Antes De Morrer escrita por Alan


Capítulo 16
Capítulo 16


Notas iniciais do capítulo

Alguém acha o Blaine feio? não? ok. Vamos para o capítulo.



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Ele é mais feio do que me lembro. É como se a minha memória o houvesse melhorado. Não sei por que isso aconteceu. Penso em como Quinn daria um muxoxo de desdém se soubesse que fui bater na porta dele, e esse pensamento me dá vontade de nunca contar a ela. Ela diz que gente feia lhe dá dor de cabeça.
- Você está me evitando – digo a ele.
Ele parece surpreso por um segundo, mas disfarça bem depressa.
- Andei ocupado.
- Ah, é?
- É.
- Então não é porque você acha que eu sou contagioso? A maioria das pessoas no final começa a agir como se fosse pegar câncer de mim, ou como se eu tivesse feito alguma coisa pra merecer isso.
Ele parece alarmado.
- Não, não! Eu não acho isso.
- Que bom. Então quando é que vai me levar pra passear de moto?
Ele arrasta os pés no degrau da frente e faz cara de encabulado.
- Na verdade eu não tenho carteira definitiva. Não posso levar ninguém na garupa sem ela.
Sou capaz de pensar em um milhão de motivos pelos quais seria má ideia andar na garupa da moto de Blaine. Porque podemos ter um acidente. Porque pode não ser tão bom quanto eu imagino. Por que o que vou dizer para Quinn? Porque é o que eu quero mesmo fazer, mais do que tudo. Mas não vou deixar o fato de ele não ter carteira definitiva ser um desses motivos.
- Você tem outro capacete? – pergunto.
O mesmo sorriso lento. Adoro esse sorriso! Eu acabei de achar ele feio? Nada disso, seu rosto se transforma quando ele sorri.
- No barracão. Tenho outra jaqueta também.
Não consigo evitar sorrir de volta. Sinto-me corajoso e seguro.
- Então vamos. Antes que chova.
Ele fecha a porta atrás de si.
- Não vai chover.
Damos a volta até a lateral da casa e pegamos as coisas no barracão. Porém, quando ele está me ajudando a fechar a jaqueta, no exato instante em que está me dizendo que a moto faz cento e quarenta e cinco quilômetros por hora e que o vento vai estar frio, a porta dos fundos se abre e uma mulher sai para o quintal. Está de roupão e chinelos.
- Volta pra dentro, mãe, você vai ficar com frio – diz Blaine.
Mas ela continua a percorrer o caminho de terra batida na nossa direção. Tem o rosto mais triste que eu já vi na vida, como se já tivesse se afogado e a maré houvesse deixado sua marca nela.
- Aonde você vai? – pergunta ela, sem sequer olhar para mim. – Você não disse que ia sair.
- Não vou demorar.
Ela emite um barulhinho engraçado no fundo da garganta. Blaine ergue os olhos depressa.
- Pára com isso, mãe – diz. – Vai tomar seu banho e se vestir. Antes de você perceber eu já vou ter voltado.
Ela balança a cabeça com ar perdido e começa a andar de volta pelo caminho, então se detém como quem se lembrou de alguma coisa, vira-se e olha pela primeira vez para mim, um desconhecido no seu jardim.
- Quem é você? – pergunta.
- Eu moro na casa ao lado. Vim visitar o Blaine.
A tristeza em seus olhos aumenta.
- É, foi o que eu pensei.
Blaine vai até ela e segura-a delicadamente pelos cotovelos.
- Vem – diz. – É melhor você voltar lá pra dentro.
Ela se deixa ajudar a percorrer o caminho até a porta dos fundos. Sobe o degrau, então se vira e torna a olhar para mim. Não diz nada, nem eu. Simplesmente ficamos nos olhando, e então ela cruza a soleira e entra na cozinha. Pergunto-me o que acontece nessa hora, o que eles dizem um ao outro.
- Ela está bem? – pergunto quando Blaine torna a sair para o jardim.
- Vamos sair daqui – diz ele.


