Em Tom De Azul escrita por Ella Sussuarana


Capítulo 10
É lindo, vai renascer II


Notas iniciais do capítulo

Dica: leiam escutando Taking pictures of you, do The Kooks.



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Parte Dois

Taking pictures of you

.

"Oh I have a secret I need to tell you,
I've been true and I needed no clue,
We live in such extraordinary times,
Exquisite visions fill up my mind,"

– Taking pictures of you, The Kooks

.

Não sei se já perceberam ou se alguma fez na vida pararam para pensar sobre isso: Além da nossa essência, nós somos fragmentos das pessoas que amamos e que admiramos. Quando elas vão embora, eventualmente, elas nunca o vão completamente, porque nós roubamos algo dela – talvez com a esperança de que essa pessoa sempre esteja conosco.

Eu tenho um pouco da graciosidade, do ânimo e da melancolia que há em cada um de vocês. Porém, não sei qual característica vocês furtaram de mim. Talvez, tenha sido a minha paixão pelos livros e pela escrita; talvez, tenha sido uma música que somente eu gostava de fingir que sabia cantar; talvez, tenha sido a forma como olho para as pessoas e para a paisagem por um longo tempo, como se tivesse tentando absorvê-las, como se tivesse criando toda uma história para guardá-las dentro de mim.

Talvez, tenha sido algo muito pequeno: o sabor preferido do bolo ou do suco, a necessidade repentina de comer aquele bombom de plástico de chocolate. Ele não era realmente de plástico, mas gostávamos de brincar que era – porque ele era uma coisa borrachuda na boca, não mesmo gostoso que outros tantos bombons à venda na cantina do Seu Ari.

Ponho o meu copo de água morna no meu lado, olho para a oscilação que se forma dentro dele. As ondas querem se expandir para o mundo, mas encontram uma barreira física e quebram, oscilam para cima, mas não coseguem formar energia potencial o suficiente para escapar do copo. Então a água cai, uma gota que afunda e cria outras ondas. E nenhuma jamais conseguirá ser livre. Em algum momento, a ebulição do sistema cessa e ele é novamente um copo com água extática.

Isso me lembra de como éramos antes dos dias ruins.

Costumávamos transitar juntos numa explosão de júbilo que contagia – ou que incomodava – todos ao nosso redor. Não éramos perfeitos, tivemos momentos de briga e de drama e de solidão, mas esses só viriam depois. Estou falando aqui daquelas dias primeiros de amizade, naquela época em que tudo é lindo e mágico, porque estamos começando a conhecer as pessoas e, por isso, ignoramos a suas falhas e escondemos as nossas próprias. Nós éramos mais doces e gentis com nós mesmos, nós tomávamos cuidado para mostrar que nos importávamos. No meio do caminho, sem querer, começamos a perder isso.

Não, não, não é sobre isso que quero falar a você.

Eu quero falar sobre os primeiros dias.

Fomos felizes sem saber.

Estávamos no primeiro ano do Ensino Médio e não pensávamos nas problemáticas de gente grande, mesmo o vestibular era uma realidade distante que jamais incomodara os nossos sonos. Sexo, então, era um tema demasiadamente embaraçoso. Chego a rir disso. Dá para acreditar que um dia tivemos algum pudor?

Nem eu. Espero que os meus risos encham a sua mente, porque é exatamente isto que está acontecendo, neste instante, comigo – escuto a sua gargalhada e o seu bordão e riu também.

Não lembro muito bem daquele ano de dois mil e doze, ele se passa na minha mente como uma série de fotografias aleatórias, algumas ganham vida, apesar de não possuírem som; a maioria, contudo, são apenas a ilusão do momento que vivi.

Eu me vejo menor e mais assustada com você, também menor e mais feliz, sentada no chão da biblioteca com um livro de poesia no meu colo. Você achava lindo o meu amor pelas letras, e eu achava linda a sua inocência. Eu mostrava alguns dos meus poemas favoritos para você, e você descobria alguns para me contar na semana seguinte.

Você achava que eu e as meninas éramos falsas e que só falávamos mal e ríamos de você. Por isso, você sempre dizia que as suas verdadeiras amigas eram as outras. A R. e a A. sempre quiseram dizer umas coisas bem cruéis para você aprender que nós éramos as únicas preocupas com a sua felicidade e com o seu crescimento pessoal. A verdade era que queríamos que você menos criança, que abrisse os olhos e percebesse que o mundo não era tão perfeito, como você achava.

Até hoje, elas acham que fizeram uma maldade ao mundo ao tirá-lo da ignorância. Eu, como uma boa aspirante a escritora e a psicóloga, jamais irei saber se o que fizemos foi certo ou se foi puro egoísmo nosso.

Eu me lembro de todas as vezes que você disse que o mal não existia, que ele era apenas a ausência do bem, da mesma forma que a escuridão era a ausência da luz. Eu ria, mas hoje em dia não riria mais. É tão mais bonito pensar dessa forma...

Lembro-me de cinco pessoas andando debaixo do sol, usando a farda ridiculamente quente do colégio, carregando as mochilas, na época em que elas eram levinhas e fáceis de levar. Havia quatro meninas e um menino – eu, R., A., às vezes a P. e a J., e você. Nós costumávamos ser impacientes e nos programar com antecedência de uma semana antes de sair para um passeio no meio da tarde. Saíamos com ciquenta reais e voltávamos com vinte no bolso!

