No Other escrita por Pacheca


Capítulo 20
Capítulo 20 - All Of Me


Notas iniciais do capítulo

Gente o.o Acho que exagerei um tiquin .q Mas espero que gostem :3 All Of Me de Angus e Julia Stone: http://www.youtube.com/watch?v=rRbl-xaFh2U



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Eu ouvia vozes ao longe. Não só vozes, mas também sons metálicos de aço contra aço e um bipe irritante. Queria acordar, mas não conseguia abrir os olhos e me livrar do escuro. Apenas uma claridade fraca atravessava minhas pálpebras cerradas. E tinha aquele sentimento de leveza.

Queria me agarrar a alguma coisa, mas não tinha nada ali para mim. Parecia que eu sairia flutuando a qualquer instante. Aquela claridade que eu não podia ver mas sentia era o que me prendia. Tinha que pedir ajuda. Pedir para alguém me segurar firme.

O bipe parou. As vozes cessaram. A claridade sumiu. E ao mesmo tempo que eu ficava na escuridão completa, meu peso inteiro voltou de uma só vez. Agora parecia que eu nunca mais conseguiria me levantar.

As vozes, antes só palavras sem nexo, agora eram um sussurro baixo, uma prece. O que infernos estava acontecendo? O bipe voltou. A escuridão começou a ganhar um tom cinzento, até virar um branco ofuscante.

Percebi que tinha conseguido abrir os olhos no instante que os fechei. Fui piscado, incomodada, até me acostumar com o novo brilho. Minha cabeça pesava, doendo.

A garganta seca, os sentidos meio apagados. A minha cabeça parecia completamente vazia e cheia ao mesmo tempo. E a sensação era horrível.

Quis levar uma mão até o rosto, mas não pude. Olhei ao redor, sem conseguir me mover direito. Estava num quarto completamente branco, com uma poltrona e a cama em que estava deitada.

Ok, aquilo era exatamente como um quarto de hospital. Mas o que eu estava fazendo ali? O bipe vinha de uma máquina, ligada ao meu braço. Tentei me mover de novo, sem sucesso.

A maçaneta da porta girou, chamando minha atenção. Queria muito que fosse alguém com um pouco de água. Um homem de jaleco entrou, só com uma prancheta em mão. Sem água. Suspirei.

– Ora, ora. Não achei que já tivesse acordado. A anestesia foi forte. – Ele deu um sorriso, anotando alguma coisa. – Como se sente?

– Com sede. Confusa. – Respirei fundo. – Como vim parar aqui? Quer dizer, por que estou aqui?

Tentei me sentar, mas o homem me impediu, segurando meu ombro para trás. Ele mediu meu pulso e anotou na prancheta antes de me responder.

– Ok. Você precisa permanecer calma. Acabou de passar por uma cirurgia de alto risco, que graças a Deus foi um absoluto sucesso. Mas não vamos abusar da sorte, sim? – Franzi o cenho. Cirurgia? – E tem que esperar mais um pouco antes de tomar água. A anestesia pode te causar enjoos.

– Que...que cirurgia é essa? Eu... – Os bipes iam aumentando em velocidade considerável. Imaginei que aquilo fossem meus batimentos. O médico continuava calmo.

– Uma operação para retirada de um projétil. – Projétil? Arregalei os olhos, os bipes aumentando. – Acalme-se, ok? Eu vou te explicar tudo, mas precisa prometer que vai ficar calma.

– Como espera que eu fiquei calma? – Finalmente consegui me sentar, me escorando na cabeceira da maca.

– Respirando fundo. Prometa.

– Tudo bem. – Fiz o que ele ordenou e respirei fundo. Os bipes iam voltando ao normal, aos poucos. – Prometo.

– Você foi vítima de um tiroteio, em um parque próximo da sua casa. – Não falei nada. Os bipes ficaram estáveis. De que parque ele estava falando? Ele percebeu minha confusão e continuou. – Isso é um procedimento padrão. Só preciso te fazer algumas perguntas.

– Ok. Ok. – Falei. Não era mais nervosismo que eu sentia. Era desespero.

– Muito bem. Qual seu nome?