Não é o que eu imaginava, não é como descer uma ladeira bem rápido de bicicleta, nem mesmo como pôr a cabeça para fora da janela de um carro na auto-estrada. É mais primitivo, como estar em uma praia no inverno quando o vento chega uivando do mar. Os capacetes têm visores de plástico transparente. O meu está abaixado, mas o de Blaine está levantado; ele fez isso de propósito.
- Gosto de sentir o vento nos olhos – diz.
Ele me disse para me inclinar quando fizéssemos curvas. Disse-me que, como era a minha primeira vez, não iria andar na velocidade máxima. Mas isso poderia significar qualquer coisa. Mesmo na metade da velocidade máxima, parecemos capazes de decolar. De sair voando.
Deixamos para trás as ruas, os postes e as casas. Deixamos as lojas, o parque industrial e a revendedora de madeira, e passamos para o outro lado de uma espécie de fronteira onde as coisas pertencem à cidade e são compreendidas. Surgem árvores, campos, espaço. Protejo-me atrás da curva de suas costas, fecho os olhos e imagino para onde ele está me levando. Imagino cavalos dentro do motor, com as crinas ao vento, a respiração se condensando no ar, as narinas latejando enquanto galopam. Certa vez, ouvi uma história sobre uma ninfa raptada por um deus e levada para algum lugar escuro e perigoso na traseira de uma carroça;
O lugar onde acabamos indo parar não é o que eu esperava – um estacionamento lamacento próximo à estrada. Há dois caminhões grandes parados, mais alguns carros e uma carrocinha de cachorro-quente.
Blaine desliga o motor, abaixo o descanso com o pé e tira o capacete.
- Melhor você descer primeiro – diz.
Consinto, mal conseguindo falar: deixei meu fôlego para trás em algum ponto do caminho. Meus joelhos tremem, e é preciso um grande esforço para passar a perna por cima da moto e ficar em pé. A terra parece muito firme. Um dos caminhoneiros pisca para mim pela janela da cabine. Está segurando uma xícara de chá fumegante em uma das mãos. Na carrocinha de cachorro-quente, uma menina de rabo-de-cavalo estende um saquinho de batatas fritas por cima do balcão para um homem com um cachorro. Eu sou diferente de todos eles. É como se houvéssemos voado até ali e todas as outras pessoas fossem completamente normais.
- Não é aqui. Vamos comprar alguma coisa pra comer; aí eu te mostro – diz Blaine.
Ele parece entender que eu ainda não consigo falar direito, e não espera resposta. Caminho atrás dele devagar, ouço-o pedir dois cachorros-quentes com anéis de cebola frita. Como ele sabia que essa seria minha ideia de um almoço perfeito?
Comemos em pé. Dividimos uma Coca. Parece-me espantoso eu estar ali, o mundo ter se aberto para mim da garupa de uma motocicleta, o céu parecer feito de seda, e eu ter visto a tarde chegar, não branca, nem cinza, nem de todo prateada, mas uma combinação dessas três cores. Por fim, depois de eu jogar o papel do sanduíche na lixeira e terminar a Coca, Blaine pergunta:
- Pronto?
E eu o sigo por um portão nos fundos da carrocinha de cachorro-quente, atravesso uma vala até chegar a um pequeno bosque. Uma estradinha de terra serpenteia pelo meio das árvores e sai do outro lado, onde o espaço se abre. Eu não tinha percebido como estávamos alto. É incrível: a cidade inteira esparramada lá embaixo como se alguém a houvesse estendido aos nossos pés, e nós bem lá em cima, olhando para baixo.
- Uau! – exclamo. – Não sabia que aqui tinha esta vista.
- Pois é.
Vamos nos sentar lado a lado em um banco, com os joelhos se tocando bem de leve. O chão debaixo dos meus pés é duro. O ar está frio, com um cheiro de gelo que não chegou a congelar, do inverno que está por vir.
- É aqui que eu venho quando preciso me afastar de tudo – diz ele. – Foi aqui que eu peguei os cogumelos.
Ele tira do bolso sua latinha de fumo, abre-a, separa um pouco de tabaco em cima de um papel de seda e enrola um cigarro. Tem as unhas sujas, e estremeço ao pensar naquelas mãos me tocando.
- Toma – diz ele. – Vai esquentar você.
Ele me passa o cigarro, e fico olhando enquanto ele enrola outro para si. O cigarro parece um dedo branco e fino. Ele me oferece fogo. Passamos um tempão sem dizer nada, simplesmente soprando fumaça para a cidade lá embaixo.
- Qualquer coisa poderia estar acontecendo lá embaixo, mas aqui em cima a gente não iria nem saber – diz ele.
Entendo o que ele quer dizer. Lá naquelas casinhas pode estar havendo um pandemônio, os sonhos das pessoas todos embolados. Mas aqui em cima a sensação é de paz. De limpeza. 
