Antes De Morrer escrita por Alan


Capítulo 5
Capítulo 5


Notas iniciais do capítulo

Mais um para esse domingo entediante



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Algumas vezes, aos domingos, papai leva Sam e eu para visitar mamãe. Subimos de elevador até o oitavo andar, e normalmente há uma hora em que ela abre a porta e diz:
- Vocês! – abarcando nós três com o olhar. Papai em geral fica ainda algum tempo na soleira, e os dois conversam.
Mas hoje, quando ela abre a porta, papai está tão desesperado para sair de perto de mim que já está andando pelo corredor de volta para o elevador.
- Cuidado com ele. – diz, apontando o dedo na minha direção. – Elaenão merece confiança.
Mamãe ri.
- Por que, o que ele fez?
Sam mal consegue conter a própria animação.
- Papai falou para ele não sair para dançar.
- Ah – diz mamãe. – É a cara dele.
- Mas ele foi mesmo assim. Acabou de chegar em casa. Passou a noite inteira fora.
Mamãe sorri para mim, carinhosa.
- Conheceu algum menino?
- Não.
- Aposto que conheceu. Qual o nome dele?
- Não conheci nada!
Papai está com cara de furioso.
- Típico – diz. – Totalmente típico, droga. Eu deveria saber que não teria o seu apoio.
- Ah, pára com isso – diz mamãe. – Não fez mal nenhum a ele, fez?
- Olhe só pra ele. Está completamente exausto.
Todos os três param alguns segundos para olhar para mim. Detesto isso. Estou me sentindo infeliz e com frio, e minha barriga dói. Está doendo desde que transei com Jake. Ninguém me disse que isso iria acontecer.
- Volto às quatro – diz papai enquanto entra no elevador. – Já faz duas semanas que ele se recusa a fazer contagem sanguínea, então me liga se alguma coisa mudar. Consegue fazer isso?
- Claro, claro, não se preocupe. – Ela se inclina e beija minha cabeça. – Eu cuido dele.
Sam e eu nos sentamos à mesa da cozinha, e mamãe põe água para ferver, encontra três xícaras entre a louça suja da pia e as enxágua debaixo da torneira. Enfia a mão dentro de um armário para pegar saquinhos de chá, tira um leite da geladeira no qual dá uma cheirada, espalha biscoitos em um prato.
Ponho um biscoito recheado inteiro na boca de uma vez. É delicioso. Chocolate barato e açúcar correndo até meu cérebro.
- Eu já te falei sobre o meu primeiro namorado? – pergunta mamãe enquanto pousa a chaleira sobre a mesa com um baque. – O nome dele era Kevin, e ele trabalhava em uma relojoaria. Eu adorava o jeito como ele se concentrava com aquele monoculozinho enterrado no rosto.
Sam se serve de mais um biscoito.
- Quantos namorados você teve na verdade, mãe?
Ela ri, joga os compridos cabelos pretos para trás de um dos ombros.
- Isso lá é pergunta que se faça?
- O papai foi o melhor?
- Ah, o seu pai! – exclama ela, e leva a mão ao coração em um gesto melodramático, que faz Sam soltar uma gargalhada.
Certa vez, perguntei a mamãe qual era o problema com papai. Ela respondeu:
- Ele é o homem mais sensato que eu já conheci.
Eu tinha 12 anos quando ela o deixou. Durante algum tempo, ela mandou postais de lugares dos quais eu nunca ouvira falar – Skegness, Grimsby, Hull. Um deles tinha a foto de um hotel na frente. É aqui que eu trabalho agora, escrevia ela. Estou aprendendo a ser chef pâtissier e ficando bem gorda!
- Ótimo! – disse papai. – Espero que ela exploda!
Preguei seus postais na parede do meu quarto – Carlisle, Melrose, Dornoch.
A gente está morando em um chalé, como os pastores, escreveu ela. Sabia que eles usam traquéia, coração e fígado de ovelha para fazer haggis? Eu não sabia, nem sabia o que ela queria dizer com “a gente”, mas gostava de olhar a foto do vilarejo de John o’Groats com seu vasto céu se estendendo pelo estuário.
Então o inverno chegou e recebi meu diagnóstico. Não tenho certeza de que no começo ela tenha acreditado, porque levou algum tempo para dar meia-volta e tomar o caminho de casa. Quando finalmente bateu na nossa porta, eu já estava com 13 anos.
- Você está lindo! – disse ela quando vim abrir. – Por que o seu pai sempre faz tudo soar muito pior do que é?
- Você vai voltar a morar com a gente? – perguntei.
- Não exatamente.
E foi então que ela se mudou para o seu atual apartamento.