Era meu nome. Eu sabia. Mas travei. Não conseguia falar nada. Nenhuma palavra me vinha a cabeça. O desespero virou pânico total.

– Está tudo bem se você não conseguir responder. – O médico começou a falar.

– Tudo bem? Tudo bem? Não está tudo bem. É meu próprio nome. – Comecei a chorar. As lágrimas escorriam pelas minhas bochechas, piorando meu desespero. – Não está tudo bem.

– Sim, está tudo bem. Pode ser algum efeito colateral da anestesia, ou até mesmo uma sequela por ter sido baleada. Não é nada surpreendente uma amnésia nesse caso...

– O que? – Parei de chorar para ficar encarando os olhos verdes do médico por trás dos óculos. – Amnésia?

– Minha querida, precisa se acalmar.

– Eu...eu não vou mais me lembrar de nada? – Aquilo mais parecia que ele tinha sentado por cima de mim e estava me dando tapas seguidos.

Voltei a chorar, com as mãos na cabeça. Os bipes voltaram a ficar rápidos de novo. O médico suspirou e apontou para a máquina.

– Da promessa eu espero que se lembre. Calma, ok? – Olhei para a máquina, respirando fundo. – Vou chamar sua família. Explicarei tudo para vocês, com CALMA.

Concordei, percebendo a ênfase na última palavra. Ele deixou a sala, enquanto eu tentava colocar meus pensamentos em ordem. Ok. Primeiro de tudo, meu nome. Eu tinha que saber aquilo. Fechei os olhos.

Me lembrei de uma casa perto de um lago. Alguém dentro da casa me chamando de Megs. Aquilo fez um clique no meu cérebro. Megan. Alguma coisa. Megan... Stone, talvez?

O que mais eu conseguia lembrar? Além da casa, uma música que eu não fazia ideia do nome. E só. Suspirei.

O médico voltou, seguido de um rapaz e uma senhora. Prestei atenção em cada um deles. A mulher era baixinha, com os cabelos escuros curtos e os olhos inchados de choro. O cara com ela tinha os mesmos cabelos escuros e só. Os olhos dele eram mais claros, quase verdes e ele era bem alto.

– Megan Stone. – Me apressei em falar. Tinha que confirmar aquilo. – É meu nome?

– Sim, você se chama Megan Stone. – Ele anotou aquilo. – O que mais você se lembra?

– Uma casa num lago, alguém me chamando de Megs e uma música. Só. – A mulher e o garoto tinham parado ao lado da cama. Percebi olheiras escuras sob os olhos claros do garoto.

– Ok. Megan, os reconhece? – Apontou para os outros dois no quarto. Os olhei de novo. Não eram completos estranhos. Podia ver um pouco de semelhança comigo. Mas a ponto de dizer que os reconhecia, não.

– São familiares. Como uma memória nebulosa. Mas posso deduzir que são minha mãe e meu irmão. Certo? Eu tenho irmãos, certo? – Comecei a me atropelar.

– Sim, sua mãe, Johanna, e seu irmão, Elijah. – A mulher hesitou antes de pegar minha mão e sorrir de leve.

– Eu vou me lembrar, não é? – Quase chorei de novo.

– A amnésia pode ser só uma sequela temporária. – Ele começou a explicar, falando com todos nós. – Sua memória pode voltar toda de uma vez, ou sob alguma situação de pressão, ou aos poucos. Pode ser que você vá dormir essa noite e acorde amanhã se lembrando de tudo.

– Chances disso acontecer? – Perguntei.

– De verdade? – Concordei. – Quase nulas. O que não quer dizer impossível.

– Então, tudo que podemos fazer é esperar? – O garoto perguntou.

– Não, necessariamente. Tratamento psicológico pode ajudar. Talvez isso seja algum bloqueio da mente dela.

– Eu consegui me lembrar da música e do lugar. Já é um começo. Certo? – Eu piscava feito louca.

– Qual música? – Foi a vez de Elijah segurar minha mão.

– Eu não sei direito. – Parei para pensar por um instante. A letra começou a vir em pedaços. – Algo tipo “You know I’m such...”

– You know I’m such a fool for you? – Ele falou, como se conferisse algo.

– Acho que sim. Não tenho certeza.

