Olhos De Dante escrita por João Marcos Oliveira


Capítulo 24
Sob Tortura




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[Tim]

Estava carregando a enésima peça do dia quando eles chegaram. O sentimento de fraqueza veio junto. Estava esperando um enorme massacre naquela hora, mas isso não aconteceu obviamente, isso é, se almas pudessem morrer. Só sei que aprendi o real objetivo deles e que, se fosse possível, morrer pela segunda vez seria uma dádiva, me exaurir dessa existência sórdida. Eles não dariam isso pra nós se fosse possível, não seriam tão bons e altruístas a esse ponto.

Os cogeres mais próximos me pegaram pelos punhos e deixaram a peça que carregava cair no chão. Olhei para eles, com aquelas máscaras expressivas e sem significado com alguns números aleatórios, e logo estava no chão com a face estendida no solo enquanto amarravam minha corrente a outras, sendo puxado por estas. A única coisa que pude fazer foi assentir que me carregassem e fui levado para um veículo negro e fechado.

O sentimento de derrota também veio forte, maior do que medo do que me aguardava. Não sabia para onde estava indo, mas sabia que eu não devia me ausentar daquilo que planejava. Todos meus planos se poriam as ruínas. E se todos tivessem o mesmo destino que eu? Não, bobagem, eles precisariam de mão-de-obra e tirar eles de lá por capricho só prejudicaria a eles mesmos. Sabia que precisava me acalmar e pensar duas vezes. Onde havia falhado? Não era nos intervalos, pois Aristis, nosso responsável pela sinalização sempre conferia se estava livre para os encontros ao soar o apito. Confio nele. O que seria então? Algum traidor? Quem trairia a própria causa? A que motivos? A menos que... Não... Um demônio camuflado de alma. Seria possível?

***

Saí do veículo ainda extasiado. A viagem fora longa e com ela havia tentado descansar e pensar nos motivos de meu arrebatamento. Não chegara a conclusões muito próximas, mas todas eram plausíveis. Meus erros. Deveria enfrentar com eles diretamente se possível. Ouvir o que tinham a dizer sobre nós. Por que? Não fomos tão maus assim em vida. Não é justo... Somos humanos. Estamos sujeitos a falhas. Por que condenar nossa própria natureza errática e usar isso a favor deles? Vivemos em mundos corruptos e desleais. Nenhum se salva.

Ao olhar para onde estava, notei que era bem diferente da área a que estava acostumado. Cogitei ser uma das piores áreas infernais para tortura. Um mar de magma se seguia adiante na minha visão limitada pela curvatura que deveria ter pelas correntes presas ao meu corpo. Lado a lado com o mar magmático, havia uma ilha, e com ela uma enorme torre de pedra escura.

Fui levado às forças, acorrentado inteiramente e amordaçado por algum tipo de material forte. Passamos pela ponte que unia a margem de terra à ilha de magma fervente onde estava situada a torre. O magma estava a centenas de metros abaixo do precipício, mas ainda assim podia sentir seu calor pulsante em meu rosto. A ponte, recente, estava balançando à medida que andávamos. Era incômodo fitar por entre as brechas das madeiras aquele fundo mortal.

Ao terminar de atravessá-la, quando olhei para a torre por inteira, vi que no fim, lá em cima, um halo luminoso a envolvia. Provavelmente uma abertura para o céu. A estrutura de pedra ocupava todas as proporções incomensuráveis da ilha. Não era só enorme em altura, mas em largura também era assustadora. O portão gradeado de metal em estacas se abriu vagarosamente, enquanto se levantava aliado a um sistema de roldanas e correntes, e, por ele eu vi a figura que se espreitava no interior, para meu pânico.

— Oh, Cérbero, se acalme. Só trouxemos mais um para sua morada — disse o cogere próximo a mim — Vai ser muito bem vindo.

O rosnado daquele monstro se tornava mais forte a cada vez que chegávamos mais perto. Assim que entrei pelo portão, empurrado pelos cogeres atrás de mim, olhei bem para o monstro que estava próximo rangendo os dentes de raiva. Suas três cabeças, nada simpáticas, se rebatiam de ódio e babavam a medida que andava pelo solo. Era como uma junção de três rottweilers gigantes, com chifres, outras deformações pela face e três rabos pontiagudos que acompanhavam o movimento de suas cabeças inquietas.

