Antes De Morrer escrita por Alan


Capítulo 21
Capítulo 21


Notas iniciais do capítulo

Capítulo 21 já? ossa
E olha que são 46 capítulos, mas enfim...



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Quinn vem atender a porta toda descabelada. Está usando as mesmas roupas da última vez em que a vi.
– Quer ir ver o mar? – sacudo as chaves do carro para ela.
Ela espia o carro de papai por cima do meu ombro.
– Você veio aqui sozinho?
– Vim.
– Mas você não sabe dirigir!
– Agora sei. É o quinto item da minha lista.
Ela franze o cenho.
– Você já fez alguma aula?
– Mais ou menos. Posso entrar?
Ela abre mais a porta.
– Limpa o pé, ou então tira o sapato.
A casa dos pais de Quinn está sempre incrivelmente limpa, como se houvesse saído de um catálogo. Eles passam tanto tempo no trabalho que acho que não têm oportunidade de bagunçá-la. Sigo Quinn até a sala e sento-me no sofá. Ela se senta na minha frente, na beirada da poltrona, e cruza os braços para mim.
– Então, o seu pai te emprestou o carro, foi isso? Mesmo sem você ter seguro e mesmo sendo totalmente ilegal?
– Ele não sabe exatamente que eu peguei o carro, mas eu estou dirigindo super bem! Você vai ver. Seu eu tivesse idade, passaria na prova.
Ela sacode a cabeça para mim como se simplesmente não conseguisse acreditar na minha estupidez. Deveria esta orgulhosa de mim. Eu saí de casa sem que papai sequer percebesse. Lembrei-me de ajeitar os retrovisores antes de virar a chave na ignição, depois de pisar na embreagem, engatar a primeira, tirar o pé da embreagem, pisar no acelerador. Consegui dar três voltas no quarteirão e o carro só morreu duas vezes, meu melhor recorde. Passei pela rotatória e cheguei a passar a terceira na rua principal a caminho da casa de Quinn. E agora ela está ali sentada olhando para mim com ar zangado, como se tudo fosse um grande erro.
– Quer saber? – digo, enquanto me levanto e fecho o casaco. – Eu achei que, se chegasse até aqui sem bater, a única coisa difícil seria a auto-estrada. Não me passou pela cabeça que você fosse me encher o saco.
Ela arrasta os pés no chão como se estivesse apagando alguma coisa.
– Desculpa. É que eu estou meio ocupada.
– Ocupada com o quê?
Ela dá de ombros.
– Você não pode partir do princípio de que todo mundo está livre só porque você está.
Sinto alguma coisa crescendo dentro de mim enquanto a olho, e percebo, em um instante de absoluta clareza, que não gosto nadinha dela.
– Sabe do que mais? – digo. – Esquece. Vou fazer a lista sozinho.
Ela se levanta, sacode aqueles cabelos idiotas e tenta fazer cara de ofendida. É um truque que funciona com meninos, mas que não muda em nada o que sinto por ela.
– Eu não disse que não iria!
Mas é evidente que ela se cansou de mim. Queria que eu andasse logo e morresse para poder tocar a própria vida.
– Não, não, pode ficar aqui – digo a ela. – Tudo sempre dá em merda mesmo quando você está por perto!
Ela me segue até o hall.
– Acaba nada!
Viro-me para ela no capacho.
– Pra mim, no caso. Você nunca reparou que toda merda que acontece cai sempre na minha cabeça, nunca na sua?
Ela franze o cenho.
– Quando? Quando é que isso acontece?
– O tempo todo. Algumas vezes eu fico pensando se você só é minha amiga pra poder continuar sendo mais sortuda.
– Caraca! – exclama ela. – Será que dá pra você para de falar de si mesma por um minuto?
– Cala a boca! – grito. E a sensação é tão boa que grito de novo.
– Não – diz ela. – Cala a boca você. – Mas sua voz mal passa de um sussurro, o que é estranho. Ela dá um passinho para trás, pára como se estivesse prestes a dizer alguma outra coisa, pensa melhor e sobe correndo a escada.
Não a sigo. Fico esperando um pouco ali no hall, sentindo a espessura do carpete sob meus pés. Escuto o tique-taque do relógio. Conto sessenta batidas, depois entro na sala e ligo a TV. Assisto a sete minutos de um programa de jardinagem amadora. Aprendo que, em um terreno ensolarado voltado para o sul, é possível plantar damascos, mesmo na Inglaterra. Pergunto-me se Blaine sabe disso. Mas aí me canso de pulgões e ácaros e do som monótono da voz daquele homem bobo, então desligo a TV e mando um torpedo para Quinn: DESCULPA.
