Em Tom De Azul escrita por Ella Sussuarana


Capítulo 5
Heresia minha


Notas iniciais do capítulo

Este é um dos meus textos preferidos. Escrevi enquanto passava por uma face terrível onde eu tentava compreender o que nos faz ser pecadores no sentindo de desejar outro corpo humano. Essa é uma questão complicada, porque há sempre a voz da sociedade em que crescemos dizendo que mulheres devem se resguardar para o marido e que não devemos cultivar a tentação em nossos âmagos. Porém, somos seres humanos e desejamos! E esse texto é sobre isso!



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Sempre houve heresia em minh’alma. Desde os primórdios de minha infância, eu não olhava para as coisas com a curiosidade banal da infância, eu procurava com os olhos meus as formas, as nuances, o movimento elíptico das folhas sendo arrastadas grosseiramente pelo vento forte. Eu não enxergava gentileza nem suavidade, via apenas as cores frias, a ereção de pai meu escondida sob a calça, mal disfarçada pela blusa amassada.

Tudo é imperfeito: o dente torto da moça que me sorri, as paredes com tinta velha do meu quarto, a saia desfiando entre as pernas de mãe minha, o cavalo todo preto com uma única mancha branca na barriga que vi passar pela praia durante a idade de roubar meu primeiro beijo. O cavalo passou, sumiu por detrás de umas dunas, areia pura, branca, irônica, lembro que quis rir. Nunca roubei o meu primeiro beijo, arranquei-o sem pudor na frente do Oceano, que é o único Deus meu.

Alguém blasfemo como eu não haveria de seguir ensinamento religioso, mas a própria leva-trás-vai-embora-nunca-mais da vida. Por isso rezo ao Oceano, acredito somente na verdade silenciosa e sozinha das marés, que se derramam sem vergonha sobre a areia, entregando-se, desejosas do afago por vir, e vorazes, que se transmutam constantemente, indo e voltando, à procura de sua essência primária.

Sou igual.

Mar feroz.

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Eu não.

Meus pais eram bons, gentis e pacientes; cresci em família cristã; disseram-me desde cedo quem eu deveria ser. Acreditei desde cedo também. Mas simpatizei com prosa, os cânticos e os quadros que adornavam as Igrejas eram demasiadamente ostensivos; eu preferia a poesia cantada que saía dos botecos, gostava do movimento suave que a fumaça vazia ao se esvair pela boca da mulata. Somente ali via delicadeza no mundo inteiro.

Passei a adolescência em conflito com o ser e o não ser. Graças ao meu débil desprezo por clássicos durante esta fase, nunca li Shakespeare! O que seria de mim, se o tivesse feito? Talvez tivesse me decidido há mais tempo a cometer o tal crime – sei que não se deve utilizar o tal, tal, sem haver um prévio referencial, mas só porque não citei ainda a situação para você não significa que ela já não seja algo recorrente em meus instantes. Em todos os instantes.

Julguei que sentiria medo ou que de dentro de mim emergiria uma voz racional enlouquecida a gritar-me – Para! Irás manchar tua’lma para todo o sempre.

Deus verá.

O Oceano não.

O mar aqui é formado por corpos se movendo sem sincronia única, é um maremoto eclodindo. Música alta, copos vibrando, seios saltados se decotes muito profundos, descem tão baixos, em tecido apertado, em direção ao sentido da vida – prazer pecaminoso.

Quero-a por inteiro. É errôneo. E é efêmero. É vermelho, suculento, poesia fraudulenta. Todas as verdades minhas encarnadas em um desejo animalesco. Irei pecar, meus pais. Juro que tentei ser diferente, dobrar em outra esquina e afastar-me de mim. Não dá, não consigo, sempre me encontro de novo nos olhos da outra, até mesmo da estranha que atravessa a rua, a qual nunca saberei o gosto do pecado do corpo.

Pecado. Palavra bonita. Sinto vontade de repeti-la, até ela se desmanchar em minha boca. E eu a comer.

Juro que quis ser diferente, juro que lutei contra a minha natureza rebelde, juro que tentei afogar os meus demônios. Mas, nem eles nem eu nos afogamos.

O oceano é o Deus meu, ele não haverá de me levar até que eu tenha cumprido a sina – devo arrancar inocências. Vou corrompê-la, Deus meu, família minha, vou fazê-la como eu, brutal e voraz, nunca satisfeita, metade eterna de um nada. Vou arrancar dela o que há de mais precioso e vou deixá-la sangrando na avenida, para todos verem que não precisam mais fingir ser.

“Quero que todos sejam corruptos até os ossos.” ¹

Porque já são!

Essa é a razão da existência minha: Desvelar a humanidade. Trazer a glória da selvageria libertina de volta ao homem e deixá-lo abastar-se de gozo, até a morte, amém. Pureza nunca mais. Bons modos à mesa nunca mais. Um mundo sem hipocrisia; somente o homem em seu estado de natureza.

E eu vou começar por ela.

Vou apalpá-la e rasgá-la e enfiá-la, de encontro ao asfalto, o meu gozo sem o gozo dela, só gritos na penumbra. Dois corpos querendo se fazer um, por parte de um. Será um vendaval. Eu irei prová-la, prová-la, prová-la e largá-la.

