A Pequena Mary escrita por Elizabeth


Capítulo 5
Eu te odeio




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Certo dia, minha amiga Mary me disse que não gostaria de receber flores em seu túmulo. Isso ficara gravado em minha mente, me perguntando de tempo em tempo o porquê daquilo. Ela me explicou, que para ela, flores significavam paz. No começo, eu não compreendi muito bem, mas após uma longa conversa, eu entendi o que ela queria dizer. Naquela hora, quando estávamos em meu quarto, sua voz saiu baixinha como um sussurro, me dizendo que quando ela morresse e seu corpo estivesse abaixo do chão, sua alma estaria no inferno e que por mais que levassem flores para ela, ela não poderia ter paz.

Aquilo era inquietante. Eu, particularmente, não acredito no inferno. Para mim, isso é apenas uma desculpa da sociedade para assustar as pessoas e impedi-las de cometerem atos cruéis, com a intenção de fazer com que acreditem que se cometerem atos maldosos, iriam realmente queimar no inferno. Mas agora, pelo que vejo, Mary acreditava fielmente naquilo. A certeza em sua voz chegava a me assustar. Afinal, pelo tempo em que vivi, nunca conheci alguém que se diz acreditar no inferno e ao mesmo tempo estar conformada em ir para lá.

– por que diz isso? Mary – perguntei.

– hun? – ela pareceu confusa, me olhando com as sobrancelhas franzidas.

– por que você tem tanta certeza que vai para o inferno?–

– Há – suspirou, lembrando-se de algo – pessoas como eu não merecem estar ao lado de Deus – ditou sorridente.

– Hun? – era assustador o modo como ela aceitava as coisas – sim... Mas... Por quê? – perguntei novamente – pensei que apenas pessoas ruins deveriam ir para o inferno após a morte – continuei, pensativa.

– Er... – Mary deitou-se na cama, ainda me encarando com seus olhos negros. – Judy... – chamou-me, sorrindo gentilmente – diga-me... Uma filha que deseja a morte da própria mãe merece ir para o céu? – perguntou.

Fiquei calada. Eu não sabia o que responder. Na verdade eu sabia sim, apenas não queria dizer o que eu achava a respeito daquilo. Ela notou que eu iria ficar em silencio, mas não reclamou, apenas se ergueu do colchão para ir em direção a mesinha que ficava ao lado de minha cama. Abriu a gaveta e em seguida retirou a pequena gilete que ficava guardada lá dentro.

– né... Vamos? – convidou-me.

– não. - respondi.

– por quê? – Mary pareceu ficar emburrada, enquanto cruzava os braços e formava um bico em seus lábios.

– não estou com vontade – disse a verdade, não me importando para a sua infantilidade.

– por que é tão chata? – choramingou - não importa! Eu faço sozinha – respondeu por fim, decidida.

Fiquei quieta, observando sua mão segurar a gilete e prensa-la com força contra o pulso vermelho e marcado por cicatrizes. Mary formou uma careta ao sentir sua pele se rasgar aos poucos. Apesar da dor que ela proporcionava a si mesma, eu podia ver o sorriso em seus lábios rosados. Era perturbador o modo como ela adorava se mutilar. Todas as vezes que isso acontecia, sempre que ela conseguia causar mais sofrimento a si mesma, ela sorria. Diferente de mim, Mary parecia realmente se sentir em paz quando fazia aquilo. Pois apesar da face contorcida pela dor, ela sorria verdadeiramente.

– isso nos causara problemas – sussurrei, encarando o sangue que escorria por seu pulso – cuidado para não manchar minha colcha – avisei, enquanto franzia minhas sobrancelhas.

Mary me encarou desentendida.

– por que nos causara problemas? – perguntou – já estamos acostumadas com isso – sorriu falsamente, mostrando-me seus dentes perfeitos – por que não tenta, uhn? – ofereceu-me a gilete em mãos – que tal você enfia-la com força dessa vez. Que tal você criar coragem e se matar! – gritou.

Assustei-me com seus gritos. Arregalando os olhos quando ela fora ignorante comigo. Negando-me a tocar no objeto em suas mãos. Se ela continuasse com aquilo, eu realmente iria fazer isso.

– pare com isso, Mary. – pedi – esta me assustan... -

– hun? – Mary se aproximou de mim, me interrompendo – o que esta dizendo? – perguntou – olha a sua vida. Você precisa disso. – falou, erguendo a manga de meu moletom, observando as cicatrizes. – você não gosta disso? – a encarei, em silencio – quer que eu faça pra você? - indagou, aproximando a ponta da gilete em meu pulso.

Sorriu.

– Judy, gostaria de sa... – uma voz fizera presença.

Foi uma surpresa, tanto para mim quanto para Mary, quando minha mãe adentrou o meu quarto, se deparando com a cena. Afastei-me da morena, voltando a cobrir o meu pulso. Não consegui encarar os olhos de minha mãe, que por sinal, ficara quieta encarando a nós duas.

