatos de bolas coloridas, todas unidas por um longo fio que se estendia pelo telhado. No canto do sofá, dois casais se agarravam desesperadamente, mas ao notar a presença de Sebastian e Clary, interromperam os beijos para encará-los, enrubescidos.

Bastou um olhar ameaçador de Sebastian e os quatro jovens se levantaram rapidamente, cambaleando para dentro da casa, provavelmente para os quartos. Clary ergueu uma sobrancelha, impressionada, mas não disse nada.

– Bem, onde nós paramos mesmo? – Sebastian perguntou retoricamente, abrindo um sorriso malicioso. Em seguida, puxou-a para uma das poltronas.

Sebastian retirou a espada do cinto de armas, agora vazio, e a depositou atrás da poltrona, no chão. Clary sentou no colo de Sebastian, ajeitando uma perna de cada lado dele confortavelmente, e suspirou. Ergueu uma mão e tocou os cabelos brancos dele com a ponta dos dedos, num gesto carinhoso, e percebeu que ele a observava com os olhos negros atentos.

– Tem certeza de que devemos mesmo ficar aqui? – Ela perguntou, insegura, respirando fundo. – Alguém pode nos reconhecer...

– Clary, – Sebastian interrompeu, pegando a mão erguida dela e entrelaçando seus dedos – não podemos deixar de viver porque estamos sendo procurados, por incrível que isso possa parecer para você. Veja bem, nós conhecemos o mundo inteiro nos últimos dois anos, e nos divertimos fazendo isso. Não permita que roubem isso de nós, irmãzinha.

Clary balançou a cabeça, mas sua mente já estava longe. Nos últimos dois anos, eles realmente haviam se divertido muito, mas nem tudo sempre fora o paraíso. Sebastian estava mudando para melhor e ela reconhecia isso sempre que parava para pensar, só que o demônio que ele havia sido ainda voltava para atormentá-la às vezes. E lidar com ele se tornava mais difícil do que ela gostaria. Discussões e brigas físicas fizeram parte de boa parte dos dias deles e, por mais que Clary desejasse ser capaz de esquecer, eles machucaram um ao outro mais vezes do que ela podia contar. Em certas ocasiões, ela ameaçava voltar para o Instituto e ele dizia que o queimaria com todos os Caçadores lá dentro, mas depois voltavam atrás e faziam as pazes. Clary não o culpava por isso; ela sempre soube que não seria fácil, que era preciso ter paciência, dar tempo ao tempo. Ela tinha plena consciência de que estava lutando contra anos de lições de Valentim Morgenstern, então considerava cada avanço como uma grande vitória.

E apesar dos dias ruins, ela ainda enxergava a mudança em Sebastian todos os dias. Cada sorriso sincero e gesto carinhoso, sem nenhum resquício de crueldade ou mentiras escondidas, a lembrava da verdadeira razão de ela ter aceitado viver com ele. Sempre haveriam obstáculos e dificuldades, ela sabia disso, mas era exatamente isso que tornava a vitória tão especial; o prazer da conquista. Era isso que importava, era o que fazia a caminhada valer a pena.

– Você tem razão – ela falou para ele, finalmente retornando à realidade. Dando um singelo sorriso antes, Clary puxou a boca de Sebastian para a dela, quebrando a distância entre eles.

As mãos de Sebastian voaram para a cintura de Clary, firmes e ao mesmo tempo carinhosas, e ele a puxou para si, quase como se quisesse colar o corpo dela junto ao dele. Uma onda de calor e desejo invadiu o corpo de Clary instantaneamente e ela apressou-se em tentar tirar o casaco de frio dele, sem se importar com o lugar em que se encontravam. Depois daquela noite, eles provavelmente iriam para outra cidade ou país, então o que fariam ali não era relevante para as outras pessoas.

Sebastian arrancou ele mesmo o próprio casaco e, em seguida, puxou a camiseta para fora do corpo também, depositando-a no chão ao lado deles, não parecendo se importar com o clima frio de inverno. Quando estavam juntos daquele jeito, o resto do mundo parecia se incendiar em puro fogo vivo ao redor deles.