– É Linger, do Cranberries. Você sempre adorou essa música.

– E o lugar? A casa perto do lago?

– A casa do lago de Minnesota. – Minha mãe respondeu. – Você foi para lá não tem muito tempo. Com seu pai.

– E vocês foram? – Queria saber daquilo. Não conseguia lembrar dele.

– Não. Só vocês dois. Eli não gosta de lá. E eu não convivo mais com ele assim.

– Então, são separados?

– Sim. Você tinha 12 anos. – Ela hesitou por um instante. – Ainda somos amigos, no entanto. Ele se casou de novo, eu tenho um namorado...

– Ele tem filhos com essa outra mulher? – Consegui me controlar e não perguntar tudo que eu queria saber de uma só vez.

– Sim, uma menininha. Ela te adora. – Sorri de leve. – E você tem outro irmão. O mais velho de vocês, Jack. Ele vive na Inglaterra.

– Bem, vou deixá-los sozinhos... – O doutor estava prestes a sair do quarto, quando uma gritaria do lado de fora começou.

– SE VOCÊ FICAR NA MINHA FRENTE EU TE ARRASTO COMIGO ATÉ O QUARTO! – Era a voz de uma menina. Tive vontade de rir com o jeito que a menina gritava. – OLHA AQUI, EU VOU ENTRAR E FODA-SE O SEU!

Assim que a frase terminou, a porta se abriu de uma vez, quase acertando o médico. Ele deu um pulo para trás, saindo do caminho da garota.

Era uma menina baixinha, com o cabelo preto liso e os olhos castanhos pouco mais claros que os de Elijah, ainda mais puxados pro verde do que os dele. Ficou parada no vão da porta, me encarando.

Abri a porta para perguntar quem era, mas ela correu e se jogou em cima de mim, apertando meu pescoço num abraço firme.

– Eu vou matar aquele imprestável. – Ela relaxou, como se precisasse de provas de que eu sobrevivera. – Que tipo de namorado inútil ele é? Nem pra te levar em casa.

Franzi o cenho. Já era confuso demais não saber quem era ela, tinha também um namorado? Eu tinha um namorado? Não sei se meu choque foi por não me lembrar dele ou pelo simples fato de alguém gostar de mim assim.

– Quem...? – A pergunta morreu na minha garganta. Pelo jeito que ela agira, eu devia me lembrar dela. Mas nada. Nem uma letra que significasse algo.

Sua expressão mudou bruscamente quando ela se sentou na beira da cama. Foi de alegria para confusão em um milésimo de segundo. Dei um suspiro, frustrada.

O médico estendeu a prancheta para ela, explicando a situação. A forma como ela leu quase partiu meu coração. Só queria me lembrar dela e ponto. Nem que fosse só o nome.

– Então, não se lembra de mim? – Ela falava baixo. Neguei com a cabeça, sabendo que não ia conseguir falar sem chorar. – Alice...

Ótimo, agora eu sabia um nome. O que não ajudava muito na verdade. Soou familiar, mas não fez com que nenhum sininho tocasse.

– Isso te lembra algo? – O médico perguntou, pegando a prancheta de volta.

– Não. Quero dizer, não me é estranho. Mas é exatamente como a mesma memória nebulosa. – Levei uma mão até meu rosto, frustrada. Senti uma faixa com a ponta dos dedos, mas não quis ver.

– Bem, talvez se você descansar um pouco. Venham. – E fez um gesto para que os outros também se retirassem. Vi que Alice parecia desapontada, encarando o chão.

Por mais que eu não pudesse fazer nada, me senti mal.

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Fiquei mais três dias sob observação no hospital. E cada um deles pareceu uma tortura diferente.

Primeiro por causa da comida. Não era ruim, só um pouco sem sal. O problema é que eu só comia três vezes por dia: café, almoço e janta. O resto do dia eu só comia as bolachas que Elijah traficava pra mim.

Segundo pelo tédio. Tinha uma TV no meu quarto, mas não passava nada de bom durante a maior parte da manhã e da tarde. Eu lia um dos livros que minha mãe me trouxe, mas cansava rápido por ficar em uma posição só.