Olho pela janela para ver o carro continua lá. Continua. O céu está carregado, as nuvens muito baixas e amarelas como enxofre. Nunca dirigi na chuva, o que é um pouco preocupante. Queria que ainda fosse outubro, mês em que fez calor como se o mundo houvesse se esquecido de que era hora de o outono chegar. Lembro-me de ver as folhas caindo pela janela do hospital.
Quinn me responde com outro torpedo: EU TAMBÉM.
Desce a escada e entra na sala. Está usando um vestido curto azul-turquesa e várias pulseiras. Elas sobem por seu braço e chacoalham quando ela se aproxima e me dá um abraço. Quinn tem um cheiro gostoso. Encosto-me em seu ombro e ela beija o topo da minha cabeça.
Quinn ri quando dou partida no carro e ele morre na mesma hora. Tento de novo e, enquanto avançamos aos trancos pela rua, conto a ela como papai me levou para dirigir algumas vezes e eu nunca conseguia acertar. Era tão difícil mexer os pés – tirar de leve os dedos da embreagem ao mesmo tempo que me pressionava o acelerador na direção contrária.
– Isso! – ele não parava de gritar. – Sentiu a marcha engatando?
Mas eu não conseguia sentir nada, nem mesmo quando tirei os sapatos. Ficamos os dois cansados. Cada aula foi ficando mais curta do que a última até paramos de sair por completo, e nenhum de nós dois nunca comentou nada a respeito.
– Duvido que ele vá dar por falta do carro antes da hora do almoço – digo a ela. – E, mesmo quando ele perceber, o que é que vai fazer? Como você disse, estou imune às regras.
– Você é mesmo um herói! – diz ela. – Você é fantástico!
E nós dois rimos como nos velhos tempos. Tinha me esquecido do quanto eu gostava de rir com Quinn. Ela não critica meu jeito de dirigir como papai fazia. Não fica com medo quanto eu passo a terceira arranhando a caixa de embreagem, só quando me esqueço de pôr a seta para a esquerda no final de sua rua. Eu dirijo muito melhor com ela ao meu lado.
– Até que você não é tão ruim. Finalmente o seu velho te ensinou alguma coisa.
– Estou adorando – digo a ela. – Imagina como seria divertido viajar de carro pela Europa. Você podia trancar a faculdade por um ano e vir comigo.
– Não quero fazer isso – diz ela, enquanto pega o mapa. E não diz mais nada.
– A gente não precisa de mapa.
– Por que não?
– É como se fosse um road movie.
– Porra – diz ela, e bate com um dedo na janela.
Um bando de meninos de bicicleta está impedindo a passagem mais à frente. Estão todos de capuz levantado, protegendo os cigarros. O céu tem uma cor muito estranha, e não há quase ninguém na rua. Desacelero o carro.
– O que é que eu faço?
– Dá ré – diz Quinn. – Eles não vão sair.
Abaixo o vidro do carro.
– Ei! – berro. – Tirem essa bunda da frente!
Os meninos ficam lânguidos, movem-se devagar para junto da calçada e sorriem quando jogo beijos para eles.
Quinn parece espantada.
– O que deu em você?
– Nada... é que eu ainda não aprendi a dar ré.
Ficamos presos no tráfego da rua principal. Pela janela, vejo fragmentos da vida dos outros. Um bebê chora em sua cadeirinha, um homem batuca os dedos ao volante. Uma mulher tira meleca. Uma criança acena.
– Incrível, né? – comento.
– O quê?
– Eu sou eu, você é você, e todas essas pessoas lá fora são elas. E somos todos tão diferentes e igualmente insignificantes.
– Isso é o que você acha.
– É verdade. Você nunca pensa nisso quando olha no espelho? Nunca imagina o seu próprio crânio?
– Não, na verdade não.
– Eu não sei a tabuada de sete e nem de oito e detesto beterraba e aipo. Você não gosta da sua acne nem das suas pernas, mas no esquema geral das coisas nada disso tem importância.
– Cala a boca, Kurt! Pára de falar merda.
Então paro, mas na minha cabeça sei que meu hálito está com cheiro de hortelã por causa da pasta de dentes, e que o de Quinn tem um cheiro acre de fumaça. Eu tenho um diagnóstico. Ela tem pai e mãe que moram juntos. Eu me levantei da cama hoje de manhã e havia suor nos lençóis. Agora estou dirigindo. É o meu rosto no retrovisor, o meu sorriso, os meus ossos que serão queimados ou enterrados. Será a minha morte. Não a de Quinn. Minha. E, pela primeira vez, isso não parece tão ruim.
Não dizemos nada. Ela fica simplesmente olhando pela janela, e eu dirijo. Saio da cidade e entro na auto-estrada. O céu vai ficando cada vez mais escuro. É incrível. Mas dali a algum tempo Quinn começa a reclamar.
– Essa é a pior viagem de carro que já fiz na vida – diz ela. – Estou enjoada. Por que é que a gente não chega em lugar nenhum?
– Porque eu estou ignorando as placas.
