Antes De Morrer escrita por Alan


Capítulo 23
Capítulo 23


Notas iniciais do capítulo

Aqui estou eu morrendo de tédio nesse maldito domingo, mas ok. Aqui vai mais um capítulo e... KLAINE



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Sam chega correndo do fundo do jardim escuro, com a mão estendida.
– Outro – diz.
Mamãe abre a caixa de fogos de artifício que tem no colo. Parece que está escolhendo um chocolate quando pega delicadamente um deles e em seguida lê a etiqueta antes de estendê-lo.
– Jardim Encantado – diz ela ao meu irmão.
Sam corre até papai com o fogo de artifício na mão. As bocas de suas galochas esbarram umas nas outras quando ele corre. O luar filtrado pela macieira banha o gramado. Mamãe e eu trouxemos cadeiras da cozinha, e estamos sentadas lado a lado junto à porta dos fundos. Faz frio. Nossa respiração parece fumaça. Agora que o inverno chegou, a terra tem cheiro de molhado, como se a vida estivesse e encolhendo, as coisas todas agachadas, preservando energia.
– Você tem ideia de como é horrível quando você sai sem dizer pra ninguém onde está? – pergunta mamãe.
Como ela é a maior especialista em sumiços de todos os tempos, eu rio ao escutar isso. Ela faz cara de surpresa, evidentemente sem entender a ironia.
– Papai disse que você dormiu dois dias inteiros quando voltou.
– Eu estava cansado.
– Ele ficou apavorado.
– E você?
– Nós dois ficamos.
– Jardim Encantado! – anuncia papai.
Ouve-se um súbito estalo, e flores feitas de luz brotam do ar, se expandem, depois caem e se apagam no gramado.
– Ah – diz mamãe. – Que lindo.
– Que sem graça – exclama Sam, vindo correndo na nossa direção.
Mamãe abre a caixa novamente.
– Que tal um foguete? Um foguete seria melhor?
– Um foguete seria ótimo! – Sam corre pelo jardim para comemorar antes de passar o fogo de artifício para papai. Juntos, eles enfiam a haste no chão. Penso no passarinho, na coelha de Sam. E também em todas as criaturas que morreram no nosso jardim, seus esqueletos se remexendo juntos debaixo da terra.
– Por que o litoral? – pergunta mamãe.
– Fiquei com vontade, só isso.
– Por que o carro de papai?
Dou de ombros.
– Dirigir estava na minha lista.
– Sabe, você não pode sair por aí fazendo tudo o que quiser – diz ela. – Precisa pensar nas pessoas que te amam.
– Que pessoas?
– As pessoas que te amam.
– Esse vai ser barulhento – diz papai. – Tapem as orelhas, senhores.
O foguete dispara soltando um único bum, tão alto que sua energia se expande dentro de mim. Ondas de som disparam pelo meu sangue. Parece um maremoto no meu cérebro. Mamãe nunca disse que me ama. Nunca. Não acho que jamais vá dizer. Seria óbvio demais agora, cheio de pena demais. Causaria vergonha em nós dois. Algumas vezes, penso em quais terão sido as palavras silenciosas trocadas entre nós dois antes de eu nascer, quando eu vivia encolhido dentro dela, pequenino, no escuro. Mas não penso nisso com freqüência. Ela se remexe na cadeira, pouco à vontade.
– Kurt, você está planejando matar alguém? – Sua voz soa casual, mas acho que talvez ela esteja falando sério.
– Claro que não.
– Que bom. – Ela parece genuinamente aliviada. – Então qual a próxima coisa da sua lista?
Fico surpreso.
– Você quer saber mesmo?
– Quero saber mesmo.
– Tá. Agora eu quero ser famoso.
Ela sacode a cabeça, chocada, mas Sam, que acaba de aparecer para pegar o fogo de artifício seguinte, acha hilário.
– Vê quantos canudos você consegue enfiar na boca – diz ele. – O recorde mundial é 258.
– Vou pensar no seu caso – respondo a ele.
– Ou então você podia tatuar o corpo inteiro com pintas de leopardo. Ou a gente podia levar você pra passear na auto-estrada deitado na sua cama.
Mamãe olha para ele, pensativa.
– Cascata de Vinte e Um Disparos – diz.