E por fim, a falta de memória. Nunca poderia imaginar que era tão ruim. Queria minhas memória de novo. Percebi que eu só era eu mesma com elas.

Não me lembrei de muita coisa. Lembrei que meus pais eram divorciados, como minha mãe já me contara. Lembrei do outro irmão, ou ao menos de sua existência. Não consegui me lembrar de sua aparência. E me lembrei da casa em que morávamos, em Minnesota.

E só. O resto eram só vultos e borrões. Nada de bom ou de ruim. Simplesmente nada.

No último dia, enquanto eu tomava minha sopa de almoço, um enfermeiro tirava as bandagens da minha cabeça, falando animado. Queria ter o mesmo entusiasmo que ele, mas não conseguia. Só sorria para cada afirmação dele e continuava almoçando.

– Ok, meu bem. – Ele deu um passo para trás, como se observasse uma obra de arte. – Quase não dá para ver os pontos.

– Acho que isso é bom. – Falei, desanimada. Ele ou não percebeu, ou não ligou.

– Termine sua sopa. E ai vamos até a psicóloga. – Se sentou na poltrona, esperando. Adorara Jarry. Ele a lembrava alguém. Infelizmente, não sabia quem.

– Deve ser bem chato. Cuidar de uma adolescente que não lembra nem o próprio aniversário. – Falei, quase com raiva. Era o que sentia de mim mesma no momento.

– Ora, claro que não. – Ele deu uma risadinha fraca. – Posso falar sobre minha vida com as adolescentes. Com as senhoras não.

– Só cuida de mulheres?

– Basicamente. – Ele deu de ombros. – E mesmo assim, algumas têm medo. Acham que homossexualismo é doença.

– Olha, sem ofensa, mas você é enfermeiro. – Revirei os olhos. – Quer dizer, oi. Não tinha muito como você não ser...

– Gay? Exatamente. – Virou os olhos escuros para mim. – Já terminou?

– Ainda não. – Olhei a tigela. Nem na metade. – Posso beber alguma coisa?

– Com sopa?

– É. Deve ser alguma mania que eu tinha. – Dei de ombros. – Posso?

– Vou pegar um suco para você. – Deixou o quarto, com aquele sorrisinho fraco no rosto.

Ficar sozinha foi um pequeno alívio. Por dias evitei aquilo, mas agora a curiosidade era mais forte que eu. Chupei a colher, limpando-a e virei as costas para meu rosto, como espelho.

Uma parte do meu cabelo tinha sido raspada, deixando um buraco no lugar. No meio do ponto sem cabelo, um risco preto me lembraria dos pontos. Suspirei. Podia ser pior. Ao menos eu conseguiria disfarçar com a ajuda de um pente e umas presilhas.

– Aqui. – Jarry voltou, uma caixinha de suco na mão. – Agora, anda logo.

Voltei a comer, calada. Suco de uva. Sorri.

Jarry me deixou na sala de espera do consultório. Uma salinha azul, com revistas não muito velhas e um perfume gostoso. Cheiro de casa limpa. Fiquei ali quase uma hora inteira, vendo o ventilador de teto girando.

– Tenha uma boa tarde. – Ouvi uma voz vindo de dentro do consultório. Fiquei tensa. Estava entediada, mas não queria fazer aquilo.

Uma mulher passou por mim, sem que eu percebesse muito dela. Tinha olhos azuis, isso posso garantir. E era morena. Mais nada. Tomei coragem e entrei na sala, sem saber o que esperar.

Era um cômodo escuro, as janelas com cortinas pesadas as tampando. Tinha uma mesa, cheia de folhas espalhadas de uma forma organizada e um computador. Ao seu lado, uma lixeira de aço inox e uma planta.

Fui olhando os detalhes, evitando contato visual com a mulher. Atrás da mesa tinha um relógio de parede. Pouco além da mesa tinha um grande sofá preto e uma poltrona em frente. Uma estante com alguns livros ao lado e só. Não era nem cheio nem vazio demais. Confortável.

– Hum, oi. – Finalmente olhei para a mulher. Fiquei um pouco surpresa. Era bem diferente do carrasco que eu esperava.