Ele a beijava desesperadamente, com a mesma urgência e precisão de sempre, como se o tempo todo precisasse aproveitar o tempo que tinha com Clary, mesmo depois de dois anos juntos. Clary arqueou as costas e fechou os olhos, enquanto Sebastian beijava seu pescoço, as mãos explorando as coxas dela ao redor dele.

Clary puxou a boca dele de volta para a dela e deixou suas mãos passearem pelo peito nu dele, explorando os músculos fortes que o caracterizam como um guerreiro e as cicatrizes finas que marcavam seu passado nele, para sempre. Ela havia aprendido a gostar e admirar cada uma delas, mesmo sabendo da dor que Valentim havia causado nele, porque elas eram parte de quem ele era, parte de sua história. Sebastian se afastou um pouco e a observou, abrindo a boca em seguida, mas Clary nunca saberia o que ele iria dizer.

– Vejam só, pessoal, são os irmãos Morgenstern – uma voz grossa anunciou, atrás de Clary. O estômago dela pareceu subitamente se transformar em uma pedra de gelo. – Acho que chegamos numa péssima hora, não é?

Apressada, Clary saiu do colo de Sebastian e deslizou para a poltrona, ao lado dele, e encarou o dono da voz. Um garoto alto que parecia ter mais ou menos a idade dela estava na frente, parecendo tão forte quanto Sebastian. Os músculos quase saltavam para fora da camiseta fina que ele usava e, apertando os olhos na pouca iluminação, Clary conseguiu enxergar algumas runas marcadas na pele dele. Droga, ela quase disse em voz alta.

Um pouco atrás do Caçador de Sombras mais alto e moreno, haviam mais dois garotos mais baixos, embora ainda parecessem capaz de derrubar Clary com um singelo empurrão. Ela não conseguiu ver nenhuma runa, mas tinha certeza de que também eram Caçadores de Sombras. Todos seguravam uma garrafa de bebida na mão, apesar de parecerem bastante sóbrios.

Encolhendo-se na poltrona, Clary olhou para Sebastian, mas ele não estava olhando para ela. Com o maxilar trincado e os olhos ameaçadores, ele encarava o grupo como se pudesse lançar facas apenas com isso.

– Suponho que não esteja procurando por um autógrafo – Sebastian disse, em tom de deboche.

O garoto mais alto não pareceu achar graça e manteve-se impassível. Clary sentiu um pressentimento ruim ao olhá-lo.

– Vocês dois estão sendo bem procurados pela Clave, sabiam? – Ele perguntou e, em seguida, olhou para os colegas por cima do ombro, procurando apoio. – Não anunciaram exatamente uma recompensa, mas imaginamos a glória que receberíamos se entregássemos vocês a eles. Não concorda?

Sebastian forçou uma risada. Parecendo extremamente calmo e despreocupado, ele se levantou da poltrona, mal parecendo notar a presença de Clary, e vestiu a camiseta preta que havia jogado no chão antes, bagunçando os cabelos com o movimento.

– Vocês devem saber que não são os primeiros a tentar algo assim, não é? – Ele falou, suavemente, abrindo um sorriso torto e gelado para o líder do grupo. – Preciso mesmo mencionar o que aconteceu com os que tentaram?

Clary sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Ele não precisava pronunciar em palavras para que ela se lembrasse dos ataques que sofreram diversas vezes nas cidades em que passaram nos últimos tempos; todos buscando glória ou reconhecimento ao levar o que a Clave mais desejava, mas poucos sobreviveram à Sebastian para contar história. Uma das razões para eles conseguirem escapar por tanto tempo era que qualquer ameaça podia ser facilmente destruída por Sebastian. Ela relaxou os ombros e tentou não pensar mais naquilo.

