About Doomed escrita por Ninsa Stringfield


Capítulo 1
It's time to play




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"Se minhas loucuras tivessem explicação, não seriam loucuras"

Friedrich Nietzsche

Capítulo 1: It's time to play

O vento balançou sua cortina e ela respirou fundo. Não sabia a quanto tempo estava deitada daquele modo, no chão - por pura necessidade -, mas estava assim do mesmo jeito. Era uma coisa que tinha desde criança, deitar com as costas apoiadas sobre o tapete e colocar as pernas em cima da cama. Florence VanChester já tinha perdido a conta de quantas vezes adormecera naquela posição. Talvez, se ela desconsiderasse algumas das pessoas que conhecera na infância, ela era a única pessoa no mundo que considerava aquela posição agradável. Não que ela fosse, na verdade, não era, mas mesmo assim era reconfortante. Dava-lhe a sensação de controle.

O vento agitou seu cabelo, fazendo os poucos fios que anteriormente descansavam em seu rosto, voarem no ar, numa dança ritmada com o vento. Ela estremeceu, não por frio, mas porque sabia o que estava por vir.

O alarme começou a tocar, suas luzes vermelho-vibrate brilhando na pouca claridade, exibindo o horário: 5:40 da manhã. Ela fez uma careta para o teto, rolando a cabeça para o lado e encostando a bochecha no chão frio. Não tinha conseguido dormir, sonhos malucos a atormentaram novamente, mas já hà muito ela tinha desistido de combatê-los, agora apenas aceitava e se conformava que, provavelmente, morreria tendo aqueles pesadelos, as máscaras brancas de sorrisos enigmáticos queimando sob suas pálpebras.

Florence abriu os olhos apenas para encarar o céu ainda cheio de estrelas, aquela era uma manhã bonita, apesar de tudo, o sol ainda não tinha nascido, mas ela via vislumbres de seus raios sobre prédios longínquos. As estrelas que ainda restavam pareciam piscar para ela, como se a avisassem algo, não que ela compreendesse sobre o que se tratava, é claro, apenas acreditava naquilo. O céu era uma mistura de tonalidades escuras, em alguns cantos o amarelo vibrante do sol queimava seus olhos, se misturando com o laranja e o vermelho; já em outros, o céu se comparava com o mar, os tons de azul dançando sobre uma escuridão infinita, as nuvens quase não apareciam, mas Florence conseguia acompanhar seus movimentos com o olhar.

O vento sussurrava em seu ouvido coisas que ela não compreendia, como sempre em sua vida, mas ela já tinha aprendido a ignorá-las, a brisa de verão agitou seus cabelos novamente e ela piscou devagar. Aquela era uma sensação incrível, dava-lhe o prazer e o gostinho da liberdade, coisa que ela acreditava quando pequena ser algo impossível…

Ela ouviu batidas leves em sua porta e abriu os olhos sobressaltada. Logo seu coração voltou ao ritmo normal e ela balbuciou algo permitindo que a pessoa entrasse. O cabelo já quase todo branco foi a primeira coisa que viu, depois uma camisa rasgada coberta por um blusão de moletom que seu pai sempre usava para corridas matinais e finalmente seu sorriso. Stephen poderia não ser seu pai de verdade, mas ela o considerava como tal, e ver seu sorriso fazia com que ela sorrisse também, fazia com que ela se esquecesse de quase todos seus problemas.

– Já está acordada? - perguntou, enquanto adentrava no quarto.

– Não consegui dormir.

– Entendo - ele se sentou na cama da garota ainda coberta pelos cobertores emaranhados uns nos outros, ao lado dos pés da menina - Pelo que me lembro já fazia um tempo que você não ficava tão inquieta.

– Gosto de ser inquieta.

Ele sorriu.

– Sei que gosta - disse - Mas é incomum você não dormir, você adora dormir.

– Talvez eu goste mais de dormir do que goste de mim mesma.

– Não é difícil encontrar algo que a faça possuir mais admiração do que você tem pela própria vida.

Ela piscou concordando.