Era uma moça, pouco mais baixa que eu, com um cabelo preto repicado e com uma franja, a pele bronzeada e os olhos escuros. Usava um alargador pequeno e tinha um piercing no nariz, que tenho certeza que minha mãe reprovaria. E uma tatuagem com o símbolo da paz no ombro.

– Ah, oi. – Não sabia bem o que fazer. Ela apontou para o sofá preto, e me sentei. – Hum, seu nome é?

– Lara. – Era um pouco estranho, mas ok. Quer dizer, não é um nome comum. – É esquisito, eu sei. Coisa da minha mãe.

– Não, é...legal. – Não consegui pensar em mais nada. Ela deu um sorriso e baixou os olhos para uma ficha em seu colo. Parecia muito com a prancheta do médico.

– Megan Stone, apresenta amnésia após cirurgia para retirada de projétil. Possível causa, psicológica. – Deu uma risada fraca. – Bem, se for esse o caso, vamos dar um jeito.

– Posso fazer uma pergunta antes de tudo? – Falei, erguendo um dedo, como se estivesse numa sala de aula. Ela concordou. – Quantos anos você tem?

–22. Sabe, eu acabei meu curso semestre passado. – Ela falava, pegando alguns cartões de uma gaveta em sua mesa. – Mas prometo que sei o que estou fazendo.

– Não, eu... Só fiquei curiosa. – Falei. – Sei lá, imaginei uma senhorinha de seus 60 anos com uma cara de entediada.

Ela riu. Na verdade, deu um grito e depois ficou de boca aberta, sorrindo. Imaginei que era como ela ria. Estranho, mas divertido.

– Ok, de volta ao trabalho. – Ela se sentou na poltrona de novo, arrastando o assento com ela até meu lado. – Eu vou te mostrar esses cartões e quero que me diga a primeira coisa que te vier a cabeça. A primeira mesmo. Nem pense.

– Tá, tudo bem. – Concordei. Ela me mostrou o primeiro deles. Quis rir, no primeiro momento. Eram só manchas, algumas pretas, outras coloridas. Depois percebi que conseguia enxergar ali. – É um olho.

Ela ia anotando numa folha em branco, só com meu nome no alto. Continuou passando os cartões, enquanto eu respondia quase no automático.

– Frango. A Ásia. Carro. – Aquilo me parecia ter certa conexão, mas não falei nada. Era estranho. – Ahn, posso dizer gay?

– Gay? – Ela virou o cartão, olhando-o e rindo daquele jeito estranho. – É gay mesmo. Geralmente dizem amor.

Eram dois traços pretos, paralelos, que me fizeram pensar em um casal, e uma mancha entre os dois, que parecia um coração.

– O amor é gay, eu acho. – Trocou de cartão. – Uma borboleta. Um computador, desses notebook. Livro. Um balanço de parque. Arma.

Ela anotou aquilo e olhou minha ficha. Logo em seguida me encarou, abaixando os cartões.

– Consegue associar alguma coisa disso? Disso tudo. – Falou, um ar extremamente profissional agora. Gostei daquilo.

– Imagino que o balanço e a arma sejam juntos. O tiroteio foi num parque, certo? – Ela ia anotando, quieta. – O que eu falei Ásia e o carro. Não sei. Quando penso nos dois juntos, me parece...sei lá, familiar.

Olhei para a mesinha de centro em frente ao sofá, onde ela deixou os cartões. Peguei os dois últimos, colocando-os lado a lado. O balanço e a arma. Veio num flash. Era como se eu estivesse revivendo aquilo.

Só que era mil vezes pior. Como se para se fixar na minha mente, a cena tivesse que se repetir em câmera lenta. Eu andava perto de um balanço. Uma mulher com sua filha. O cara em um carro, sacando a arma no meio da rua. O tiro. As pessoas caindo no chão, ou com medo ou mortas. E o tiro na minha direção.

Larguei os cartões, voltando para a realidade. Depois daquela experiência, quase não quis lembrar de nada. Quase. Lara percebeu meu pequeno sobressalto.

– Se lembrou de algo?

– O tiroteio. – Pisquei. – Quantas pessoas morreram?

– Não sei direito. Confesso que não leio muito jornal. – Ela deu de ombros.

– A garotinha morreu. – Afirmei. Me lembrei bem da mãe choramingando sobre o corpinho dela.