Ela olha para mim, espantada.
– Por que é que você está fazendo isso? Eu quero ir a algum lugar.
Piso no acelerador com força.
– Tá.
Quinn solta um grito, estende os braços e segura no painel.
– Devagar! Você acabou de aprendeu a dirigir, caramba!
A chuva molha o pára-brisa. Seu brilho sobre o vidro faz todo se embaçar e refletir. Não se parece nem um pouco com água, mas sim com eletricidade. Conto mentalmente até o relâmpago irromper no céu.
– Um quilômetro de distância – digo a ela.
– Encosta!
– Pra quê?
A chuva então desaba sobre o carro com força, e eu não sei ligar os limpadores. Começo a manipular os interruptores dos faróis, a buzina, a ignição, esqueço-me que o carro está em quarta e o motor morre na mesma hora.
– Aqui não! – grita Quinn. – A gente está na auto-estrada! Você quer morrer?
Torno a pôr o carro em ponto morto. Não sinto medo nenhum. A água escorre pelo párabrisa em ondas, e os carros atrás de nós buzinam e dão farol ao passar, mas eu verifico calmamente os espelhos, giro a chave na ignição, passo a primeira e avanço. Até encontro os limpadores enquanto passo pela segunda e engato a terceira.
O rosto de Quinn é puro pânico.
– Você é louco. Deixa que eu dirijo.
– Você não tem seguro.
– Nem você!
A tempestade agora faz mais barulho, sem intervalo entre trovões e raios. Os outros carros acenderam os faróis, mesmo estando de dia. Mas eu não consigo encontrar nossos faróis.
– Por favor! – grita Quinn. – Por favor, encosta!
– Um carro é um lugar seguro para se estar. Carros têm pneus de borracha.
– Mais devagar! – ela berra. – A gente vai sofrer um acidente. Você nunca ouviu falar em distância de frenagem?
Não. Em vez disso, descobri uma quinta marcha que eu nem sequer sabia que existia. Agora estamos indo realmente depressa, e o céu está todo aceso com relâmpagos de verdade. Nunca vi isso de perto antes. Quando papai nos levou à Espanha, houve uma tempestade de raios sobre o mar, e ficamos assistindo da varanda do hotel. Mas não parecia de verdade, e sim algo organizado para os turistas. Esta agora está bem acima de nossas cabeças, e é totalmente fantástica. Mas Quinn não acha isso. Ela está toda encolhida no banco.
– Carros são feitos de metal! – grita ela com a voz aguda. – A gente pode bater a qualquer momento! Encosta! – Sinto pena dela, mas ela está errada em relação aos raios. Quinn bate na vidraça com um dedo frenético.
– Olha, um posto. Encosta ali ou eu me jogo do carro.
Estou mesmo com vontade de comer um chocolate, então paro. Estamos andando um pouco depressa, mas consigo encontrar o freio. Derrapamos na área aberta do posto de forma um tanto dramática, e paramos rodeadas por bombas de gasolinas e luzes de neon. Quinn fecha os olhos. Que engraçado, eu prefiro a estrada de olhos abertos.
– Não sei qual é a sua – sibila ela –, mas você quase matou nós dois.
Ela abre a porta, desce do carro, bate-a com força e sai pisando firme até a loja do posto. Por um instante, penso em ir embora sem ela, mas antes de poder pensar nisso direito, ela torna a se aproximar batendo os pés no chão e abre a minha porta. Está com um cheiro diferente, frio e fresco. Arranca da boca uma mecha de cabelos molhados.
– Estou sem dinheiro. Preciso comprar cigarro.
Passo-lhe minha bolsa. De repente, sinto-me muito feliz.
– Pode comprar um chocolate pra mim também?
– Depois de fumar – diz ela –, eu vou ao banheiro. Quando eu voltar, você vai me deixar dirigir.
Ela bate a porta e com força torna a atravessar o posto. Continua chovendo muito, e ela se encolhe toda sob a chuva, e olha para o céu com uma careta quando ecoa outra trovoada. É a primeira vez que a vejo com medo, e subitamente sinto uma onda de amor por ela. Ela não tem a mesma coragem que eu. Não está acostumada. O mundo inteiro poderia rugir que eu não ficaria com medo. Quero uma avalanche no próximo cruzamento. Quero que caia uma chuva preta e que uma praga de gafanhotos saia zumbindo do porta-luvas. Coitada da Quinn. Posso vê-la na lojinha do posto agora, inocente, comprando chocolate e cigarros. Vou deixá-la dirigir, mas só porque quero. Ela não pode mais me controlar. Estou além do seu alcance.


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Notas finais do capítulo

Quinn sempre mal humorada e tem algo de errado com ela sim... descubram MUAHAHAHAHA