A vendedora de guarda-chuvas e o filho do coveiro escrita por tamirsalem


Capítulo 6
Capítulo 5 - Abraços e guerras




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Um arrepio percorria-lhe a espinha, ele tremia, suava, indomável, murmurando besteiras sem sentido, de alguma forma leve, sem entender nenhuma das sensações humanas, naturais, irrevogáveis enquanto existisse, comuns até o presente momento. Cada movimento que realizava lhe era estranho, novo, incompreensível, enquanto a terra e a neve caiam sobre ele, enterrando-o na cova que supostamente deveria pertencer a Jacó. Seus olhos percorriam o ambiente, pulando do pinheiro, imponente, ao longe, para o céu de um marrom enlameado, apocalíptico, repleto de nuvens cinzentas bloqueando o mais ínfimo dos raios de sol, para depois focarem-se em uma cópia sua, acima da cova, movimentando a pá incessantemente, enterrando a ninguém menos que ele mesmo. Sua cópia estava ao lado de Hannah, que esperava fielmente a cópia terminar de cavar, exatamente como havia sido no enterro de Jacó. Isaac, a terra engolindo-o, tentou, desesperada porém inutilmente, alcançar a mão de Hannah e sentir aquela sensação revigorante, reivindicando a sua tão merecida humanidade à morte, que pairava sobre sua cabeça, para que pudesse viver seus últimos minutos mais confortavelmente.

E então, em um instante, a cova estava pronta e a face de Isaac paralisada para sempre com a mesma assustada expressão que Jacó ostentava quando morreu. O Isaac que havia lhe enterrado vivo inclinou-se sobre a cova e inscreveu no pinheiro, que, subitamente, havia retornado ao seu lugar original: “Isaac”.

Repentinamente a terra transformou-se num oceano, pútrido, da mesma cor que o céu, e Isaac afogava-se, seu corpo inexplicavelmente fora da cova. Ouvia a voz de Hannah, fraca, porém perfeitamente audível, claramente chamando-o, bradando o seu nome. Isaac estendeu sua mão novamente e Hannah alcançou-a, puxando-o para dentro do pequeno bote em que se encontrava, somente para, num gesto brusco e incompatível com seu comportamento habitual, agarrar sua cabeça pelos cabelos com violência e afunda-la na água, por vários minutos, sufocando-o lentamente, enquanto ele se debatia ineficazmente, perplexo, até subitamente sentir um último acesso de adrenalina, de incontrolável desejo de libertar-se e começar a se debater mais vigorosamente ainda, mesmo assim sem efeito nenhum, a pressão que a mão de Hannah exercia inacreditável e subitamente, Isaac simplesmente parou e mergulhou involuntariamente na água, inconsciente.

E então acordou, gritando com todas as suas forças, ofegando, assustado, tremendo violentamente. Tomou alguns minutos para respirar profundamente e relaxar, tentando controlar seus acelerados batimentos cardíacos. Isaac foi até a porta de casa e verificou que a noite ainda ia alta, sobrando-lhe bastante tempo para dormir, ou, no mínimo, descansar.

Havia se separado de Hannah após haver enterrado Jacó, depois do turbilhão inesperado de eventos daquele curioso dia, necessitando urgentemente de tempo para refletir. Chegaram à praça juntos, o braço de Hannah entrelaçado com o de Isaac, numa bela união, sua cabeça recostada confortavelmente em seu ombro. Despediram-se sem cerimônia; Hannah apoiou-se na ponta de seus pés para que ficasse da altura de Isaac, que era um palmo mais alto que ela.

“Aqui. Até, Isaac.” murmurou em seu ouvido, sorrindo.

Isaac somente balançou a cabeça em resposta, quase imperceptivelmente, e afastou-se, balbuciando um mal-formado “Até” no meio do movimento. Foram para direções opostas, ocasionalmente olhando-se pelos cantos dos olhos, seus olhares carinhosos encontrando-se por somente um glorioso instante, para depois separarem-se e logo mais se encontrarem novamente, prosseguindo com essa estúpida, porém meiga dança até saírem do campo de visão um do outro.

Isaac então foi à pequena mercearia, próxima ao cemitério, a única loja aberta quase todos os dias do ano, numa espécie de escravidão, cujos únicos funcionários consistiam no irmão do prefeito, de seus quarenta anos, careca, de olhar rígido, cínico porém gentil e em um rapaz de vinte seis anos, descompromissado, aéreo, alguém que pensava não pertencer ao espaço-tempo e que portanto não era afetado pelo ambiente ao seu redor, que achava que continuaria com aquela relativamente simples vida para sempre, sem jamais ter um real objetivo, algo com que se preocupar verdadeiramente., alguém livre das intermináveis correntes de preocupações que pareciam prender todos ao seu redor.