– Pode procurar por algo depois. Sinceramente, eu te aconselho a colocar essa memória na caixinha do “Não preciso saber mais”. Mas se quer mesmo saber.

– Não posso só ignorar.

– Não. Mas não precisa ficar revivendo cada momento daquele. Liberte-se disso. – Concordei. – Vai se lembrar logo, você vai ver. Memórias boas pra sobrepor tudo de ruim

– Espero que sim.

– E o carro e a Ásia?

– Nada. Sei lá, parece loucura minha.

– Loucos, todos somos. Só a forma de loucura nos diferencia. – Frase de efeito. Gostei daquilo. – Não se preocupe, tudo tem seu tempo.

– Tudo bem. – Olhei o relógio. Ainda não tinha se passado minha hora, mas queria ir embora. Ela percebeu.

– Ok. Pode voltar pro seu quarto. – Foi comigo até a porta, acenando para mim. Andei pelos corredores até voltar para meu quarto, sem esperar Jarry.

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Jarry tinha ido checar alguns papéis e documentos para que eu tivesse alta naquela tarde. Eu só iria embora por volta das sete. E ainda não eram nem quatro.

Abri a porta do quarto, com um suspiro. Travei no vão, olhando o garoto lá dentro. Estava sentado na poltrona, a cabeça apoiada sobre as mãos entrelaçadas.

Os olhos azuis dele encontraram os meus quando eu estava indo checar se era o quarto certo. Ele ficou de pé, me fazendo prestar atenção nele. Alto, o cabelo escuro ondulado destacando o azul dos olhos.

Tentei pensar em algo pra dizer. Qualquer coisa. Mas a presença dele ali me atordoava. De um jeito que eu queria que continuasse. Ele passou os braços ao meu redor, me apertando contra ele.

Por mais que tivesse gostado de sentir o peito dele sob a camisa, tentei me soltar com delicadeza, mas ele sentiu minha intenção. Estava tenso, trêmulo e chorava. Senti algumas lágrimas caindo no meu ombro antes dele me soltar.

– Me desculpa. – Falava entre soluços. – Deus, me perdoa, Megs.

– Hum... – Mais uma vez, tinha que mostrar que eu não me lembrava. Que bela droga. Fiquei triste por ele. O garoto naquele estado por minha causa e eu não sabia nem seu nome. – Quem...quem é você?

O rosto dele estava completamente molhado. Ele passou as costas da mão pelas bochechas, como se tentasse secá-las, sem muito sucesso. Aquilo me deixou ainda mais pra baixo. Mas ele não parecia decepcionado. Até sorriu.

– Duran. – Ele fungou, olhando para o chão com uma mão na nuca. Estava com vergonha. – Eu sou...eu era seu namorado.

– Era? – Me sentei na cama, olhando para ele, rezando por dentro que o buraco no meu cabelo não estivesse tão evidente. – Por que não é mais?

Tentei dar um sorrisinho fraco, mas fiquei meio travada. Ele se sentou ao meu lado, rindo. Uma risada alegre de verdade. Linda.

– Porque você nem sabe quem eu sou. Ou, pelo menos, não se lembra. – Secou o rosto de novo. – Sua mãe me avisou o que eu encontraria.

– Eu e meu buraco na cabeça. – Parabéns,Megs. Aparentemente, esqueci como ser inteligente também. Mostrar a falha no seu cabelo é o tipo de coisa que você faz para o cara mais lindo que você já viu. Ou se lembra de ter visto.

– Você, o seu buraco na cabeça... – Falou aquilo com uma risada leve, mexendo numa mecha do meu cabelo, mostrando mais a falha. – E quase nada na cabeça.

– De memória, nada. Ou quase. – Olhei pros lados, sem me importar com a mão dele no meu cabelo. – E, de novo, por que você não é mais meu namorado? Quer dizer, não lembrar de você é um bom motivo, mas você pode me fazer lembrar...

– Achei que soaria como uma imposição se eu falasse que ainda sou seu namorado. – Deu de ombros, afastando a mão. – E não fui exatamente um bom namorado.

– Por que não? – Franzi o cenho. – O que você fez de tão horrível?

