Um Anjo (quase) Caído escrita por Gaby Molina


Capítulo 36
Capítulo 36 - Um belo amanhecer




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Serena

Passei a madrugada inteira lendo tudo o que havia escrito no caderno de músicas. Eu sentia flashes me invadindo às vezes. Uma camiseta sobre lagartas lésbicas. Cookies. Soy Lattes. Coisas sem conexão, mas que me faziam sorrir por motivos que eu não podia explicar.

Até que cheguei em uma música chamada The Last Prayer.

And I'm keeping all the letters (E estou guardando todas as cartas)

I would send to Heaven (Que eu enviaria ao Paraíso)

The same day you get gone (No mesmo dia em que você se for)

Parei por um minuto. Se aquelas músicas eram sobre Heath e ele estava partindo naquela manhã, eu tinha algumas cartas para enviar ao Paraíso. Só tinha de encontrá-las.

* * *

"Zona completa" seria um eufemismo para o que meu quarto se tornou. Eu revirei cada gaveta, cada parte do armário, cada baú, porta jóias e o caramba e nada de cartas.

Quando sentei-me no chão, prestes a desistir, olhei para o lado e suspirei, me sentindo patética. Ali, embaixo da cama, havia um pequeno baú de madeira.

Patética. A palavra retumbou em minha cabeça e de repente ficou mais difícil respirar. Vi a mim mesma na calçada, ensopada e chorando, decidindo atravessar a rua. Vi dois faróis se aproximando.

Comprimi o desejo súbito de gritar e fui trazida de volta à realidade de uma só vez. O médico dissera que algumas memórias poderiam voltar aos poucos, mas entendi por que meu subconsciente bloqueara aquela. Era horrível demais.

Inspirei fundo e peguei o baú. O cadeado tinha senha. Tentei meu aniversário, o aniversário de Audrey, de minha mãe, de Thomas. Mas no fundo eu sabia a combinação.

O aniversário dele era perto do meu. Merda, eu tinha que saber. Mas se eu fazia aniversário em Julho...

Coloquei 07 como os dois últimos dígitos da combinação e fui virando os outros, dia por dia. Quando chegou ao dia 14, o cadeado se abriu. Suspirei, aliviada, e abri o pequeno baú. Esbocei um grande sorriso. Lá estava.

Abri uma delas — completamente amassada e rabiscada — e tomei coragem para ler.

Querido Seeler,

Espero que as coisas estejam bem aí em cima. Peça a Deus que não chova porque meu cabelo está bem bonito hoje. Tem mais ondas, e sei que você é apaixonado por elas.

Descobri que uma de suas camisas veio na minha mala por engano. Eu nunca devolvi, e nem vou. Costumava andar pela casa com ela, mas nunca contei isso a ninguém. Ela está perdendo o seu cheiro agora, e me arrependo de não ter roubado outras.

Estou com medo, Heath. Medo do momento em que você vai se tornar apenas uma lembrança. Do momento onde não vou mais me lembrar da sua risada baixa e presunçosa, ou mesmo da sua voz. Do seu cheiro. Do seu senso de humor britânico (que é a única coisa britânica em você, americano idiota), ou mesmo dos seus lábios. Ainda posso senti-los contra os meus quando fecho os olhos, mas me decepciono quando os abro e não encontro aquele par de olhos dourados me fitando de volta como se eu fosse aquele filme maravilhoso que você nunca cansa de assistir.

Sei que deve estar ocupado com todos os afazeres divinos e coisa do gênero, mas espero que pense em mim de tempos em tempos. Só para que eu não me sinta idiota por pensar em você o tempo todo.

Não li a última frase da carta, mas eu sabia o que estava escrito. Eu sabia que lera aquilo um milhão de vezes. Eu podia recitar aquela carta de cor, e isso me assustava.

Eu amei você desde o primeiro dia, e vou amar até o último.

No fundo, eu sabia. Apenas o olhar de Heath quando acordei no hospital já deixara claro seus sentimentos. A expectativa.

Eu sei que tem medo de que as pessoas se decepcionem com você quando resolvem te amar e estou lhe dizendo que tudo bem, ele dissera. Senti uma lágrima escorrer por meus olhos quando a lembrança de um Heath com asas em minha janela invadiu minha mente. Eu sentia o fervor daquela carta, eu entendia o sentimento. Ele era mais forte do que o que quer que estivesse errado com meu cérebro que se recusava a lembrar-se de Heath.