- Desculpa por aquilo mais cedo com a minha mãe – diz ele. – Ela às vezes é meio difícil de lidar.
- Ela está doente?
- Na verdade não.
- O que ela tem, então?
Ele suspira, corre uma das mãos pelos cabelos.
- Meu pai morreu atropelado há um ano e meio.
Ele joga o cigarro na grama, e nós dois ficamos olhando o brilho laranja. Vários minutos parecem passar antes de a brasa apagar.
- Quer falar sobre isso?
Ele dá de ombros.
- Não tem muita coisa pra dizer. Minha mãe e meu pai brigaram, ele saiu correndo pro pub e esqueceu de olhar antes de atravessar a rua. Duas horas depois, a polícia veio bater na nossa porta.
- Caraca!
- Já viu um policial com medo?
- Não.
- É assustador. Minha mãe sentou na escada e tapou as orelhas com as mãos, e eles ficaram em pé no hall, de quepe na mão e com os joelhos tremendo. – Ele ri pelo nariz, um som suave, sem humor. – Eram só um pouco mais velhos do que eu. Não tinham a menor ideia de como lidar com aquilo.
- Que horrível!
- Não ajudou muito. Levaram minha mãe para ver o corpo do meu pai. Ela queria, mas eles não deviam ter deixado. Ele estava bem mutilado.
- Você foi?
- Fiquei sentado do lado de fora.
Agora entendo em que Blaine é diferente de Quinn, ou de qualquer outro menino ou menina que conheci no colégio. Uma ferida nos conecta.
Ele diz:
- Pensei que iria ajudar se a gente se mudasse da casa antiga, mas na verdade não. Ela ainda está tomando um milhão de remédios por dia.
- E você cuida dela?
- Mais ou menos isso.
- E a sua vida?
- Não tenho muita escolha.
Ele se vira no banco e fica de frente para mim. Parece estar me vendo de verdade, como se soubesse algo sobre mim que nem eu sei.
- Kurt, você sente medo?
Ninguém nunca me perguntou isso antes. Nunca. Encaro-o para ver se ele não está gozando com a minha cara ou perguntando por educação, mas ele sustenta o meu olhar. Então lhe conto como tenho medo do escuro, medo de dormir, medo de dedos unidos por membranas, de espaços pequenos, de portas.
- O medo vai e vem. As pessoas acham que quando você fica doente você se torna destemido e corajoso, mas não é assim. Na maior parte do tempo, é como ser perseguido por um psicopata, como se a qualquer momento eu pudesse levar um tiro. Mas algumas vezes eu esqueço durante horas.
- O que faz você esquecer?
- Pessoas. Fazer coisas. Quando eu estava com você na floresta, esqueci durante uma tarde inteira.
Ele inclina a cabeça bem devagar.
Então vem um silêncio. Um silêncio pequenininho, mas com um formato bem definido, como uma almofada em volta de uma caixa de cantos pontudos.
Blaine diz:
- Eu gosto de você, Kurt.
Quando engulo, minha garganta dói.
- É?
- Naquele dia em que você apareceu pra jogar suas coisas na fogueira, você disse que queria se livrar de tudo. Disse que me olhava da sua janela. A maioria das pessoas não fala assim.
- Eu assustei você?
- Pelo contrário. – Ele olha para os próprios pés, como se estes pudessem lhe dar alguma pista. – Mas eu não posso te dar o que você quer.
- O que eu quero?
- Eu mal consigo segurar minha própria onda. Tipo, se acontecesse alguma coisa entre a gente, de que iria adiantar? – Ele se remexe no banco. – Isso está saindo tudo errado.
Quando me levanto, sinto-me estranhamente intocável. Posso sentir que estou fechando alguma espécie de janela interna. É a janela que controla a temperatura e os sentimentos. Sinto-me frágil e quebradiço como uma folha de inverno.
- A gente se vê – digo.
- Você já vai?
- É, tenho umas coisas pra fazer na cidade. Desculpa, não percebi que horas eram.
- Você tem que ir agora?
- Vou encontrar uns amigos. Eles devem estar me esperando.
Ele cata os capacetes atabalhoadamente da grama.
- Bom, deixa eu te levar.
- Não, não, pode deixar. Vou pedir pra um deles vir me pegar. Eles todos têm carro.
Ele faz cara de espantado. Arrá! Ótimo! Assim ele aprende a nunca mais ser igual a todos os outros. Nem sequer me dou ao trabalho de dizer tchau.
- Espera aí! – diz ele.
Mas eu não vou esperar. Também não vou me virar para olhar para ele.
- O caminho pode estar escorregadio! – grita ele. – Está começando a chover.
Eu disse que iria chover. Sabia que iria.
- Kurt, deixa eu te dar uma carona!
Mas ele está muito enganado se acha que vou subir naquela moto junto com ele. Cometi um erro fatal pensando que ele poderia me salvar.


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Notas finais do capítulo

Como você é burro Blaine.