– Ali estava certa. Eu devia ter te levado em casa aquela noite. – Voltou a encarar o chão. Foi minha vez de mexer no cabelo dele.

– Mas ai você também seria baleado. – Como aquele cara podia sentir aquilo tudo por mim? Ele era um deus e eu era uma pobre mortal desmemoriada. – E eu não ia querer isso.

– Ou talvez eu teria te empurrado pro chão e te salvado. E agora você estaria com os cotovelos e um joelho ralado, com a cabeça no meu ombro e evitando o assunto.

– Talvez não é uma opção. – Retruquei. – Talvez os dois estaríamos mortos agora.

– Deus me livre. Te ver assim já é uma tortura. – Ele piscou, como se não quisesse chorar. – Quase tive um troço quando me ligaram. Seu irmão.

Ele me encarou. Senti um calor bom com o azul dos olhos dele. E aquela sensação de familiaridade. Sorri. Podia entender porque gostava dele.

– Ok, espera. – Pensei. – Talvez eu me lembre de você. Duran. Duran Duran. Duran...

– A banda que me deu esse nome. – Ele riu.

Foi o gatilho. Lembrei de Cranberries. Aquela música. Elijah disse que era Linger. Outro flash.

Um lugar claro, descoberto. As nuvens passando por mim como se fossem de outra dimensão. O braço de Duran ao meu redor, minha cabeça em seu ombro. A música. Tocava de um iPod. Ele sussurrou no meu ouvido. Aquela frase.

– You know I’m such a fool for you. – Ele parecia surpreso. Tentei lembrar mais alguma coisa, mas nada me veio. – Foi por você que me lembrei da música.

– Era nossa música. – Ele voltou a chorar, sorrindo. – Você me fez escolher uma música para ser nossa.

– Onde foi isso?

– Na escola. No telhado do prédio de convivência. Matamos aula depois. – Sorriu. Sorri junto. – Linger.

– Foi a primeira coisa que consegui me lembrar. Essa música e uma casa no lago. – Comecei a rir. – Nossa, que gayzisse!

– É um comentário bem... “Megs” pra se fazer. – Ele classificou meu comentário? – É, extremamente gay. Mas a ideia foi sua.

– Ei, Duran. Você gosta de mim? – Perguntei, mudando totalmente a atmosfera.

– Megs, foi a coisa mais estranha que eu já senti. – Ele corou. – Não sou bem mulherengo, mas nunca achei tão difícil falar com uma menina. Você me deixou com um frio na barriga. Fiquei com medo de não gostar de mim.

– Mas eu tenho certeza que gostei.

– Acho que sim. Você passou a se sentar do meu lado toda aula de química. Começou a conversar comigo escrevendo no meu caderno...

– Isso parece coisa de filme.

– Acredite, sua vida já dá pra virar longa. – Riu. – O que importa é que eu simplesmente ficava esperando as aulas de química. E eu odeio reações.

– Aposto que gostava de você também. – Sorri, de forma meio melancólica.

– Olha, eu tenho que ir. Meu pai não sabe que estou, vai estranhar se não me achar em casa. – Ficou de pé, as mãos nos bolsos da calça.

– Hum, ok. Tudo bem. – Dei de ombros. – Vou embora daqui a pouco também.

– É, eu sei. – Ficamos nos encarando em silêncio. Ainda não conseguia imaginar que um garoto tão lindo gostasse dela. – Posso...te abraçar de novo?

– Claro. – Fiquei de pé. Ele passou os braços ao meu redor. O abracei de volta.

– Obrigado. Precisava disso. – Voltou a colocar as mãos nos bolsos depois de me soltar. – Até mais.

Acenei em despedida, vendo-o deixando o quarto. Dei um suspiro quando fiquei sozinha, sentando na cama de novo. Levei a mão até meu cabelo. O buraco estava bem visível, pelo que percebi. Um cara lindo e uma menina com o cabelo desfalcado. Droga.

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Jarry me ajudou a ir embora. Deixou todos os documentos prontos, me ajudou a juntar as coisas que minha mãe tinha levado para mim e me fez companhia.