Isaac abriu a porta da mercearia, cujo sino tilintou, diversos aromas invadindo seu nariz de uma só vez, numa deliciosa mistura de cheiros. O jovem ressonava, sua cabeça apoiada no rústico balcão. Isaac, após um momento de hesitação, sacudiu-o levemente, tomando cuidado para não acorda-lo muito bruscamente, para evitar qualquer eventual incomodo que pudesse surgir com um susto.

“Hans. Hans. Hans!” ele chamou, inicialmente num tom de voz não muito alto, e depois gritando, visto a inefetividade de seus primeiros chamados.

Casualmente abrindo os olhos, Hans acordou e tomou um susto ao deparar-se com Isaac esperando impacientemente para ser atendido.

“Eh, olá Isaac. Sabe como é, eu trabalhei muito ontem, como sempre, então acabei adormecendo no balcão vista a falta de clientes e...” Hans disse, já totalmente consciente, justificando-se inutilmente, num tom deveras insolente para a embaraçosa situação em que se encontrava.

“Acha que caio nessa, Hans? Ora, quando é que você vai tomar jeito?” reclamou Isaac, subitamente aparentando muito mais idade do que seus meros 14 anos.

“Sabe nunca fui muito de trabalhar, diferentemente de tu, que começou aprendendo seu ofício quando criança e trabalha o dia todo no cemitério sem queixar-se, ao lado de teu pai. Mas deixemos isto de lado. Vai querer o de sempre?” respondeu Hans, esquivando-se das sensatas e aconselhadoras reclamações de Isaac.

“Duas barras-” Isaac começou, mas mudou de idéia, um generoso pensamento passando-lhe pela cabeça. “Três barras, por favor, Hans.” pediu-lhe, entregando o dinheiro, praticamente esgotando as finanças que levava consigo com um de seus viciantes prazeres, basicamente forçando-se a ter de escolher entre achar algum dinheiro que seu pai pudesse ter guardado ou então esperar que algum enterro aparecesse para que recebesse dinheiro.

Hans foi até a prateleira, guardando um pouco do pagamento para si sem que Isaac visse e colocando o resto numa caixinha, usada para guardar o lucro da mercearia.

“Cadê o senhor Jones?” perguntou Isaac, curioso por saber onde estaria o dono da mercearia, o único que conseguia fazer com que Hans andasse na linha.

“Não sei ao certo. Disse-me que ia resolver alguns assuntos pendentes e que quem tinha de abrir a mercearia era eu.” Hans respondeu, entregando-lhe três barras de chocolate amargo.

Isaac desembrulhou uma e começou a devorá-la vorazmente e deixou as outras no saco de papel que Hans havia lhe dado, indo para casa. Andava lentamente, e não lhe pareceu estranho que, ao chegar em casa, a noite já havia caído sobre a cidade, como sempre acontecia no inverno. Isaac despiu-se e botou sua simples ceroula, jogando-se na cama, a única coisa para forrar seu estômago sendo a barra de chocolate que havia comido antes de chegar em casa, e, como raramente acontecia, adormeceu imediatamente.

Ao acordar, despertando do tenebroso pesadelo, lembrara-se de cada movimento que havia feito antes de dormir com uma precisão assombrosa, porém sentia que tudo aquilo fazia parte de um passado distante. Notou que a noite ia alta e vestiu-se apressadamente, apanhando a roupa que havia jogado no chão de seu quarto, preocupado de certa forma. Não sabia com muita certeza para onde pretendia ir, somente sabia que tinha de sair depressa. Calçou suas botas e colocou um casaco leve, perfeito para as tardes invernais, porém excessivamente leve para as enregelantes noites de inverno. Apanhou a segunda barra de chocolate e saiu, indo para a praça, com a tênue esperança de que talvez Hannah estivesse lá, compartilhando de um medonho pesadelo como ele, ou talvez até de sua freqüente insônia. Chegando lá, ele olhou em volta, procurando Hannah, somente para sentar-se, solitário, no balanço, a admirar a Lua, como fazia ao ler em noites insones. Decidiu-se por ficar na praça até que Hannah aparecesse, achando sem sentido voltar para sua casa para esperar. Abriu a barra de chocolate lentamente, o barulho ecoando no silencioso vazio da etérea praça. Deu uma ruidosa mordida e levantou-se, levando a barra consigo. Apanhou alguns punhados de neve, mordiscando ocasionalmente a barra, guardada no bolso de seu casaco, mantendo-se em constante movimento para não sentir o frio noturno e pôs-se a realizar a árdua tarefa de construir um boneco de neve no meio da praça. A inércia combinada com o frio às vezes atingia-no com severidade, e Isaac sentia-se amolecer, porém logo se recuperava, tendo em foco o sem sentido objetivo. Não percebera a passagem do tempo e a alvorada já passara a algumas horas quando terminou de construir o boneco, que ficara sem face ou roupa devido a falta de recursos,os resplandecentes raios de sol tocando suavemente sua face; o calor retornava muito vagarosamente ao corpo de Isaac, e ele sentou-se na neve, a admirar sua rudimentar e simplória criação, sentindo-se orgulhoso com a estranha façanha por motivos que ele próprio desconhecia.