Porque eu me lembrava. Talvez não estivesse tudo completamente claro em minha mente, mas era claro o suficiente em meu coração.

Abri minha mala, agradecendo por ser preguiçosa e ainda não tê-la desfeito completamente e revirei-a até encontrar uma camisa branca grande demais que de certo não era minha. E então a vesti.

O sol ameaçava nascer, e ele levaria consigo o garoto que eu amava.

Guardei as cartas e peguei um par de chinelos, correndo para fora da casa sem deixar bilhetes. Patricia entenderia que era uma emergência.

Ou talvez não entendesse. Naquele momento, não importava. Corri por pelo menos vinte minutos. Minha mente não sabia direito o que estava fazendo, mas meus pés, sim.

Quando finalmente me convenci de que estava perdida, o par conhecido de olhos dourados me encontrou.

Heath

Os cabelos louros despenteados, o rosto vermelho por causa da corrida, minha camisa grande demais parecendo um vestido, o shorts curto de morangos do pijama, um chinelo no pé e outro estourado na mão direita. Os olhos mais bonitos que eu já vira brilhando, cravados em mim como se o apocalipse não pudesse fazê-los mudar de direção.

Serena nunca estivera mais linda.

— Um minuto — pedi a Caius, que assentiu, parecendo tão curioso quanto eu. Aproximei-me dela, que não se mexeu. — Argent, o que...? — franzi o cenho.

Ela me interrompeu com um beijo nos lábios. Cambaleei, surpreso, mas beijei-a de volta. Quando nos afastamos, tentei balbuciar alguma coisa novamente:

— Serena, por que...?

— Eu amo você — ela abriu um meio-sorriso, imitando o que eu dissera a ela no hospital. — Isso é tudo o que você precisa saber. Podemos resolver o resto depois.

E eu tinha certeza daquilo como nunca tivera certeza de nada em minha vida toda.

— Você se lembra de tudo?

— Bem, quase isso. A história das lagartas lésbicas ainda está um pouco enevoada — ela admitiu, torcendo o nariz.

Eu sorri.

— Amo essa. Posso contá-la a você antes de dormir. Provavelmente vou dramatizá-la um pouco.

— Nossa vida precisa de mais drama?

— Merda, você está sempre certa.

— Nem sempre. Mas me lembro bem do vestiário. Dessa eu me lembro — ela sussurrou e eu senti um sorriso malicioso tomar conta de meus lábios.

O que não era nada bom, considerando que nossa plateia incluía um anjo e meu pai.

— Você se lembra dele?! — Frederick gritou, encarando Serena com os olhos arregalados. — Isso não é possível.

— Por que não? — ergui uma sobrancelha.

Ele hesitou, mas por fim suspirou e me contou que Caius havia apagado a memória da Serena.

— Espero que possa me perdoar, garoto. Eu só não queria que você tivesse uma vida como a minha. Mas acho que já está grandinho o suficiente para tomar as próprias decisões.

Dei de ombros.

— Eu perdoo você.

Frederick ergueu uma sobrancelha.

— Sério?

— Claro. Aprendi que, às vezes, os pais querem o melhor para seus filhos.

— E nem precisou de dez mil horas, Frederick — disse Serena.

Não entendi, mas meu pai riu.

— Além do mais, eu rasguei a sua camisa que você pediu que eu não rasgasse — falei, lembrando que a estava usando no dia em que Serena foi atropelada e eu voei até o hospital.

Frederick assentiu. O silêncio se estendeu e eu soube que era hora da parte delicada.

— Faça o que tem de fazer — abri os braços num sinal de rendição, fitando Caius.

O anjo me fitou por um longo minuto.

— Vamos caminhar, Heath.

Aquelas caminhadas nunca terminavam bem.

— É impressionante — disse ele, andando ao meu lado. — É impressionante que a garota se lembre. Mas não impossível.

— É?

— Livre arbítrio, Heath. Como você bem descobriu, o Céu não pode controlar tudo.

— Mas meu pai...