– Não temos medo de você, Morgenstern – um dos Caçadores mais baixos falou, erguendo a cabeça ameaçadoramente. Sebastian soltou uma risada, daquelas que faziam Clary querer recuar.

– Que pena, deveriam ter – ele rebateu, parecendo entediado. Então, antes que Clary pudesse piscar os olhos para assimilar a cena, Sebastian puxou a espada detrás da poltrona e os atacou.

Os três Caçadores de Sombras imediatamente largaram as garrafas de bebidas no chão, que se estilhaçaram em pedaços num barulho alto, e puxaram suas armas em tempo de revidar. O líder do grupo carregava uma espada grande na mão, a lâmina brilhando na pouca iluminação, enquanto os outros dois pareciam estar armados apenas com adagas. Mas, ainda assim, Sebastian estava em desvantagem por números.

Não que isso realmente importasse. Numa velocidade inumana, ele se lançou contra o líder do grupo, que reagiu rapidamente, e o barulho de lâmina contra lâmina ecoou pelo pátio. O Caçador era bom, Clary percebeu, com movimentos precisos e bem realizados, mas Sebastian era ainda melhor. Mantendo a arma do outro ocupada com sua espada Morgenstern, Sebastian girou o corpo antes que o Caçador percebesse o movimento e o chutou com força, fazendo-o recuar um passo e abaixar a espada. Ele aproveitou aquele rápido instante de guarda baixa e ergueu sua espada em direção do outro, mas o segundo Caçador de Sombras, com a pele morena e a estatura mais baixa, entrou na briga e postou-se do outro lado de Sebastian, obrigando-o a se virar para dar atenção ao novo adversário, enquanto o líder atrás dele se recuperava.

Sebastian trincou o maxilar, parecendo aborrecido, e apertou o cabo da espada na mão. O novo oponente não representava uma ameaça real, visto que estava armado apenas com uma adaga, mas ainda significava uma distração. Sebastian desferiu golpes com a espada em direção dele, no entanto o Caçador era bastante ágil e desviava com destreza. Com o canto do olho, Clary notou quando o líder aproximou-se de Sebastian, a espada erguida na mão firme, e berrou um “cuidado!” para alertá-lo, mas que pode ter soado apenas como um grunhido. Porém, foi o suficiente para que Sebastian percebesse a aproximação do outro Caçador e, soltando um palavrão, dividisse sua atenção para lidar com os dois.

Concentrada na luta do irmão, Clary mal notou que faltava um dos Caçadores. Atordoada, ela virou a cabeça, estreitando os olhos para conseguir enxergar naquele ambiente escuro, mas não encontrou ninguém. Com a ponta do dedo, ela tocou o cabo da espada Morgenstern embainhada no cinto de armas, ao lado de sua estela. Podia desenhar um Portal e garantir uma fuga para ela e Sebastian, ou qualquer outro símbolo que os ajudasse a sair sem ser seguidos, mas não havia tempo.

Clary desembainhou a espada e apertou o cabo na mão, erguendo-a em posição de ataque. Arriscou um olhar para ver como Sebastian estava se saindo, mas antes mesmo que ela pudesse assimilar a cena, uma força invisível a atingiu por trás, empurrando seu corpo contra a parede de concreto, do outro lado do pátio. Sua cabeça bateu na parede, deixando-a tonta, e estrelas brilhantes dançaram em seus olhos antes que ela digerisse o que havia acontecido. Agarrando-se no cabo da espada como se sua vida dependesse disso, Clary levantou-se, ignorando a tontura, e encarou o terceiro Caçador de Sombras diante dela.

Ele tinha cabelos castanhos recentemente cortados, talvez uns bons vinte centímetros mais alto que Clary e músculos bem definidos. Não chegava a parecer tão ameaçador e forte como o líder do grupo, mas algo nas muitas cicatrizes em sua pele branca fazia com que ela sentisse que deveria temê-lo.