Contamos os disparos. Eles saem voando com um pfiu suave, explodem em buquês de estrelas, depois caem devagar. Pergunto-me se, pela manhã, a grama vai estar manchada de amarelo-enxofre, vermelho, azul-turquesa. Agora um cometa, para aplacar a ânsia de ação de Sam. Papai acende-o, e o fogo de artifício sobe zunindo por cima do telhado, deixando um rastro cintilante. Mamãe comprou bombinhas de fumaça. Custaram três libras e cinqüenta centavos cada
uma, e Sam fica muito impressionado. Grita o preço para papai.
– Tem que ser maluco pra pagar isso – berra papai de volta.
Mamãe mostra os dois dedos do meio para ele, e papai ri com tanto gosto que ela sente um arrepio.
– Consegui quatro pelo preço de um – diz ela. – Essa é uma vantagem de você estar doente e de a gente estar soltando fogos de artifício em dezembro.
As bombinhas enchem o jardim de fumaça verde. Montes dela. Parece o prenúncio de uma invasão de duendes. Sam e papai chegam correndo dos fundos do jardim, rindo e tossindo.
– Que quantidade mais ridícula de fumaça! – exclama papai. – Parece até que a gente está em Beirute!
Mamãe sorri e estende-lhe um fogo giratório.
– Solte este aqui agora. É o meu preferido.
Ele pega um martelo, e ela se levanta para segurar a estaca da cerca enquanto ele bate o prego. Estão rindo juntos.
– Não vá acertar meu dedo – diz ela, cutucando-o com o cotovelo.
– Se fizer isso de novo eu acerto!
Sam senta-se na cadeira de mamãe e abre um pacote de fogos de artifício chamados estrelinhas.
– Aposto que eu vou ficar famoso antes de você – diz ele.
– Aposto que não.
– Eu vou ser a pessoa mais nova do mundo a entrar para o Círculo de Mágicos.
– Você não precisa ser convidado?
– Eu vou ser convidado! Tenho talento. O que é que você sabe fazer? Você não sabe nem cantar.
– Ei! – diz papai. – Que história é essa?
Mamãe dá um suspiro.
– Os seus dois filhos querem ser famosos.
– É mesmo?
– Ficar famoso é a próxima coisa da lista do Kurt.
Posso ver pelo rosto de papai que ele não estava esperando por isso. Vira-se para mim, com o martelo pendendo ao lado do corpo.
– Ficar famoso?
– É.
– Como?
– Não decidi ainda.
– Achei que você tivesse terminado a lista.
– Não.
– Achei que depois do carro, depois de tudo o que aconteceu...
– Não, pai, eu ainda não terminei.
Eu costumava pensar que papai fosse capaz de tudo, que ele podia me salvar de qualquer coisa. Mas não pode, é apenas um homem. Mamãe passa o braço pela sua cintura, e ele se recosta nela. Fico olhando para os dois. Minha mãe. Meu pai. O rosto dele está na sombra, e as pontas dos cabelos dela estão banhados de luz. Fico totalmente imóvel. Sam, ao meu lado, fica totalmente imóvel também.
– Uau! – sussurra ele.
Isso dói mais do que eu algum dia poderia ter imaginado.
Na cozinha, bochecho com água da pia e cuspo. Meu cuspe parece viscoso, e escorre tão devagar na direção do ralo que preciso fazê-lo ir embora com mais um pouco d’água. A pia está fria contra a minha pele. Apago a luz e fico olhando minha família pela janela. Estão juntos no gramado, examinando os últimos fogos de artifício. Papai pega cada um e o ilumina com uma lanterna. Eles escolhem um, fecham a caixa e afastam-se os três até o fundo do jardim. Talvez eu já esteja morto. Talvez seja simplesmente assim que vá ser. Os vivos continuarão em seu mundo – tocando-se, caminhando. E eu continuarei neste mundo vazio, batendo sem fazer barulho no vidro que nos separa.
Saio pela porta da frente, fecho-a atrás de mim e sento-me no degrau. A vegetação rasteira farfalha, como se alguma criatura noturna estivesse tentando se esconder de mim, mas eu não entro em pânico, nem sequer me mexo. Conforme meus olhos se adaptam à falta de luz, consigo ver a cerca e os arbustos que a margeiam. Consigo ver com bastante nitidez a rua do outro lado do portão, com a luz do poste a se derramar pela calçada, batendo de viés no carro de outras pessoas e refletida de volta pelas janelas apagadas de outras casas. Sinto cheiro de cebola. Kebab. Se a minha vida fosse diferente, eu estaria na rua com Quinn. Iríamos comer batata frita. Estaríamos em pé em alguma esquina, lambendo sal dos dedos, esperando alguma coisa acontecer. Em vez disso, porém, estou aqui. Morto na soleira da porta.
