Em Tom De Azul escrita por Ella Sussuarana


Capítulo 1
Daniella infeliz




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Acordou se sentindo imunda, seu corpo não vira resquício de água desde da noite de anteontem. Não estava com preguiça, apenas entediada, não fora feita para a rotina de estar sempre presa aos mesmos afazeres todos os dias; ela era antropóloga amadora, gostava de sair e de se esbarrar com gente interessante, aberta, que as expusesse a experiências diferentes das que achava que conhecia. Mas, não. Como todo o resto, escolhera o curso na universidade por dinheiro, não pela paixão; agora, por castigo da vida, era monotonia ela pura; tão enfadada com os dias que, se um dia, por acaso, alguém gritasse “Tédio?”, ela ergueria mecanicamente a mão e anunciaria, Eu!; O seu nome não era Daniella?, a amiga falaria; Era, responderia; e assim ficariam, sem saber o que dizer uma a outra.

Tomou banho de cinco minutos e meteu-se na roupa – calça jeans bamboleando nos joelhos e blusa sem cor. Estava emagrecendo, mesmo que comesse como se fosse duas; estava sempre com fome, embora nem sempre fosse a fome que se pensava ser. Meteu o pé na sapatilha, a coloração bege estava salpicada por uma disforme camada de sujeira acinzentada, e varreu todas as coisas essenciais à sobrevivência àquele dia para a boca de sua bolsa rósea apertada. Correu a escova no cabelo, enquanto revia se não se esquecera de algo, não poderia jamais se esquecer de algo – casaco azulado surrado, estojo com canetas semi-acabadas, fitas soltas extras, nova edição pocket das poesias de Leminski, celular preto modelo não-me-roube-sou-universitária-sou-pobre, caderno, pasta semi-aberta abarrotada de folhas manchadas e amassadas, livro odiado de Cálculo, desodorante, manteiga de cacau, protetor solar fator 30, creme mais para líquido hidratante, prendedor de cabelos, absorvente extra, livro extra de coletânea de poesias brasileiras simbolistas, barra de frutas sabor banana, barra de cereal com chocolate e pastilha de maçã verde. Estava tudo lá, menos a carteira, o dinheiro, a escova... A mãe bateu na porta. Já vou, já vou. Pegou a carteira, pegou o dinheiro, pegou as chaves de casa, pegou a escova, pegou a pulseira da sorte, pegou o dicionário e a apostila do curso de francês e jogou na bolsa, fazendo-a estufar como balão.

Vamos, disse à mãe, caminhando para fora do apartamento.

Tinha 21 anos e nenhuma convicção acerca de seu futuro. Durante as aulas eternas de Cálculo, costumava analisar os seus colegas de classe, a maioria parecia satisfeita com a sua escolha, planejava com fervor os passos, fazia projetos e pesquisas inovadoras, ganhavam prêmios e pontuações altas na classificação geral do curso, os professores os elogiavam, os ajudavam, alguns até já estagiavam e acumulavam algum dinheiro, falavam em sair de casa, dividir um lugar pequeno com os amigos ou com a namorada, e conseguir o emprego de seus sonhos – ganhar muito dinheiro trabalhando dia sim, três dias não. Ela os invejava, não pelo que deveria, mas pela felicidade plena que descansava nos olhos deles. Eles estavam realizados. Ela, por outro lado, tirava boas notas medianas, estudava bastante, sabia do que falava, era aluna exemplar em qualquer matéria relacionada à Química, era bem falada por alguns poucos professores, esquecida pela maioria; montava projetos interessantes no papel, escrevia artigos brilhantes acerca de qualquer coisa que não fosse o que deveria ser, ou seja, sua mente sempre divergia do curso que o Medo escolhera.

No tempo livre, e mesmo no tempo que deveria ser reservado ao estudo, gostava de escrever artigos sobre filmes, sobre livros, sobre pessoas, sobre lugares, sobre Filosofia, sobre tudo, exceto sobre Engenharia, porque Engenharia sempre parecia ser sinônimo de Inferno Interno. Pela janela meio-fechada do carro, encarou as árvores por trás dos muros brancos; era Setembro, mas ela acreditou, por um momento, que era Novembro, porque o vento que lhe açoitava a face era arenoso, era quente, machucava. Ademais, das copas das árvores saltavam folhas avermelhadas – estariam elas mortas, ou estariam elas vivas: eterno dilema metafísico.

No entanto, era Setembro; e ela, Daniella, infeliz.


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Notas finais do capítulo

Comente e distribua alegria, eu ouvi falar que faz bem! ^^