— Frederick está magoado consigo mesmo, Nefilim. E não com o Céu. Eventualmente, ele vai se dar conta disso.

— Mas ele foi amaldiçoado.

— O Céu nunca amaldiçoou seu pai, Heath.

— Então como...? — um surto de entendimento transpareceu em meus olhos. — Minha mãe.

Caius assentiu.

— Frederick provocou emoções humanas demais em um anjo que não deveria ter nenhuma. Quando as coisas não funcionam do jeito que deveriam na Criação, há consequências. Os anjos não podem impedi-las. Fazem parte da natureza do mundo, de sua energia. Algumas coisas não devem ser modificadas. O Céu nunca interfere.

— Mas vocês derrubam anjos.

Caius abriu um leve sorriso entretido.

— As pessoas fazem suas próprias escolhas, Heath. Achei que já tivesse percebido isso. Elas não são boas nem ruins. São apenas escolhas. Ninguém é derrubado do Céu. Todo mundo tem um motivo para pular.

Fiquei em silêncio pois não sabia o que dizer. Ele estava certo.

—... O senhor provou uma coisa quando voou até o hospital, Heath. E Serena provou a mesma coisa hoje.

— O quê?

— Que o amor de vocês transcende qualquer ação divina. Estão protegidos pelo livre arbítrio, mas também pelo o que sentem. Porém, o senhor provou outra coisa naquele dia no hospital, Heath — ele abriu um leve sorriso. — Provou que ninguém pode cuidar de Serena Argent tão bem quanto você.

— Então é isso? Quer que eu continue sendo anjo da guarda dela?

Caius balançou a cabeça em negação.

— Isso seria contra as regras. Mas vou oferecer-lhe uma escolha, Heath James Seeler: pode voltar ao Céu e sua tentação será perdoada. Ou pode viver como um mortal comum. Há tempos o senhor já não protege mais a garota apenas pelo dever, então sei que continuará a fazê-lo. Só lhe pedirei uma coisa: seja bom. Viva sua vida com amor e gratidão, diga coisas bonitas. Sorria. Faça coisas boas sem pedir algo em troca. Não posso forçá-lo a nada disso por causa do livre arbítrio, mas posso pedir. E se, ao fim de sua vida, for um homem tão bom quanto é hoje, nos veremos novamente lá em cima. Quando estiver preparado. O que me diz?

Sorri.

— Pode dizer a Beethoven que vou sentir falta dele?

Caius assentiu.

— Mas... onde eu vou morar? — indaguei. — Duvido que a sra. Stewart vá...

— Pode morar comigo — sugeriu Frederick.

Encarei-o. — Sério mesmo?

— Claro, tem espaço de sobra. Tenho certeza de que Fred adoraria um colega de quarto.

Abri o maior dos sorrisos e o abracei.

— Senhor — chamou uma voz grave e conhecida atrás de nós. Damien fitou Caius por um minuto.

O supervisor assentiu e se afastou, junto com meu pai. Meu melhor amigo cravou o olhar em mim, mas não disse nada.

— Você pode ficar também — sugeri, tentando não colocar expectativa demais em minha própria voz.

Damien balançou a cabeça.

— Sabe que não posso, Heath. Meu lugar é no Céu, assim como seu lugar é aqui.

— Então é isso? Todos esses anos, e tudo o que tem para me dizer é adeus?

Serena

Damien mordeu o lábio.

— Eu te amo, cara — e abraçou Heath.

— Eu também te amo, parceiro.

Ergui uma sobrancelha.

— Já acabou o momento gay ou querem eu traga o cd da Lady GaGa?

— Argent, cale essa boca — Damien revirou os olhos. Depois um surto transpareceu em seus olhos verde-escuros e ele fitou Heath. — Hmmm... Seeler, tem mais uma coisa que eu preciso te contar. Venha aqui comigo um minuto, está bem?

Damien empurrou Heath por alguns metros, onde tinha certeza de que ninguém ouviria. Eu queria saber suas palavras exatas ao contar para seu melhor amigo sobre sua orientação sexual, mas não consegui ouvir o que ele disse. Mas ouvi a reação de Heath.

— O QUÊ?! Faz ideia de quantas vezes eu já fiquei pelado na sua frente?!