O olhar dela foi rapidamente atraído para a arma na mão dele: uma adaga. Pelo menos nisso ela tinha alguma vantagem. Aproximando-se num pulo, ela levou a espada em direção da cabeça do Caçador, cortando o ar com a lâmina quando ele se abaixou e, girando o corpo num movimento perfeito, atacou Clary com a adaga. Ela sentiu a arma rasgar sua roupa levemente, mas conseguiu sair ilesa ao desviar do golpe no último segundo. Ela atacou com a espada de novo e ele desviou, atacando-a em seguida, mas ela também era ágil e conseguia escapar. Não havia pausa nem descanso; os dois atacavam e defendiam, numa sincronia tão perfeita que quase parecia ter sido ensaiada.

Por fim, o Caçador não calculou direito o movimento ao tentar desviar e a espada de Clary acertou a perna esquerda dele, abrindo um corte fundo. Ele rugiu de dor e isso foi o suficiente para motivá-la a continuar: dando um giro, ela trouxe a lâmina abaixo e atingiu o ombro direito dele levemente, antes que ele saísse de perto. Clary ofegou, mas não se sentia cansada; pelo contrário, a sensação familiar de adrenalina a preencheu por completo e ela nunca se sentiu tão invencível.

Mas o momento durou pouco tempo. A atenção dela foi desviada quando o barulho de metal atingindo o chão ecoou pelo pátio. Esquecendo-se da própria luta por um instante, Clary virou a cabeça e viu Sebastian desarmado, a espada Morgenstern caída à metros de distância, e os dois Caçadores de Sombras com as armas apontadas para ele. Por um breve segundo, os olhares deles se encontraram e Sebastian arregalou os olhos para ela em um aviso silencioso, segundos antes do Caçador de cabelos castanhos agarrar o braço dela que segurava a espada, arrancá-la de sua mão à força e, dando um giro tão rápido ao redor do corpo dela que Clary mal conseguiu ver, encostar a ponta da lâmina da espada, a sua própria espada Morgenstern, no pescoço dela.

Agora estou irritado – anunciou Sebastian, franzindo as sobrancelhas.

– Clarissa Morgenstern, você é um verdadeiro mistério – o Caçador de Sombras falou atrás de Clary, o hálito quente dele no pescoço dela, onde a espada se encaixava. – Por que a garota preferida da Clave de repente largou tudo para trás para ficar com o irmão fugitivo? Por que abandonar os Lightwood e sua mãe para viver como uma criminosa? Não parece muito inteligente.

À menção de seus amigos, Clary sentiu o coração enfraquecer, como sempre acontecia quando alguém tocava nos nomes deles. Nos primeiros meses depois que ela havia ido embora, ela conseguira convencer Sebastian a visitá-los ao menos uma vez ao mês, de alguma maneira que eles não pudessem vê-la. Então, eles iam para o Instituto e ela desenhava runas que os deixassem invisíveis, até mesmo para outros Caçadores de Sombras, e Clary os observava por alguma janela, silenciosamente. Observava Isabelle arrumando suas roupas e tentando cozinhar, Alec e Magnus trocando carícias, e até conseguira ver Simon fora do Instituto uma vez ou outra, esperando por Izzy. Mas todas as vezes que ela havia visto Jace, ele estava do mesmo jeito; frio, inalcançável. Sempre evitando trocar palavras com alguém, como se aquela máscara que Clary havia conseguido derrubar quando se conheceram houvesse voltado para ele, dessa vez mais firme. Mais inabalável.

Não foi Sebastian que a persuadiu a parar de visitá-los. Ele sempre demonstrou que não gostava daquilo, mas respeitava a escolha dela. No entanto, chegou um dia em algum lugar distante que Clary acordou e se deu conta de que não podia viver daquele jeito. Não podia continuar se prendendo à sua vida antiga, como se houvesse alguma chance de ela voltar a ser quem era. De certa forma, vê-los seguindo em frente sem a presença dela doía muito mais do que simplesmente tentar esquecê-los. E então, ela decidiu parar e Sebastian decidiu nunca mais tocar no nome de algum deles ou sequer viajarem para Nova York novamente; simplesmente evitavam tudo que pudesse trazer a lembrança à tona.