Naquele momento, ficamos em silencio. Senti vontade de chorar ao perceber que o segredo que tanto queria guardar, agora estava à mostra. Mas o ódio que sentia, fez com que aquela vontade sumisse. Mary percebeu o quanto eu estava irritada. Afinal, quando ela me encarou com o rosto banhado pela culpa, ela sabia que o meu ódio era por causa dela. Meu ódio era direcionado a ela.

– Mary... – chamou, minha mãe – poderia, por favor, sair. – pediu.

Mary soltou um suspiro e agarrou o pulso manchado pelo sangue, tentando esconde-lo de minha mãe, o que foi inevitável. Pude ver os olhos raivosos dela, encararem a manga do moletom de Mary, que estava suja de vermelho. Minha amiga saiu de meu quarto, com a cabeça baixa. Não houve despedida e muito menos uma troca de olhar entre nós duas.

A porta do quarto fora fechada com brutalidade e minha mãe veio em minha direção. Suas mãos obrigaram-me a mostrar-lhe o pulso vermelho que eu possuía. Seus olhos se arregalaram ao ver as cicatrizes, e o sentimento de culpa a dominou.

Eu sabia, minha mãe e eu poderíamos não ter uma relação muito amigável, mas eu sabia. Sabia perfeitamente o que ela sentia naquele momento. Era possível perceber a dor e a culpa que ela sentia. A raiva que ela tinha, por não ter percebido aquilo antes.

Nunca, em toda a minha vida, eu pude ver a preocupação dela quando se tratava de mim. A filha que ela não amava. Desde criança, nunca senti o seu abraço ou as palavras de amor que eu tanto desejava ouvir. Nunca me senti amada ou querida. Cresci com o vazio em minha alma, por não ter conhecido o amor de minha família. Senti-me abandonada. Sem vida. Varias vezes tentei entregar-me a morte, pois naquele tempo, quando eu ainda era uma criança, a coragem ainda me permitia fazer certas coisas. Apesar de tudo, sempre fui impedida de cometer tais atos, tanto por minha mãe quanto por meus familiares. Alguns chegavam a me julgar, encarando-me com repulsa, outros sentiam pena de mim, com a ideia de que eu queria apenas a atenção dos de mais. A verdade era que eu desejava deixar aquele lugar. Afinal, nenhuma criança consegue crescer sem o amor dos próprios pais, sem que ela acabe por criar algum tipo de problema pessoal.

Naquele dia, quando Mary saiu de meu quarto. Quando eu pude ver a dor nos olhos de minha mãe. Eu senti um sentimento igualado a felicidade. Pela primeira vez, eu pude ver a preocupação dela direcionada a mim. Eu pude sentir suas mãos tremerem quando tocaram meus pulsos. Eu tive a certeza de que naquele momento eu ganharia seu abraço. De que talvez, por um curto tempo, eu pudesse saber como é ter uma mãe ao meu lado. Mesmo que isso me causasse futuros problemas, eu não me importava. Pois eu me cortaria quantas vezes fosse preciso, para que eu pudesse saber que minha mãe se preocupava comigo. Eu necessitava do seu abraço. E eu tinha a certeza de que receberia naquele instante. Eu esperava que ela me fizesse sorrir ao menos uma vez.

Mas tudo não passara de um grande engano...

Não houve abraço. Não houve amor. Não teve sentimento.

Naquele dia, apenas a dor me sufocou.

Eu já estava acostumada a ser chamada de inútil. Eu já estava acostumada a ser tratada como um lixo. Eu sabia que era apenas um estorvo.

A verdade é que durante o tempo em que vivi, nunca recebi o amor de minha mãe. Ela sempre se negou a tocar-me, deixando claro o nojo que sentia por mim. Mas eu sabia que para tudo tinha uma primeira vez. Eu pude ver o rancor em sua face, à raiva em seus olhos. O desespero em seu ataque, como se ela ansiasse por fazer mais que aquilo. Como se ela desejasse matar-me naquele momento.

Pois bem... O abraço não veio. No lugar dele, eu recebi uma tapa em minha face. Ela tocou-me. Mesmo que não fosse do modo como eu esperava. Ela matou-me, matou minha alma, retirou o mínimo de vida que existia dentro de mim. Ela fez com que eu desistisse da vida.

Ninguém entenderia.

Todos esses anos eu esperei por um ‘’eu te amo’’. Eu aguentei toda a dor de ser abandonada. Eu fiquei em silencio, eu suportei sozinha. Isso é realmente cruel. No momento em que mais precisei, ela apenas ergueu sua mão e bateu em minha face. Ela apenas deixou ainda mais claro o ódio que sentia.

Eu estava sufocada.

– mãe... – a chamei, sentindo minha bochecha arder – mãe... – sussurrei – eu te odeio. –

Eu não sei o que acontece com as pessoas vazias, que conhecem o ódio como primeiro sentimento. A única coisa que eu sabia, era que se existia um inferno, eu com certeza iria fazer companhia a Mary naquele lugar.


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