Haverá uma manchete no jornal no dia seguinte: Mulher perdida é encontrada. Ninguém entenderá. Não se trata de uma execução, mas da feitura de um mártir.

Não irei mais fingir, aceitarei a heresia nascida comigo: Corromperei meu corpo. No corpo dela.

Aqui estou eu, abrindo o mar de corpos, seguindo-a feito animal à sua presa. Ela não olha para não, nunca vai me ver.

Eu vejo seu rebolado, o cabelo ruivo agitando-se em movimento de pêndulo, parecendo pressentir que a hora da moça se finda. Eu vejo a pele desnuda dos braços e pernas e coxas carnudas; vejo a roupa preta apertando a pele e deixando-a vermelha. A pele toda vermelha. Todos os corpos também vermelhos, e as paredes e as garrafas e os sorrisos. Exceto eu. Minha cor é outra.

Ela sai. Eu espero. Atravesso as portas. Ela está escorada na parede, cabeça baixa, um cigarro metido na boca, lábios vermelhos, olhos avoados. Assopra a fumaça – tenho a imagem perfeita. Ando ela, degustando a expectativa de meu crime. Ela não me vê ainda. Bagunça os cabelos, puxa a saia, deixa o cigarro cair na calçada e retira outro da bolsa.

– Tem isqueiro? – Pergunto.

Meu corpo lateja pela necessidade do dela. A pele dos braços é tão alva, quero rir. Riu. Rio.

Ela estende a mão, o fogo sibilando em seus dedos, fazendo as unhas brilharem como se fossem garras. Mas, quem possui garras sou eu. E eu vou rasgá-la.

Fumo com ela. Ela ainda não me nota, me vê, mas não me nota. Eu vejo a curva dos seios dele, o precipício entre eles por onde anseio me jogar e me fazer perder e descer, descer, mais para baixo, para a região fonte de toda a sua feminilidade, e percorrer com a língua úmida a sua longitude, chupá-la, mordiscá-la, mal-tratá-la, devorá-la, fazê-la gritar por mim e depois gritar “Não quero mais, deixe-me em paz”.

“Vai transformar-te em ninfa do mar.” ²

Não sou provedor de paz. Vim das profundezas do Oceano infinito, para onde haverei de retornar com ela. Deixarei as águas tragá-las, puxá-las para a sua escuridão, banhar o corpo dela e vomitá-la à praia da forma em que viera a este mundo. Neste dia, todos saberão: A moça renasceu em nova Religião. Ela será a nossa primeira Santa Pecadora, e todos os homens irão reverenciá-la.

O coração bate apressado, quase me escapa o peito. É bicho feroz também. As mãos coçam, não aguentam esperar. Embaixo eu latejo; em cima, me perco nos devaneios meus.

Meu pai, minha mãe, meu irmão, juro que tentei resistir. Por tantos anos e meses e dias e horas.

“Seria isso pecado saber? Seria isso morte?” ³

Beijei a moça, não da forma delicada com que fiz parecer. Não virei o corpo meu na direção do dela, não houve gentileza, foi brutal. Eu a joguei na cara e forcei meus lábios no dela, tampando-lhe o grito de surpresa e de pavor. Ela não me beijou. Tentou morder-me. Adorei a ousadia. Devolvi a carícia com os meus dentes afiados, a boca minha faminta pelo gosto do sangue dela.

“É melhor reinar no Inferno que servir no Céu.” (4)

Meus pais, perdoem-me! A curiosidade dominara minha’alma, eu precisava saber ao menos uma vez como seria ter uma mulher em mim.

Meu Deus, veja, veja, não foi para isto que me fez? Para este curto momento onde a inocência implode e metamorfoseia em piche, coisa asquerosa, grudenta, que não sairá mais de mim. Que é para todos verem – esta criatura foi marcada pelo seu pecado. Vejam, vejam-me!

Senti o tapa dela no rosto meu. Senti os braços de outros nos braços meus, puxavam-me para longe dela. Não! – gritei. Debati-me. Atiram-me ao chão.

– Imunda.

“Imprudente cortesã!” (5)

Penso que cospem em mim. Não me batem, pois sou do sexo das flores delicadas. Xingam-me. Rolo no chão, quero esconder a face, mas todos já o viram. Irão correr e espalhar a notícia pela cidade: Há uma menina que se forçou para dentro de outra menina.


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Notas finais do capítulo

¹quote de 1984, de George Orwell (livro que eu super recomendo *.*)

²"PROSPERO - Go make thyself like a nymph o'th'sea.;"
- A tempestade, de William Shakespeare

³"Forbidden them to taste: Knowledge forbidd'n?
Suspicious, reasonless. Why should thir Lord
Envie them that? can it be sin to know,
Can it be death? and do they onely stand
By Ignorance, is that thir happie state,
The proof of thir obedience and thir faith?"
— Paradise Lost, John Milton

(4)quote de Paradise Lost, de John Milton

(5)"Imprudent strumpet" - Othello, W. Shakespeare

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Demorei 3 meses para escrever esse texto. Ele deveria ser o presente de aniversário de 18 anos da minha amiga, mas o aniversário dela já passou. Talvez, próximo ano, eu a presentei com ele. Ou não....
O que vocês acharam? Sejam sinceros, por favor.