Mas ainda doía. Toda vez que alguém falava deles, o peito de Clary se apertava e doía como se houvesse um grande buraco ali dentro. Um buraco que, não importa o quanto ela fugisse, nunca iria desaparecer. Uma ferida que, nem mesmo com o iratze mais poderoso que ela podia desenhar, iria se cicatrizar.

Mas apesar de tudo que ela havia feito, ainda guardava dentro de si mesma uma nota mental que a dizia que ela não merecia estar ouvindo aquilo. Simplesmente não era certo ou ao menos justo que alguém jogasse suas ações na cara de Clary e a julgasse como a pior pessoa do mundo, como se por algum momento tivesse sido fácil. Poucas coisas eram mais dolorosas do que dizer adeus a alguém que você ama.

– Você não sabe nada sobre mim – ela rebateu, trincando os dentes. E fechando os olhos com força, Clary apertou os lábios e disse: – E eu vou matá-lo por ter cruzado o nosso caminho.

Do outro lado, Sebastian abriu um sorriso satisfeito e, ao abrir os olhos, Clary quase conseguiu enxergar certo sinal de orgulho. Atrás dela, o Caçador de Sombras gargalhou, o peito dele estremecendo nas costas dela.

– Sei que você é uma garota estúpida, principalmente por achar que pode me matar estando desarmada – ele disse num tom de deboche e apertou mais a espada na garganta de Clary. Engolindo em seco, ela viu uma gota de sangue cair na sua roupa, manchando o tecido.

Erguendo um pouco a cabeça, Clary encontrou o olhar de Sebastian. Não precisavam sequer abrir a boca para transmitirem o recado; bastava um olhar e era como se tivessem lido a mente um do outro.

Tão rápido quanto a velocidade da luz, Sebastian moveu a mão e alcançou uma faca escondida na calça, fora do alcance de visão dos outros. Dando uma piscadela para Clary antes, ele ergueu a faca na mão e a lançou contra o Caçador de Sombras menor, a ponta da lâmina acertando seu coração numa mira perfeita.

Clary sentiu o Caçador de Sombras atrás dela baixar a guarda ao observar a luta de Sebastian com o líder do grupo, o corpo do amigo ao lado no chão, imóvel. Inconscientemente agradecendo aos Céus por ser baixinha como era, ela levou a mão esquerda para trás de si e enfiou o dedo no corte profundo que ela fizera na perna do Caçador. Ele berrou de dor e abaixou a mão automaticamente por um segundo; mas era apenas um segundo que Clary precisava mesmo. Erguendo o pé direito, ela puxou uma adaga escondida dentro da bota preta e, virando o corpo, enfiou a lâmina no peito do Caçador.

– Que tipo de Caçador de Sombras anda por aí somente com uma arma? – Clary perguntou, abrindo um sorriso satisfeito, enquanto ele a olhava com os olhos arregalados. Num baque surdo, o corpo do guerreiro caiu no chão.

Clary pegou sua espada do chão e, virando-se para o irmão, jogou-a para o ar. Como se tivesse sido treinado para realizar aquele movimento a vida inteira, Sebastian agarrou o cabo da espada ainda no ar e desceu-a, cravando a lâmina no peito do Caçador de Sombras. O corpo dele também foi ao chão, os olhos perdendo o brilho da vida.

Respirando com dificuldade, Clary olhou para o irmão que ofegava, visivelmente cansado. Ela desejava aplicar uma iratze no corpo para recuperar as energias, mas sabia que precisavam sair dali o quanto antes. Quanto mais tempo ficavam em um lugar, mais perigoso esse lugar se tornava.

Trocando um olhar rápido, mas compreensível, Clary procurou pelo casaco e a espada de Sebastian e depois entrelaçou os dedos da mão na dele, enquanto ele girava o anel na mão livre. Segundos depois, a escuridão engoliu os dois.