– Mas então - continuou ele - Vai ficar aí o dia todo ou vai se levantar para tomar café?

– Ainda são cinco horas da manhã.

– Tecnicamente já são quase seis - ele se levantou e caminhou até a porta. - Vou correr, o café está em cima da mesa do jeito que você gosta - ele se virou para ela - Fiz panquecas em forma de ursos e de coelhos, é melhor você comer - ele desapareceu no corredor - Melhor eu ver aqueles pratos vazios quando chegar!

Florence riu. As panquecas de Stephen eram realmente maravilhosas! Ela ainda acreditava na sua teoria de ter aceitado ficar com ele só pelas panquecas que fazia. Quando ela chegou àquela casa e encontrou as panquecas, se apaixonara, e ao perceber isso, ele começou a fazê-las todos os dias, como um incentivo para que ela nunca partisse.

E ela nunca o faria.

Relutantemente, ela se levantou, ficando um pouco tonta no início pelo movimento brusco mas logo se estabelecendo. O pior de tudo naquele dia com certeza seria o fato de que ainda teria que ir para a escola. Ela xingou todos os deuses possíveis em seus pensamentos e andou curvada até seu guarda-roupa, como se estivesse morrendo. Pegou as primeiras peças de roupa que vira, sem nem ao menos saber qual eram, já que estava escuro, e o único brilho de luz provinha de sua janela, no canto oposto ao seu guarda-roupa. Ela foi até o banheiro e tomou um banho rápido, molhando os cabelos e os deixando emaranhados de propósito, adorava ter uma aparência relaxada.

Florence acreditava que se adorasse o que fazia, ela pararia de perceber os olhares curiosos sobre si e tudo ficaria perfeito. Pelo menos tinha funcionado até agora. Ao se trocar, ela percebeu que vestia uma blusa um tanto larga de uma banda antiga que antes era de Stephen e um shorts jeans rasgados graças as diversas vezes que ela e Scott caíram no chão quando tentaram praticar esportes radicais. Nenhuma das atividades nunca acabava bem. Depois pegou um moletom cinza com capuz largo e colocou uma de suas meias ¾ pretas com rendas nas pontas, calçando uma botina marrom escuro.

O cabelo ainda pingava em seus ombros, mas ela os deixou soltos do mesmo jeito, gostava de andar com a cabeça molhada. Estava com preguiça de arrumar a cama, então apenas colocou um dos cobertores mais grossos esticados por cima dos outros e pegou seus livros em cima de sua estante, e sua mochila estilo carteiro que estava apoiada em uma cadeira, no chão.

Descendo as escadas para chegar a cozinha, ainda no escuro e no silêncio da madrugada, olhou para o relógio na sala de estar e viu que ainda eram 6:30, sua primeira aula era às 8:00. Ela jogou seu material na bancada ao lado de um prato contendo panquecas em formas de animais ainda quentes. Florence sorriu para a escuridão enquanto mastigava a cabeça de um urso. Stephen era realmente o pai perfeito. Por que ela não poderia ser sua filha de verdade? Dando de ombros, ela sentou em uma cadeira próxima e procurou o controle da televisão ainda no escuro, tateando a bancada até encontrar o objeto.

Nada de bom passava aquela hora da manhã, desistindo do assunto, abriu sua bolsa e pegou seu Ipod e fones de ouvido, colocando uma música aleatória no máximo para acordá-la, mesmo não estando com tanto sono assim. O sol já tinha nascido quando ela acabara de comer, mas ainda era muito cedo para ir para a escola. Suspirando, Florence pegou suas coisas e saiu de casa.

A brisa de verão ainda cobria o ar, e ela adorava sentí-la no rosto, era como um beijo do vento, uma representação de afeto depois de tanto tempo em meio ao sofrimento. Ela não sabia para onde estava indo, apenas queria sair de casa. Percebeu que seus pés a conduziam até o parque central de sua cidade, ela não tinha intenção de chegar lá tão cedo. Ela e Scott geralmente se encontravam ali quase no último segundo para entrar na aula, um dos dois sempre atrasado. Florence se sentou no banco que costumava se sentar para esperar o amigo.