Isaac tinha de suas manias, objetivos incomuns que por um momento preenchiam o espaço de toda e qualquer preocupação, tornando-se sua raison d’etre completá-los, como acontecera dessa vez.

Ele mesmo não sabia explicar ester seus súbitos acessos de ferrenha dedicação e persistência, sempre cedendo a eles no momento em que apareciam.

“Belo boneco. Você que fez?” perguntou Hannah alegremente, um revigorante sorriso em sua face, amigavelmente zombando de Isaac.

Os músculos de Isaac enrijeceram e por um momento ele parou de respirar, surpreso com a repentina aparição de Hannah. Ela havia vindo discretamente por trás e abraçado-o pelo pescoço carinhosamente. Sentou-se ao lado dele, sempre sorrindo.

“Tão absorto em seu próprio mundo, quase como um autista...” Hannah sussurrou a si mesma e ao vento, um misterioso sorriso estampado em suas delicadas feições.
 “Passou a noite toda aqui, não foi?” ela perguntou, dirigindo-se a Isaac.

“Foi.” Isaac respondeu, um pouco envergonhado e melancólico.

“Parecia-lhe que talvez eu também estivesse aqui e quando você viu que não havia ninguém aqui um louco medo de morrer dormindo te invadiu e então você decidiu ficar aqui, acordado.” deduziu Hannah, marota.

Isaac olhou-a, sorrindo, estranhando como ela o lia tão facilmente apesar de se conheceram por somente um dia e algumas horas.

“Você chega a me assustar, Hannah.” Isaac disse, brincalhão, porém ainda um pouco melancólico.

Hannah fingiu-se ofendida e levantou-se bruscamente, deixando para trás um perplexo Isaac. Ela então virou-se para trás e atirou um punhado de neve em Isaac, gargalhando.

“Como você é bobo, Isaac!” gritou, apanhando mais um punhado de neve e preparando-se para arremessá-lo em Isaac.

“É assim, é?” retrucou Isaac, também preparando seu punhado de neve e levantando-se, consideravelmente menos melancólico do que antes, e notavelmente mais sorridente.

Hannah lançou seu punhado de neve e Isaac ajoelhou-se atrás de seu boneco de neve, fazendo com que Hannah não o acertasse novamente, entrando no clima da demasiadamente infantil porém saudável brincadeira. Ele jogou sua bola-de-neve, porém errou por muito devido a sua péssima pontaria.

“Daí não vale!” ela gritou, contra-atacando mais rapidamente do que Isaac pudesse prever, acertando sua cabeça em cheio, que ficara exposta quando ele atacara.

A neve atingiu-o com um estrondoso barulho e Isaac desmaiou, desabando ruidosamente.

“Isaac?” ela disse, visivelmente preocupada, após esperar ansiosamente que ele se levantasse por vários minutos.

Ele então arremessou sua bola-de-neve, que a acertou.

“Também sei jogar!” gritou, sorrindo de orelha a orelha.

“Ora, seu...” respondeu-lhe Hannah, totalmente imersa na brincadeira, começando a jogar neve incessantemente em Isaac.

“Mais rápido, Hannah!” desafiou Isaac, zombeteiro, mostrando-lhe a língua.

Ele começou a correr pela praça, desprotegido, esquivando-se, mais feliz do que jamais estivera, voltando ao saudoso e nostálgico tempo de sua infância. Ela correu até ele, agarrou sua mão e puxou-o em direção ao boneco de neve, derrubando-o de brincadeira em cima do mesmo, desmanchando-o de uma só vez. Isaac aterrissou na neve, que amorteceu sua queda; estava soterrado embaixo de várias camadas de neve provenientes do boneco, surpreso com toda a calorosa disposição para divertir-se das formas mais banais e extrair todo o proveito das mesmas que Hannah estava demonstrando, imperceptível por trás de sua elegante postura.