Ouço Blaine antes de vê-lo: o rugido gutural de sua moto. Quando ele se aproxima, o barulho faz o ar virar, e as árvores parecem dançar. Ele pára diante do portão de sua casa, desliga o motor e apaga os faróis. O silêncio e a escuridão tornam a se abater sobre a rua enquanto ele tira o capacete, prende-o ao guidão e empurra a moto pelo caminho de terra batida em direção à garagem.
Eu acredito sobretudo no caos. Se os desejos virassem realidade, os meus ossos não doeriam como se todo o espaço dentro deles houvesse se consumido. Diante dos meus olhos não haveria uma névoa que eu não conseguisse dissipar. Mas ver Blaine subindo o caminho parece uma escolha. O universo pode ser aleatório, mas eu posso fazer algo diferente acontecer.
Passo por cima da mureta baixa que separa nossos jardins da frente. Ele está prendendo a moto ao portão na lateral de sua casa. Não me vê chegar. Aproximo-me por trás dele. Sinto-me muito forte e seguro.
– Blaine?
Ele se vira, espantado.
– Caramba! Achei que você fosse um fantasma! – Um cheiro frio emana dele, como se ele fosse um animal saído da noite. Dou outro passo na sua direção.
– O que você está fazendo? – pergunta ele.
– A gente disse que ia ser amigo.
Ele faz cara de quem não está entendendo.
– Foi.
– Eu não quero ser seu amigo.
Há espaço entre nós dois, e nesse espaço há escuridão. Dou mais um passo, e chego tão perto que dividimos a mesma respiração. O mesmo ar. Pra dentro e pra fora.
– Kurt – diz ele. Sei que é um aviso, mas não ligo.
– Qual é a pior coisa que pode acontecer?
– Vai doer – diz ele.
– Já está doendo.
Ele concorda bem devagar. E é como se um buraco se abrisse no tempo, como se tudo parasse e esse único minuto em que nos olhamos tão de perto se esticasse entre nós dois. Quando ele se inclina na minha direção, sinto um estranho calor varar meu corpo. Esqueço-me que meu cérebro está cheio de todos os rostos tristes em todas as janelas por que jamais passei. Quando ele chega mais perto, sinto apenas o calor de seu hálito sobre a minha pele. Nós nos beijamos muito delicadamente. Quase sem nos beijarmos, como se não tivéssemos certeza. Nossos lábios são o único lugar onde nos tocamos. Recuamos e olhamos um para o outro. Que palavras existem para descrever o olhar que vai de mim até ele e volta para mim? À nossa volta, todas as coisas se juntam para nos encarar. As coisas perdidas novamente encontradas.
– Caramba, Kurt!
– Está tudo bem – digo a ele. – Eu não vou quebrar.
E, para provar o que digo, empurro-o contra a minha parede de sua casa e prendo-o ali. E dessa vez não há delicadeza nenhuma. Minha língua entra na sua boca, procurando, encontrando a sua. Seus braços me envolvem, quentes. Sua mão segura a minha nuca. Derreto ali. Minha mão desliza por suas costas. Aperto-me mais de encontro a ele, mas nunca é perto o suficiente. Quero entrar dentro dele. Viver dentro dele. Ser ele. É tudo só língua e desejo. Eu o lambo, dou mordidinhas na beirada de seus lábios. Nunca percebi que estava tão faminto.
Ele se afasta.
– Caramba – repete. – Caramba! – E corre a mão pelos cabelos; os fios reluzem, úmidos, escuros como os de um bicho. A luz da rua resplandece nos seus olhos. – O que é que está acontecendo com a gente?
– Eu quero você – digo a ele.
Meu coração está aos pulos. Sinto-me inteiramente vivo.


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Notas finais do capítulo

AÊ KLAINE ACONTECEU WOO HOO