Quando Elijah chegou, um outro garoto o seguia, calado. Um cara asiático, com o cabelo castanho e os olhos acinzentados. Ele usava um terno azul marinho, uma gracinha. Ainda preferia Duran.

Enquanto Elijah agradecia Jarry pelo esforço em cuidar de mim, fiquei estudando o asiático. Acho que ele me estudava também. Fiquei uns cinco minutos decidindo se ele era chinês, japonês ou coreano.

– Ei, Zinha. – Elijah bagunçou meu cabelo, tirando minha atenção do outro garoto. – Lembra-se dele?

– Não. Ele é coreano? – Fora minha decisão depois dos cinco minutos. – E por que ele está de terno?

– É, o garoto é coreano. Kyu. E o terno é o uniforme dele.

– Sou motorista do namorado da sua mãe. – Ele falou, me olhando com uma expressão estranha. – Vou te levar pra casa.

– Tudo bem. – Estava sentada, as mãos sobre o colo. – Me desculpe, por não me lembrar de você.

– Não esperava que se lembrasse, não se preocupe. – Deu um sorrisinho que mataria qualquer garota de amores. Menos eu.

– Ok. Então, vamos logo. – Não aguentava mais ver aquele quarto. Jarry estava na porta, quase chorando.

– Se cuide, querida. Não quero mais te ver, ao menos, não aqui. – Me deu um abraço.

– Obrigada, Jarry. Adorei conversar com você. – Ele sorriu, me deixando passar.

Kyu nos levou para casa num Jaguar preto. Elijah me deixou ir no banco do carona, a janela aberta. Kyu dirigia bem, nem rápido demais, nem devagar demais.

Fiquei olhando a paisagem, esperando reconhecer alguma coisa daquela cidade e evitar os olhares dos outros dois. Por mais que não dissessem, sabia que esperavam que eu me lembrasse de alguma coisa.

Gastamos meia hora, Elijah nos fez parar para comprar uma garrafa de rum. Kyu murmurava uma música em coreano. Reconhecia a melodia.

– Que música é essa? – Falei. Talvez aquilo engatilhasse alguma coisa.

– É kpop. – Coçou o nariz. – Monster, do Super Junior.

Um flash rápido. Eu cantarolando aquela música enquanto tomava banho, lavando cabeça. Sabia que amava aquela música.

– Eu me lembro dela. – Elijah acabava de sair da loja. – Adorava ela.

– Você ama Super Junior.

– Acredito. – Sorri, satisfeita por me lembrar.

Depois que Elijah voltou, o caminho ficou silencioso mais uma vez. Ele parou em frente uma casa de dois andares, bem cuidada, com um jardim e um caminho de concreto até a porta. Bonita.

Hesitei antes de dar meu primeiro passo dentro da casa. Queria tanto me lembrar daquele lugar. Parei ao pé da escada, Kyu ao meu lado. Ao menos agora eu entendia a conexão dos cartões de Lara, entre carro e Ásia.

– Vai lá. – Apontou para a escada, esperando que eu subisse. Respirei fundo e fui subindo, degrau por degrau.

Um quarto, bagunçado, provavelmente de Elijah. O outro. O meu. Parei na porta, olhando-o por fora. Tive mais um flash.

Eu saia de um banheiro, enrolada num toalha. Kyu estava na minha frente, me viu daquele jeito. Corri de volta pro banheiro, gritando, enquanto ele se virava, corado.

Entrei no cômodo. Reconheci o banheiro da memória. E o quarto todo. Meu quarto. Meu. Minha cama estava arrumada, uma colcha vermelha cobrindo-a, meu notebook fechado sobre o travesseiro. Ao lado da porta, uma estante abarrotada de livros. E duvido que todos que eu quisessem estivessem ali. Tudo tão familiar, tão confortável. Sorri.

Ao menos daquele lugar eu conseguia me lembrar. Fiz um mapa na minha cabeça, para checar depois. Parei de frente para a janela, observando a rua. Lá na esquina, uma garotinha andava de bicicleta. Comecei a chorar.

Não só por lembrar da menininha do tiroteio. Mas por perceber quão sortuda eu fora. Sobrevivera aquilo. Sobreviveria à amnésia também.


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Notas finais do capítulo

Meio grande :p Obrigada por lerem!



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