Isaac saiu de dentro da pilha de neve e jogou-se em cima de Hannah, começando a fazer-lhe cócegas como vingança pacífica. Ela gargalhava vigorosamente, tentando fazer-lhe cócegas do mesmo modo, porém sem sucesso devido aos seus convulsionados risos.

“Chega, Isaac!” ela reclamou, ofegante de tanto rir.

Hannah puxou Isaac e ambos se levantaram juntos, espanando a volumosa de neve de cima de suas roupas. Ele voltava lentamente à melancolia à medida que seus músculos amoleciam e o sono inundava-o, suas pálpebras entreabertas com o peso de uma noite sem dormir quase nada. O sol se punha, a luz entremeando-se pelos menores espaços entre as nuvens rosadas, o céu tingia-se das mais variadas cores, do sóbrio azul cinzento ao sangrento rubro alaranjado, um esplendor mutante, tudo mudando com cada minuto que passava, para, inevitavelmente, dar lugar a um céu estrelado e límpido, povoado de constelações totalmente nítidas, muito pouco ofuscadas pela luz artificial proveniente de sua cidade. Uma fresta de medo abria-se em meio à melancolia de Isaac, o de certa forma patético, porém perfeitamente compreensível medo de dormir sozinho em sua própria casa, onde havia recentemente morrido seu pai na calada da noite sem que fosse ouvido e de consequentemente morrer como ele. Isaac temia a solidão da morte como jamais temera e sem sequer notar soltara seu absurdo pedido, fruto de uma bizarra idéia que lhe ocorrera:

“Pode passar a noite comigo?” disse rapidamente, num tom de desespero, enrubescendo.

“Claro, claro, eu acho.” respondeu-lhe Hannah, ainda um pouco estarrecida, após um momento de reflexão silenciosa sobre o inesperado pedido de Isaac. “Você é mais alto e mais forte do que eu e ainda assim teme a morte como um tolo?” perguntou Hannah, recuperando sua compostura, misteriosa, exaltando sua falta de medo da morte implícita na sua pergunta retórica.

Abraçou Isaac pelo pescoço e deliciou-se com seus olhares incrédulos. Andaram juntos até a casa dele, ele aliviado e ela simplesmente feliz com a confiança depositada nela por ele. Isaac abriu a porta do agora somente seu casebre, que rangeu charmosamente. Isaac jogou-se na cama totalmente vestido, sem sequer cogitar a vergonhosa hipótese de colocar outra roupa. O pôr-do-sol já havia se transformado em noite com uma rapidez espantosa para as outras estações, porém esperada no inverno; Hannah deitou-se ao seu lado, a cabeça apoiada em seu tronco.

“Eu vou dormir aqui, posso?” ela murmurou docemente, fixando seus exuberantes olhos verdes nos mesmerizantes olhos azuis de Isaac.

“Por favor.” respondeu Isaac, felicíssimo.

Ele revirou seu bolso, sentindo um estranho vazio nele, lembrando-se da barra de chocolate que havia esquecido lá e que obviamente havia caído de seu bolso em algum momento da guerra de bolas-de-neve. Ligeiramente desapontado levantou-se, indo buscar a última barra de chocolate para que pudessem compartilhá-la. Apanhou a barra e deitou-se ao lado de Hannah novamente, desembrulhando a barra e recostando-se na cabeceira da cama. Hannah recostou-se também e quebrou um pouco da barra para que pudesse comer junto com Isaac.

“Amo chocolate amargo, Isaac, obrigado.” agradeceu Hannah, mais da metade da barra de chocolate forrando seu estômago, um largo sorriso estampando tanto sua face quanto a de Isaac.

Sem hesitar sequer um instante como lhe era usual, Isaac abraçou Hannah e beijou sua testa instintivamente, sentindo Hannah enrubescer levemente. O olhar de Hannah traia insegurança pela primeira vez, Isaac notara, uma espécie de timidez e também carinho e extrema felicidade. Ambos deitaram-se, suas cabeças nos travesseiros. Isaac adormeceu rapidamente, exausto, abraçando Hannah com os dois braços. Hannah beijou a bochecha de Isaac e fechou os olhos, esperando pacientemente o sono vir, confortável no abraço de Isaac, retribuindo-o com outro abraço, indiferente para os macabros acontecimentos que seguiriam a esses abraços.


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