Damien riu como se soubesse que essa seria a reação dele.

—... Gull, você é um anjo gay! Dá para fazer um filme sobre isso! Ah meu Deus, já estou vendo o elenco — contou Heath, animado. — O Brad Pitt me interpretando...

— Seeler, o Brad Pitt está velho agora — falei. — Além do mais, você não é louro.

— Os atores não precisam ser exatamente iguais. Mas acho que estou um pouco atrás na lista atual de caras atraentes.

— Posso citar para você o dia todo! — sorri.

— Ótimo, faça isso. Quero saber quais nomes jogar no site de Macumba Online — disse ele. Eu sorri. — A Amber Heard interpretando a Serena... Vi um filme dela com o Nicolas Cage esses dias na TV.

— Ei, não sou tão sexy assim — defendi.

— Não é, mesmo. Mas, como eu disse, os atores não precisam ser exatamente iguais.

Empurrei-o.

— Babaca.

— Eu também amo você. Onde encaixamos a parte onde o Damien se apaixona por mim e vocês dois brigam pelo meu amor?

— Seeler, você não é atraente — disse Damien, sério.

— Qual é! Nem um pouquinho?

— Não, só de pensar eu já... — o louro recuou como se sentisse calafrios.

Dei uma cotovelada em Heath quando percebi que Caius e Frederick nos fitavam ao longe.

— Suponho que seja hora de ir — senti a mágoa na voz de Heath enquanto ele fitava Damien.

— Sim. Adeus, parceiro — eles se abraçaram novamente.

— Posso ganhar um abraço também? — pedi.

Damien hesitou, como se previsse uma pegadinha, mas por fim abriu os braços e eu afundei em seu peito.

— Acho que conseguimos tudo o que queríamos, não é? — sussurrou ele sem me soltar.

Ele interrompeu o abraço antes que eu respondesse. Caius dirigiu-se a Heath:

— Abra as asas.

O que aconteceu depois foi uma das coisas mais bonitas e mais tristes que já se presenciei. Quando as asas enormes apareceram nas costas de Heath, Caius estalou os dedos e elas começaram a assumir pequenos feixes, desfazendo-se pouco a pouco em grãos como de areia, porém dourados. Antes que tocassem o chão, eram levados pelo vento e desapareciam.

— Adeus — disse Caius e estava prestes a fazer uma saída triunfal quando Heath interrompeu:

— E dê asas a Damien! Ele as merece mais do que eu jamais mereci.

Caius sorriu.

— Vou manter isso em mente. Fechem os olhos.

Fizemos o ordenado. Senti a claridade mesmo com os olhos fechados e, quando os abri, Caius e Damien haviam desaparecido.

Acho que conseguimos tudo o que queríamos, não é?, as palavras de Damien retumbaram em minha mente.

Nem tudo, pensei, observando o olhar triste de Heath ao fitar o local de onde o melhor amigo havia desaparecido. Entrelacei seus dedos nos meus com força.

— Acabou — falei.

— Acabou — ele repetiu.

Repetimos aquela palavra mais algumas vezes, imaginando que talvez soasse mais real. Não soava.

— Eu amo você — falei. Aquilo sim soava real.

— Eu também amo você, Gato Preto.

Sorri.

— É isso que não entendo. Eu sou um Gato Preto, Seeler.

Ele me envolveu pela cintura e selou nossos lábios.

— Mas é o meu Gato Preto.

Beijei-o mais profundamente, e aquele foi o melhor de todos os nossos beijos, porque, daquela vez, ninguém estava indo embora.

Heath

— Estou me sentindo particularmente suicida hoje — constatei.

— Por quê?

— Porque vou jantar na sua casa — falei. Não era uma pergunta.

— Ei. Mal chegou e já está se autoconvidando?

Sorri.

— Peça à sua mãe que faça aquele pavê. Deus, como eu odeio aquele pavê.

— Então por que quer comer?

— Porque eu amo você para caralho.

— Já não acha que sofreu o suficiente por minha causa?

Eu ri.

— Nunca terei sofrido o suficiente por sua causa.

Serena me analisou por um longo minuto, tentando adivinhar meu plano secreto. Beijei a bochecha dela, secretamente satisfeito com o que eu estava planejando.


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