◌◌◌

De volta ao apartamento deles – aquele mesmo apartamento que Clary havia aprendido a chamar de lar, Sebastian cuidou de mudá-los de lugar. Ela subiu os degraus e entrou no quarto. Por alguma razão, caminhou até a janela, encostando os dedos no vidro ao encarar Paris de longe. Um dia eles voltariam, ela sabia, embora fosse demorar um pouco.

Clary ergueu sua espada que ainda segurava e observou a lâmina prata, gravada com estrelas pretas. Morgenstern. Observou o próprio reflexo nela por alguns instantes, mas sua atenção foi atraída para uma mancha de sangue quase seco, a tinta escarlate seguindo uma linha fina pela lâmina. Era o sangue dela.

Abaixando a cabeça, ela passou a mão pela roupa que usava, esfregando as partes manchadas com sangue, como se pudesse limpá-la apenas fazendo isso. Não sabia se o sangue era dela ou de algum dos Caçadores de Sombras, mas aquele sangue a fazia sentir-se mal. Fazia com que ela se sentisse uma estranha dentro de seu corpo.

Ela havia matado uma pessoa naquele dia; havia enfiado uma adaga no coração de alguém e assistido enquanto a vida se esvaía de seus olhos. E pior que isso, ela havia sentido alguma satisfação em fazer isso, como seu irmão sentiria. Isso a tornava má? De alguma forma, isso provava que ela havia realmente se transformado em outra pessoa?

Sebastian entrou no quarto e sua presença fez Clary acordar dos próprios devaneios. Inconscientemente, ela brigou consigo mesma por permitir que aqueles pensamentos a atormentassem; se havia uma coisa que ela aprendera com tudo o que aconteceu foi que alguns sacrifícios são necessários. Não podia entrar em depressão toda vez que uma vida chegasse ao fim nas mãos dela, pelo menos não com a vida que ela levava naquele momento.

– Pare de pensar nisso – Sebastian disse, aproximando-se dela.

Delicadamente, ele tirou a espada das mãos dela e a substituiu por uma estela. Clary apertou o objeto nas mãos, sentindo a familiaridade e o conforto que ele trazia a ela, quase como um pincel. Percebendo a expressão no rosto dela, Sebastian abriu um sorriso torto e colocou a espada no chão, em seguida tirou a camiseta com cuidado.

Automaticamente, Clary ergueu a mão e tocou o peito dele com as pontas dos dedos, seu toque passeando pelas cicatrizes antigas e as novas feridas causadas pela luta. O sangue se destacava na pele pálida de Sebastian e, por alguma razão, isso a fez se lembrar de uma tela de pintura.

Segurando a estela firme na mão, Clary desenhou uma iratze aqui e ali, observando com atenção as linhas mágicas queimando a pele num brilho avermelhado e, em seguida, transformando-se em linhas negras, como uma tatuagem mundana. Os ferimentos começaram a se cicatrizar, as feridas se fechando e a cor vermelha voltando ao normal da pele. Era algo lindo de ver, algo mágico.

Observando-a com atenção, Sebastian pegou a mão dela e, com a outra, pegou a estela e começou a desenhar uma iratze na pele dela. Clary fechou os olhos e sentiu a fraqueza ir embora, subitamente tomada pela força e dose de energia recém-chegadas. Ainda com os olhos fechados, ela sentiu quando Sebastian se aproximou mais, a respiração quente no rosto dela, e os lábios delicadamente tocando os dela. Não foi um beijo apressado ou cheio de urgência, não foi um beijo cheio de malícia ou até romance; foi só um beijo simples, apenas um toque de lábios, para lembrá-la de que ele estava ali, com ela. E que sempre estaria.

Clary abriu os olhos devagar, olhando com atenção cada detalhe em Sebastian; os olhos tão negros que as pupilas se misturavam com a íris, as sobrancelhas sempre estreitadas, como se ele tivesse o tempo todo analisando algo, as maçãs do rosto duras de Valentim, a boca fina suavizada pela delicadeza de Jocelyn, os cabelos brancos caindo na testa. Cada singelo detalhe transformava Sebastian em alguém diferente de todos, alguém único.