O parque estava vazio, tirando alguns corajosos que se atreviam a passear por ali tão cedo. Ela puxou as mangas mais para as pontas dos dedos, cobrindo-os do vento. Não sabia o que faria até que desse a hora de ir para a escola. Não tinha vontade de fazer nada, nem de andar nem de ficar parada, apenas não sabia o que fazer, e isso sempre a irritava.

Estremeceu levemente quando o vendo aumentou de intensidade e os cabelos em sua nuca voaram para seu rosto, ela olhou para trás, intrigada pela mudança repentina na temperatura. O vento, que antes era apenas uma leve brisa, agora parecia querer golpeá-la com pedras de gelo. Ela sentiu os pelos de sua perna esticando, todo seu corpo estremecia, até que ela viu…

Não era nada incomum naquela região, palhaços perambulando pelo parque, principalmente naquele época, em que um circo se estalara no local. Mas ela sabia que o homem mascarado encarando-a do outro lado do parque, o corpo encoberto pelas sombras da árvore, não era nenhum palhaço. Ela conhecia aquela figura tão bem quanto conhecia a si própria.

Se levantando de um pulo, Florence enrijeceu. O homem mascarado se voltou para trás, e logo desapareceu nas sombras. Ela odiava quando aquilo acontecia, mas mesmo sabendo que não presenciava aquela cena há cinco anos, todas suas características, que eram sempre as mesmas, se mantinham. O chapéu preto com abas grossas encobria o rosto já coberto por uma máscara branca daquelas que eram usadas em bailes há séculos atrás, o paletó sempre impecável, as mãos sempre cobertas por luvas pretas, e os olhos… Bom, não tinha olhos. Pelo menos Florence nunca os vira. Toda vez que via as criaturas mascaradas quando criança, ela os via de longe, parte dela sempre agradecendo por isso, mas depois de tudo que passara...ela não deixaria aquele homem fugir novamente.

Correndo para alcançá-lo, Florence adentrou na parte mais densa do parque a procura do homem, ou do seja lá que aquilo que a perseguira desde sempre fosse.

Becky Hill era uma cidade um tanto teatral. Ou pelo menos, aquela era a única palavra que Florence conseguia usar para descrever o lugar. Com lojas de doces em estilo medieval por todas as esquinas e com os milhares artistas que se apresentavam na rua e no parque sem motivo aparente. Florence gostava de pensar naquele lugar como um circo gigante, e ela fazia parte da atração por apenas estar ali. O parque era o ponto mais procurado por turistas que vinham de diversas regiões do mundo curiosos pela peculiaridade do lugar, que era composto por milhares de tendas enfeitadas e coloridas por quase todo o lugar, onde mulheres vestindo turbantes e com acessórios espalhafatosos faziam o papel de cigana para qualquer um tolo demais para pagar. Onde malabaristas e mágicos especializados em diversos truques se apresentavam do nada na sua frente apenas por alguns trocados.

Florence era apaixonada por aquele lugar. E até mesmo seus habitantes a encantavam, com seus surpreendentes talentos para enganar as pessoas, o carisma avassalador e a gentileza, que receberam Florence a cinco anos de braços abertos.

Mas ela tinha se refugiado ali porque acreditava com todas as suas forças que nunca seria incomodada novamente, com a crença cega de que nunca precisaria ver mais uma máscara branca na sua vida. E ali estava ela, a máscara branca acompanhada de seu dono misterioso, que andava como se estivesse flutuando, passando por entre as árvores como se estivesse apenas atravessando a rua para ir ao mercado. E pela primeira vez em sua vida, Florence estava em seu encalço, pronta para começar a exigir explicações quando o alcança-se.