Quando saíamos, sempre para assistir filme, não passamos muito tempo sentados ao redor de uma mesa cheia de papel de comida – nunca restos de comida – conversando ou enrolando conversa.

Eu nunca tive saco para enrolar conversa. Naquela época, nem vocês, eu acho. A verdade é que já não me lembro.

Não tenho certeza se esse aniversário da A. foi nesse ano ou no posterior, mas acho que foi nesse mesmo. Corrija-me se estiver errada.

Era agosto, ventava forte na Beira-Mar, na época em que ainda a conhecíamos por esse nome. Havia risos, muito risos e cheiro de pipoca que fazia o meu estômago se revirar. Era fim de tarde, o sol se deitava logo atrás de nós, banhando o céu com aquela sua cor de rosa forte, laranja-dourado e azul-claro-começando-a-ficar-escuro. Estávamos perambulando pela nova Ponte dos Ingleses, a madeira rangia, mas era forte, não oscilava com o vento. Não tenho certeza se havia tantas pessoas nos sufocante quanto penso que teve, acho que esse foi um detalhe que a minha mente acrescentou depois, por engano, ao confundir uma lembrança com outra.

As outras pessoas, no entanto, não são importantes; nós o somos – eu, você, a R., a A., a M., quem eu não via há meses e quem vocês não conheciam tão bem, e a P.

Era dia vinte e cinco, aniversário da A., e ela queria que andássemos de patins. Foi tão divertido e doloroso!

Eu me lembro de todos nós agarrados numa grande, com medo de soltar e ousar os primeiros passos sobre aquelas rodinhas traiçoeiras. Lembro-me das gargalhadas que dávamos; mesmo com o medo, jamais perderíamos o humor.

Eu e A. passamos bastante tempo grudadas numa árvore, até tomarmos boas doses de coragem para nos jogarmos para frente. Eu, ou teria sido ela, ou teria sido as duas, acabei/acabou/acabamos esbarrando numa mesa. Ainda bem que estava vazia, pensa só na vergonha se derrubássemos as bebidas e a comida que haveriam sobre ela em cima de outras pessoas.

Depois de inúmeras quedas, ficou um pouco mais fácil. Já conseguíamos dar algumas voltas sem tropeças.

Inventamos de nos dar a mão, não nós todos, somente eu, você, a R. e talvez a P. Parecíamos aqueles jovens nos filmes, andando de patins e rindo, bobamente felizes, o cabelo ao vento, as pernas firmes. Conseguimos nos manter em pé por algum tempo, até que alguém caiu primeiro e levou todos ao chão num surpreendente e belo efeito cascata. Conclusão: três ou quatro jovens caídos um sobre o outro no chão, braços e pernas enrolados, mãos feridas, bumbuns e tornozelos doendo bastante. O irmão da A. tentou nos ajudar, mas ele acabou caindo também. Não muito depois disso, estávamos doloridos demais para continuar sobre oito rodas.

Então, ficamos andando no meio de tantas outras pessoas cujas faces nunca irei lembrar. Elas são fantasmas passando por mim, por nós, apenas espectros do que foram.

Não lembro o motivo que nos fez tirar os sapatos e irmos para a praia, mas a minha próxima lembrança é de nós correndo e molhando os pés e as calças. Alguém teve a brilhante ideia de não começar uma guerra de areia.

Também não lembro do que falamos nem quanto tempo ficamos lá, de frente para a imensidão do mar, mas lembro a sensação da areia afundando debaixo dos meus pés, da água morna ensopando a extremidade da minha calça, do vento frio nos meus braços, o meu cabelo sendo jogado na minha cara e do receio que tinha de me sentar e ficar ali, apenas ficar ali observando e pensando na vida.

Depois voltamos para o calçadão, ficamos sentados num banco, tirando a areia dos pés e decidindo como aquela noite deveria acabar. Fôssemos um ano e alguns meses mais velhos, ela teríamos ido para um boate gay próxima do Dragão Mar, dançaríamos a noite e a madrugada inteira ao som de divas do pop e de boa música eletrônica, e a festa, para nós, só acabaria no dia seguinte, por volta das oito, nove horas da manhã numa padaria ao lado do North Shopping.

Contudo, tínhamos quinze anos e decidimos ir comer pizza na Pizza Hunt (essa era a época em que eu não tinha trauma da Pizza Hunt, saudades). Você encheu uma pizza de quinze reais com tanto ketchup, que eu estava quase para sugerir que comesse somente o molho e deixasse os pedaços de pizza para nós. Comemos rápido, não me lembro do gosto nem do que a adornava, mas me lembro, perfeitamente, do gosto suave e refrescante do suco de abacaxi com limão. Uma delícia!

Essa foi a nossa primeira experiência com o mundo real do capitalismo. A conta chegou e os números superavam a casa dos cem reais. Um absurdo! Remexemos em nossos bolsos, mas a soma das nossas cédulas não chegava ao valor total. Éramos tão inocentes, pensávamos que, com vinte reais cada um, poderíamos pertencer àquele lugar de luxo e ostentação. Quando estávamos começando a pensar o quão engraçado seria ficarmos lavando os pratos para pagar a conta, a mãe da A. colaborou para completar o que faltava, e todos nós repiramos aliviados.

Eu não me lembro de outro fato marcante naquele ano, porque as minhas próximas lembranças são do ano seguinte e da realidade que finalmente chegou dando um soco nos nossos estômagos.

Apenas para deixar anotado: Houve sim uma época em que não existia drama, apenas felicidade.


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