Mais Uma Daquelas Noites. escrita por Nina Farnese


Capítulo 1
Capítulo único.


Notas iniciais do capítulo

Boa Leitura.



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                Essa era mais uma daquelas noites. Deus, ela daria seus dois rins para que não fosse. Mas era, e ela tinha certeza de que nada do que fizesse poderia resolver o seu problema. Era só ela com ela mesma, quer dizer, só ela e sua mente, lhe torturando com aquele assunto que há muito já deveria ter morrido. Mas, tratando-se de lembranças, nada morre de verdade, não é? Perguntava a si mesma, inquieta na cama. Naquelas noites, geralmente não conseguia ficar quieta. Parada. Sem virar o corpo na cama, como que um hambúrguer na chapa. E não eram as colchas que a incomodavam, grandes e cheias, macias, cheirosas e quentes. Tudo de importante para se manter perto em um inverno. E como estava durando, aquele inverno.

                Sabendo que provavelmente não dormiria por causa daquela ansiedade que encharcava seus ossos, levantou-se. Não se preocupou em calçar os chinelos, mesmo que o chão estivesse frio. O quarto era amplo e vazio demais. Fora um tapete de centro, a cama de casal e o enorme guarda-roupa, não havia nada. Caminhou até a janela que estava aberta, mas de cortinas fechadas. A luz que vinha do céu impediu que ela tropeçasse no par de sapatos que estavam ao chão. Abriu as cortinas com ambas as mãos, e se perguntou que horas eram. Mas logo deixou de ligar pra isso. Não importava, aquela sensação estranha permaneceria até o amanhecer. Entranhou as mãos nos cabelos, se desesperando lentamente. Porque não simplesmente voltava para a cama e dormia? Não sabia dizer. Ou melhor, sabia, mas...

                Vinha um vento frio da janela. Soprava seu rosto, tirando as madeixas que por ventura ali caíam. Um bom café cairia bem, pensou. Mas não se demoveu dali, permaneceu apoiada na janela e olhando a escuridão da rua. O poste de luz muito amarela, e as casas apagadas. O silêncio, quebrando apenas por longínquas latidas de cachorro. Sabia que ficaria filosofando a noite inteira. Sabia disso no profundo de si. Espreguiçou-se. Fechou os olhos, respirou fundo. Os abriu e andarilhou a esmo pelo quarto. A sensação de não caber em si, de não ocupar nada e não fazer parte do ambiente era excruciante. Também o era, a sensação de esmagamento por uma força sobrenatural e invisível. A ansiedade “Faça, faça, faça” e não lhe dizia o quê. Sabia que nenhum livro ocuparia a sua mente, era certo. Sabia que nenhum filme que estivesse passando na Tv lhe puxaria a atenção por mais de meio segundo. Sabia que andar pela casa truncando-se nos móveis tampouco ajudaria.

                Deus, como era difícil lidar consigo mesma naqueles momentos. Era tão difícil quanto... Não achou objeto de comparação. E, nem era mesmo necessário. Mas pensando nisso, o que, nessa vida, é necessário? Nascer, crescer, reproduzir, envelhecer... Ordenando as palavras em uma fila tão simples, não se consegue notar quanto tempo e quanta coisa isso tudo leva. Pensou. Abandonou o pensamento e então se levantou, iria ver o álbum de fotos. Desistiu, sentou-se novamente. As latidas, lá no fundo, ainda eram ouvidas. Fora isso: nada. O pior não era o silêncio ambiente, era o barulho dentro de sua cabeça. Antes que pudesse tentar evitar, estava chorando. Chorando de novo.  Definitivamente, essa era mais uma daquelas noites. Ergueu a cabeça para o céu, mesmo que encarasse o teto do quarto. Não buscava salvação divina, E nem mesmo evitar que as lágrimas se aglomerassem em seu rosto, cobrindo-o como a um território inimigo. Não, era que, de alguma forma, saber que o céu ainda estava lá, tudo ainda estava lá...

                Sentia-se tão pequena. Tão minúscula. Um pouco desnecessária, até, obsoleta. Sentia-se sozinha, desesperadamente sozinha. Tinha fome, mas não quis descer as escadas e ir até a cozinha. O estômago que se contentasse com seu jantar, que fora horas atrás. A fraqueza maior era notar que quando aquelas noites vinham, ela ficava à sua mercê. Não havia nada que pudesse fazer para evitar. Continuava chorando, agora, tentando debilmente afastar as lágrimas com as costas da mão. Estava pensando que, se tivesse agido diferente, talvez não estivesse ali chorando. E, pensar nisso, não era apenas aquele arrependimento infantil que surge sempre que se pisa em território desconhecido. Aquele que toma a confiança e te dá um soco na boca do estômago. Não, esse era um arrependimento que fazia seu coração se comprimir pesadamente. Bater mais forte. Era um arrependimento que parecia vir para lhe dizer que o mundo inteiro poderia ser diferente. Mas ele não valia de nada, afinal. Era uma janela a qual ela nunca poderia entrar... nunca se aproximar.

Nunca fechar, também. Apenas poderia ficar ali, olhando a vista. Aquela gigantesca colina de montanhas com campos verdejantes e céu azul, sol a pino e um lago. Um paraíso de escolhas que nunca fez.

