Olhos De Dante escrita por João Marcos Oliveira


Capítulo 17
Deflorada




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[Alice]

A minha pior lembrança se fez vigorante em todo aquele trajeto. Não consegui compreender muito bem o que acontecia, pois ainda estava sujeita ao trauma de minha morte. Nunca tive muitos objetivos em vida. Riqueza? Nunca fui sonhadora, sempre mantive os pés enfincados no chão como raízes. Talvez sonhasse em ter um filho, um pequeno comércio, um marido que me amasse e a felicidade surgisse daí, da simplicidade. Mas não aconteceu nada do que planejava. Afinal, quem planeja morrer? Suicídio estava como uma das últimas coisas que poderia fazer em vida. Tinha esperança, e minha esperança não havia morrido até então, para carregar meu defunto junto a ela. Da maneira que morri ainda por cima, nem a pessoas mais sádica do mundo gostaria de ter sentido o que senti.

Na infância, fui uma garota simples, da periferia da cidade, moradora das favelas marginalizadas do Rio. Fui abordada pelo crime pela primeira vez quando meu pai foi morto por um traficante. Presenciei o crime ainda bebê, no berço. Depois disso cresci criada por minha mãe, que, batalhando duro, me viu tornar o que me tornei. No começo, como todas as mães, ela foi relutante em aceitar minha profissão, mas disse a ela que era o que eu realmente precisava fazer. Era o que tinha de ser feito. Não poderíamos continuar sofrendo e passando tanta necessidade se ninguém da família pudesse fazer algo. Ela era doente e vivia desempregada, mesmo que por vezes fizesse artesanatos para vender no comércio informal.

Saia do mercado cedo e deveria chegar em casa para me aprontar para o “outro trabalho”. Pode ser que para muitos tal ofício seja sujo e vulgar, mas era por ele que me mantinha viva e que tinha esperanças de mudança. Alice, 22 anos, prostituta.

A minha prostituição teve um motivo que não gosto de lembrar, mas que é importante para ressaltar minhas decisões. Desde a minha adolescência recebia comentários insistentes sobre minha notável beleza. Eu era uma flor rara naquele meio de perdição. Mesmo sendo a mais bela de todas, não me rendi aos prazeres da juventude tão fácil na época e me entreguei aos estudos inicialmente. Com 17 anos, porém, tudo mudou quando me apaixonei de verdade. No começo, achei que tinha arranjado o homem de minha vida. 10 anos mais velho, e mesmo assim, tão atencioso e doce com as palavras que qualquer outra mulher se renderia aos seus pés. Ele, um homem lindo, elegante, e para uma adolescente proveniente da favela, nem tudo era possível. Fui ingênua. O mesmo homem que retirou minha virgindade não se mostrou tão complacente com um futuro feliz. Eu estava grávida aos 17 e logo em seguida abortei uma vida.

Eu morri duas vezes.

Assim que o fiz, quando me lavei e deitei-me em minha cama, pensei sobre o que havia feito e a repentina culpa se fez em minha mente pesarosa. Tentei não levar o remorso por anos a fio, mas quando ficava sozinha, por vezes, me perguntava sobre a criança que eu poderia ter tido; como ela estaria, se se parecia comigo, mas isso eu não poderia ter o luxo de pensar, não com minha nova realidade. Decidi que teria uma vida tão suja quanto minha atitude.

Estava indo para meu ponto, atrasada, pois deveria chegar antes que fosse tomado por outras mulheres, que ficavam na esquina próxima, a procura de meus clientes. Quando fui parada por um sujeito que nunca tinha visto antes, ao sair de minha segunda viagem de metrô no dia. Achei que fosse mais um drogado querendo dinheiro e o ignorei, seguindo meu caminho apressada, mas assim que virei a primeira esquina, ele me segurou pelos braços bruscamente, tampando com suas mãos nojentas minha boca e amarrando-me com algum tipo de corda por entre o pescoço. O doente já tinha tudo planejado. Imaginei que não se tratasse de um caso de estupro seguido de morte comum, mas com ele foi mais do que um simples caso inescrupuloso de estupro quando reconheci o desgraçado. Túlio, meu ex-namorado.

Enquanto ele cobria minha boca, eu tentava gritar exasperada, torcendo para que alguém aparecesse àquela rua deserta, mas não foi o bastante para que ele me estrangulasse seguidamente com a corda. Fui asfixiada até perder a respiração e o desmaio se seguiu junto com minha vida desflorada. No meio do ato, acordei tonta e o encarei sobre mim. Estava com as roupas rasgadas e me encontrava em uma sala escura. Não fazia ideia de onde estava. A penetração dolorida se fazia rapidamente, e, enquanto gemia agoniada, tentava me soltar de seu asqueroso corpo colado ao meu com suor. Ele me arranhava. As unhas cravando em minha pele com força. Encarei em sua face um sorriso doentio, cruel. Ao tentar me soltar, mordi suas mãos que cobriam minha boca arrancando um pedaço de sua carne. Gritando de dor, pelo ferimento que o infringi, ele me prendeu pelo pescoço com seu braço, me enforcando novamente. Em seguida, jogou minha cabeça com força ao chão, emitindo uma sonora pancada.

Foi rápido e brando, mas o medo e o terror ficaram impregnados em mim mesmo após o fim. Achei que aquilo nunca fosse acabar, mesmo que tenham sido apenas alguns minutos, me pareceu a eternidade. E vendo o meu horizonte infernal agora, sei que para mim tanto faz, já que o que encontro à minha frente é o seguimento de minha triste vida. Minhas ilusões de mudança morreram comigo. Não tenho mais objetivos de existência.


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