E exatamente quando Florence começou a perceber que seus lábios estavam tremendo mais por medo do que por frio, a criatura parou, assim como Florence. Sem se virar para ela, o homem, ou seja lá o que aquilo fosse, começou a andar novamente e foi em direção a uma tenda no centro do parque e desapareceu em seu interior, uma das muitas ao redor da maior de todas, onde todos os anos uma grande apresentação reunindo todos os artistas da cidade atraiam ainda mais turistas, e cuja organização e decoração era responsabilidade da escola de Florence. Sem parar para pensar, ela foi atrás dele, com medo de que se não fosse rápido, desistiria.

Apenas quando atravessou um pano fino e cheio de sinos e pedras que tilintavam ao se chocar, foi que ela percebeu que a tenda era uma das muitas que perseguiam as mulheres que enganavam os turistas alegando ter o dom da vidência. A mesa redonda coberta por um pano de veludo num tom de vinho, onde cartas de tarô estavam espalhadas por todo o lugar. Florence passou os olhos pelo pequeno espaço e encontrou a criatura que perseguia sentada numa cadeira em uma das extremidades da mesa, e uma outra se encontrava vazia do outro lado da mesa. Florence puxou a cadeira e se sentou nela sem tirar os olhos da criatura a sua frente.

Assim de perto, ele conseguia ser ainda mais assustadora. E ela não estava enganada, a criatura não possuía olhos, apenas dois buracos vazios na máscara ocupados por sombras. Ele mexia em um baralho convencional com as mãos enluvadas olhando diretamente para Florence, o sorriso preto sombrio desenhado na máscara deixava-a ainda mais nervosa.

– Quem é você? - ela reuniu coragem para perguntar.

Não houve resposta.

– Porque está me seguindo? - ela perguntou novamente, tentando não tremer - Ou melhor, porque você me persegue?

Ainda sem resposta.

Quem diabos é você? - ela se ouviu gritando. Lágrimas queimavam em seus olhos sem que ela conseguisse se conter. A criatura continuou parada fitando-a. Florence se levantou de um pulo e socou a mesa com as duas mãos, fazendo algumas cartas dançarem no ar - Me responda!

Está na hora de jogar– a criatura disse, era um som delirante, a voz, como vidro quebrado. Era sem vida.

– Jogar? - Florence repetiu incrédula - Jogar o quê? O quê está acontecendo? Quem é você? Por que está me perseguindo?

Está na hora de jogar – repetiu.

– De que jogo você está falando?

– Está na hora de jogar - até aquele momento, a criatura permanecia com o olhar fixo para a frente, onde Florence anteriormente estava sentada, mas ele levantou o olhar para ela quando disse: - E sua vida está em jogo.

O quê? - ela recuou, tropeçando na cadeira e caindo no chão com um baque surdo.

A criatura permaneceu sentada. O olhar fixo no ar como se Florence ainda estivesse em pé à sua frente. Mas então ela começou a mexer com as mãos no baralho novamente. A cartas indo de um lado para o outro em uma linha reta no ar enquanto ele as embaralhava rapidamente. De repente, enquanto Florence permanecia imóvel observando, todas as cartas pularam de uma vez só da mão do mascarado, e ficaram rodando no ar numa velocidade impressionante.

Florence levantou ainda meio cambaleante, e teve que proteger o rosto com as mãos, a ventania que provinha das cartas era forte, e parecia ter a intenção de derrubá-la. Mas como que aceitando o desafio, ela não deixou que isso acontecesse, e manteve seus pés firmes no chão.

E tão rapidamente quando começara, a ventania parou, as cartas, pararam no ar como se uma força invisível as segurasse por algum tempo, então caíram todas de uma vez como se fossem de chumbo em cima da mesa. Florence se aproximou.

As cartas, do jeito que tinham caído, espalhadas como estavam formavam um desenho em cima do tecido de veludo. Mas não apenas um desenho, mas uma máscara. E não qualquer máscara, mas a máscara branca que a perseguia desde que criança, o sorriso vazio a encarava como se fosse de verdade. E só depois de muito tempo encarando o desenho formado por milhares de cartas de baralho foi que Florence se tocou e levantou o olhar devagar, com medo do que iria encontrar, e logo seu coração começou a saltar quando percebeu.

A criatura não estava mais lá.


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