– Bem, o que eu estou pensando agora – Clary começou a dizer, acariciando o rosto de Sebastian com o polegar, ainda próximo dela – é que estou exatamente onde preciso estar. Com quem preciso estar.

– Você é minha, irmãzinha. Sempre foi e sempre será minha, sabia disso? – Sebastian sussurrou, encostando sua testa na dela carinhosamente.

Ainda colado a ela, Sebastian sorriu, de uma maneira diferente, sem nenhum sinal de maldade ou segundas intenções. Sorriu apenas por felicidade; por tê-la ao seu lado, aceitando-o como ele é e, ao mesmo tempo, querendo-o mudar para melhor. E antes que o sorriso desaparecesse de seus lábios, ele a puxou para si, abraçando firmemente sua cintura e descansando a cabeça em seu ombro.

Clary retribuiu o abraço, permitindo-se apoiar no ombro de Sebastian e olhar o céu através da janela ao seu lado. Devagar, quase que em câmera lenta, ela assistiu enquanto Paris se esvaía aos poucos, como se o vento estivesse levando a Torre Eiffel e o Arco do Triunfo embora, só para trazer uma nova cidade. Ela não tinha certeza de onde estavam naquele momento, mas não se importava. O importante era permanecer juntos.

– Sim, eu sei disso – Clary respondeu, deixando um sorriso se abrir em seus lábios. Ao longe, ela conseguiu enxergar o sol brilhante e alaranjado nascendo na linha do horizonte e, onde quer que estivessem, Clary considerou aquela visão como um sinal. Um recomeço.

Agarrando-se mais ao corpo de Sebastian, os braços no pescoço dele, Clary fechou os olhos e permitiu que sua mente flutuasse. Lembrou-se de todo o caminho que ela havia percorrido até aquele instante, desde o exato segundo em que foi atrás de Sebastian em busca de um acordo até o presente momento, onde ela se encontrava nos braços dele; o único lugar que, depois de tudo, ela realmente se sentia segura. E abriu um sorriso, ciente do fato de que ela havia verdadeiramente conseguido ensinar a ele o significado do amor, mas acima disso, havia sido Sebastian que ensinara a ela como amá-lo. E funcionara.


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Notas finais do capítulo

E fim ❤
YEAH, o final chegou! Nem consigo acreditar que consegui concluir a minha primeira fanfic, depois de quase 3 anos escrevendo ela. Sei que muitos nem vão ler isso aqui, mas eu só precisava encontrar um espaço para agradecer a TODOS vocês; por cada visualização, favorito, comentário (até mesmo aqueles que não diziam mais que uma palavra) e recomendação. Eu sei que perdi muitos leitores por conta dos meus atrasos, mas quando eu voltava, eu voltava por aqueles que nunca deixaram de acompanhar. Vocês fizeram com que eu continuasse a escrever e eu serei eternamente grata a cada um, porque isso me fez crescer como escritora (é só comparar o primeiro capítulo com o último pra perceber a evolução). Peço perdão pelas vezes que deixei de escrever por meses, por algum comentário não respondido ou até por não ter agradado alguém de alguma maneira. Todos vocês são muito especiais para mim, de verdade ❤
Se você gostou da minha história, deixe um comentário aqui e se quiser, faça uma recomendação! E se você, meu caro leitor fantasma, nunca falou comigo antes, eu peço gentilmente que aproveite esse último capítulo para deixar suas opiniões. E, finalmente, se você leu até aqui, eu tenho um anúncio importante: como prometido, já publiquei o Prólogo da nova fanfic Clastian que vocês pediram! A capa não ficou pronta em tempo, mas eu não queria fazê-los esperar muito tempo... Para encontrá-la, é só ir no meu perfil. Nos vemos lá ❤
Muito obrigada, mais uma vez, por tudo! Vocês são os melhores ❤