— O que vão fazer comigo? — gritei exasperado.

— Bobão, Cerbinho não faz mal a ninguém... — disse a cogere mais próxima num tom de brincadeira — Quando quer — completou.

Olhei para ela com raiva. Estava receoso de que o cão me devorasse ou algo do tipo, mas logo que chegamos perto de suas patas, a cogere ao meu lado assobiou e ele se mostrou dócil.

— Isso, garoto... — dizia ela passando a mão no focinho da cabeça do meio.

Passamos por volta de Cérbero e nos encontramos no hall da torre. Dezenas de escadas espiralares seguiam-se adiante, em círculo pelo recinto. Subimos uma escada lateral, a terceira da primeira fileira. A escada pedra nos levou a um segundo patamar escuro onde fui colocado em uma espécie de elevador antigo, e com uma manivela nos içaram com ele. A subida foi devagar, mas assim que o elevador parou, saímos de sua estrutura precária. O que eu estava vendo naquele momento, apesar da visão parcial, me assustou. Estávamos em uma sala vazia a não ser por um tanque de água enorme, onde fios e mais fios o envolviam. Fui empurrado pelos cogeres assim que retiraram minhas roupas e fui jogado ao tanque sem nem esboçar alguma reação. Estava absurdamente frio. Nem se pudesse fazer algo teria feito, depois de ver aquela criatura, vi que não estava em posição de fazer algo contra eles. Jogaram-me do modo como estava e fiquei lá, parado esperando afogar naquela água cinzenta. Percebi que não precisava respirar e que como morto, a sensação de respirar lá fora era a apenas um reflexo. Mesmo assim, mantive-me olhando para todos com o ódio expresso na face.

Com um controle remoto, a cogere mais próxima instalou os fios em mim. Eu me apresentei imóvel, não iria tentar desvencilhar-me daquilo, seria inútil e provavelmente pior se tentasse. Assim que os fios se acoplaram a minha pele, com ventosas, fitei-a mulher a minha frente. Seus cabelos ruivos longos por trás da máscara chamaram minha atenção. O número 476 visível em sua testa.

— 570 qual a relação dele com o atentado? — perguntou ao outro que estava mexendo em um painel no outro lado da sala.

— É o que descobriremos. Ele vai dizer uma hora ou outra.

Não entendi o que diziam. Não sabia sobre nenhum atentado, nem que relação eu deveria ter com isso. Após o pressionar de um botão, senti o que ele se referia.

A dor excruciante veio forte, retirando resquícios de minha alma. Eu vi pedaços de meu corpo se desfazerem e se reconstituírem em seguida. O sentimento era inenarrável, só o poder daquilo me fazia gritar como nunca havia antes gritado, tanto em vida como em morte. Pedi para que parassem, mas o grito estava sendo abafado pela água do tanque que se rebatia com meu corpo elétrico.

— Chega, acho que ele já sentiu o arrebatamento o bastante — disse a cogere.

— Está com dó? — disse o outro, desligando os aparelhos.

— Não, só vamos ouvi-lo primeiro.

E assim, ela veio até a mim, relutante, e retirou os fios do meu corpo com o controle. Ele diminuiu o nível da água para que pudesse falar. Mantive-me em pé, exausto, e ofegante ao encarar o que me pareceram ser três cogeres, parados me fitando. A de número 476 estava tremendo. Eu via sua mão recorrer por entre suas vestes até escondê-la sob o pano como a outra. Os outros dois cogeres pareciam normais diante daquela cena.

— Quem está por trás do atentado da estação? — perguntou-me o outro com a voz grossa e firme. Não sabia o que responder ainda, não fazia ideia do que estavam falando.

— Eu não... Sei... — as palavras saíram com esforço.

— É... Parece que teremos que recorrer ao nosso método de novo para que ele possa dizer algo. Suba o nível da água e religue.


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