É sempre a mesma coisa. Talvez seja falta de dinheiro, ou talvez ela queria ter certeza de que nunca vá me esforçar demais, mas sempre acabamos assistindo a filmes em vídeo ou jogando jogos de tabuleiro. Hoje Sam escolhe o Jogo da Vida. O jogo é uma porcaria, e sou um péssimo jogador. Acabo a partida com um marido, dois filhos e um emprego em uma agência de viagem. Esqueço-me de comprar seguro residencial e, depois de uma tempestade, perco todo o meu dinheiro. Sam, porém, vira um astro pop com um chalé à beira-mar, e mamãe vira uma artista plástica com uma renda imensa e um casarão para morar. Quando me aposento, o que acontece cedo porque só fico tirando dez, nem sequer me dou ao trabalho de contar o dinheiro que me resta.
Depois do jogo, Sam quer mostrar a mamãe seu novo truque de mágica. Ele vai buscar uma moeda na bolsa dela e, enquanto estamos esperando, pego o cobertor no encosto do sofá e mamãe me ajuda a cobrir meus joelhos.
- Tenho hospital semana que vem – digo a ela. – Você pode ir?
- Papai não vai?
- Vocês dois poderiam ir.
Ela faz uma cara esquisita por alguns instantes.
- Para que é?
- Voltei a ter dor de cabeça. Eles querem fazer uma punção lombar.
Ela se inclina e me beija, e seu hálito é morno na minha bochecha.
- Você vai ficar bem, não se preocupe. Sei que vai ficar bem.
Sam volta com uma moeda de um libra.
- Prestem muita atenção, senhoras – diz.
Mas eu não quero prestar atenção. Estou cansado de ver coisas desaparecerem.
No quarto de mamãe, levanto a camiseta em frente ao espelho do guarda-roupa. Eu antes parecia um anão feio. Minha pele era cinza e, se eu pressionasse o dedo na barriga, a carne tinha a mesma textura de um pão fermentado além da conta, e meu dedo desaparecia em sua maciez. Eram os esteróides que faziam isso. Prednisolona de alta dosagem e dexametasona. Os dois são venenos, e deixam você gordo, feio e de mau humor.
Desde que parei de tomá-los, comecei a emagrecer. Hoje meus quadris estão ossudos e minhas costelas brilham através da pele. Estou desaparecendo, como um fantasma, para longe de mim mesmo.
Sento-me na cama de mamãe e ligo para Quinn.
- Sexo. – pergunto a ela. – O que isso quer dizer?
- Coitadinho – diz ela. – Você teve mesmo uma péssima trepada, não foi?
- Eu só não entendo por que estou me sentindo tão estranho.
- Estranho como?
- Sozinho, e minha barriga está doendo.
- Ah, sim! – diz ela. – Eu lembro disso. Como se você tivesse sido aberta por dentro?
- Um pouco.
- Vai passar.
- Por que estou com a sensação de que posso chorar a qualquer momento?
- Você está levando isso tudo muito a sério, Kurt. Sexo é uma forma de estar próximo de alguém, só isso. É só um jeito de se aquecer e de se sentir bonito.
Sua voz soa estranha, como se ela estivesse sorrindo.
- Você fumou maconha de nova, Quinn?
- Não!
- Onde você está?
- Olha, tenho que ir daqui a pouco. Me diz a próxima coisa da sua lista e a gente faz um plano.
- Eu cancelei a lista. Era uma bobagem.
- Era divertido! Não desiste dela. Você finalmente estava fazendo alguma coisa da vida.
Quando desligo, conto até cinqüenta e sete mentalmente. Então digito 999 para a emergência.
Uma mulher atende.
- Emergência. Qual serviço, por favor?
Não respondo nada.
- Há alguma emergência? – pergunta a mulher.
- Não – respondo.
- Pode confirmar que não há nenhuma emergência? Pode confirmar seu endereço? – pede ela.
Dou o endereço de mamãe. Confirmo que não há nenhuma emergência. Pergunto-me se mamãe vai receber algum tipo de cobrança. Espero que sim.
Ligo para informações e peço o telefone dos Samaritanos. Digito bem devagar.
Uma mulher atende:
- Alô. – Tem a voz suave, talvez irlandesa. – Alô – repete ela.
Como estou arrependida por desperdiçar o tempo dela, digo:
- É tudo um monte de merda.
E ela emite um barulhinho de “Aham” no fundo da garganta, o que me faz pensar em papai. Ele fez exatamente o mesmo barulho seis semanas atrás, quando o médico perguntou se entendias as implicações do que estava nos dizendo. Lembro-me de me perguntar como papai poderia ter entendido alguma coisa, porque ele estava chorando demais para escutar.
- Ainda estou aqui – diz a mulher.
Eu quero contar a ela. Aperto o fone junto à orelha, porque é preciso estar bem perto para falar de uma coisa importante como essa.
Mas não consigo encontrar palavras boas o bastante.
- Ainda tem alguém na linha? – pergunta ela.
- Não – respondo, e ponho o fone no gancho.


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Notas finais do capítulo

espero que tenham gostado