Suspirou, estava no ponto do choro no qual a respiração se torna difícil. Fungava, e soluçava. Levantou-se. Não que tivesse lugar certo para ir. Era só que queria se mover, era só que pensava que deveria fazer alguma coisa. Contar a alguém. Pensou, tudo o que precisava fazer era contar a alguém. Dividir o tormento de sua tristeza... Mas confiava em alguém para isso? A resposta era óbvia, porém, difícil se segurar o peso. Não podia contar com ninguém. Desesperava-se. Naquelas noites, sempre se desesperava. Ainda de pé, circulou pelo quarto como se isso fosse fazer qualquer diferença. Não estava fazendo. Pelo contrário, sua ansiedade aumentava.

Decidiu-se a sair do quarto. Desceu as escadas apressadamente. Chegou à cozinha, bebeu um copo d’água mesmo que não tivesse sede. Usando isso de desculpa: descera para tomar um copo d’água e era tudo. Encheu novamente o copo. Lá em cima tinha um comprimido de calmante. Naquela noite, com certeza precisaria. Se pretendia dormir em algum momento. Subia não tão enérgica quanto havia descido. Pisava com peso nos degraus, como se tivesse alguém dormitando que fosse gritar “ei, sobe devagar. Assim não dá!” Jogaria seus diplomas fora e queimaria a casa, se isso lhe trouxesse tal alguém.

Mas essa barganha não existia, tal qual a possibilidade de ela estar tão desesperada. Salientou, não estava. Não estava e ponto final. Não era o tipo de pessoa que não consegue ficar sozinha. Ou que é o tempo inteiro torturada pela própria incapacidade. Era mais como... Como se precisasse se esquecer, abrir mão de algo muito importante e não conseguia de modo algum. Porque, naquelas noites, sempre pensava de um jeito tão derrotado? Não parecia nem a mesma mulher que, naquela mesma manhã de sábado, havia arrumado a casa. Não parecia e não era. Era como se, naquelas noites, ela sempre fosse fisgada por um espírito ruim que deixasse livre todos os demônios que ela cuidadosamente trancara no interior de si. Ah, como queria que tais noites não existissem! Como queria, ela mesma, não existir.

Mas deveria ter notado os sintomas. Calculou logo. Deveria ter notado. Percebido, feito algo para resolver. Naquela tarde, depois de um longo banho para livrar-se da poeira que a pele adquirira e do suor do corpo, assistira dois filmes. Chorara em ambos, mesmo que um deles tenha sido comédia romântica e o outro, uma simples animação infantil. Naquelas noites, até uma folha despencando de uma árvore, no outono, a faria chorar. “Pobre folha, está se perdendo, ao relento. Aos cuidados de um vento que a leva para tão longe...” Diria. Por mais que isso soasse ridículo no dia seguinte. Por mais que isso soasse completamente inconcebível. Naquelas noites, ela se tornava o que jurara combater com todas as forças. Agora, depois de tomar o comprimido, parava para pensar. Aquela noite era bem fora de lugar. Nenhum de seus calendários dizia que estava sob qualquer tensão hormonal ou período normalmente difícil. Aquilo ali era dor-de-cotovelo e só.

Não havia posto uma única gota de álcool na boca, mas estava embriagada. Embriagada de soluções tardias, embriagada de “disse-me-disse”, embriagada de análises de miudezas passadas. Estava embriagada de si mesma e das próprias frustrações. O patético era achar que o remédio iria adiantar de alguma coisa. No dia seguinte, iria acordar normalmente, mas quantas mais noites, como aquela, ela não teria de enfrentar? Sabia que aquilo nunca terminaria. Nunca. Ela não era o tipo de pessoa que vê as coisas de forma efêmera. Ela era feita de eternidades.

Em meio aos seus pensamentos, coçou os olhos úmidos e então tomou o antídoto daquelas noites: deixar virem todas as memórias. Desgostosa ou não, não faria a menor diferença. Riria do que fora bom, e choraria pelo que fora ruim. Remoeria cada singular erro seu, e perdoaria cada singular defeito dela. Em pensar que, naquele instante, poderia estar ali, deitada dormindo na cama. Se ela estivesse ali, decerto aquela não seria mais uma daquelas noites, seria apenas mais uma noite de... Sono. Sorriu, seria uma noite de sono. A ansiedade ainda a remoia, não tinha orgulho naqueles momentos, era certo. Não tinha nenhum orgulho, se tivesse os meios cabíveis, estaria ligando, buscando, procurando na rua com cães de caça. Estaria gritando e colocando cartazes nas ruas. Chamando as autoridades. Estaria inflando o peito de esperança, estaria firme em seu propósito de achá-la.

Estaria fazendo isso, sim. Era claro que estaria. Fazendo todo o esforço do mundo para tê-la de volta.  E depois iriam ao cinema. Claro! Qualquer filme seria o melhor filme do mundo. Ou talvez o teatro, uma exposição de arte. Um show de rock. Uma apresentação de orquestra, talvez um circo. Porque não? Se ela não tinha uma alma tão infantil e caridosa. De todo modo iria gostar se fosse circo. Ou não, nada disso era realmente necessário para encher seu coração. Uma simples caminhada pela praça e estaria satisfeita. Uma simples caminhada que não fosse de lembranças, e sim de acontecimentos. Ela juntou as mãos e esfregou os olhos, realmente odiava aquelas noites.


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