Aconteceu Você escrita por Manuela Besaury


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Recomendo que leia ouvindo a música:
https://www.youtube.com/watch?v=oofSnsGkops

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Meus olhos queimaram quando entrei pela porta do ônibus e me deparei com você. Um sorriso involuntário surgiu em meu rosto e percebi que você retribuía. Desviei o rosto e fiquei séria novamente, passei pelas pessoas e tentei me esconder, ir para algum lugar onde não te alcançasse, porque me senti perturbada. Não sorrio para estranhos, mas havia alguma coisa em você. Algum brilho diferente que não é habitual ver nas pessoas. Me concentrei na música que ouvia, mas meus olhos me traíam, te procuravam por entre as pessoas e eu podia ver seus cachos refletidos pelo sol. Você levantou e ficou perto da porta, pronta para descer onde eu também desceria. Me olhou de volta, nos encaramos por alguns segundos, sérias. E alguma coisa em mim me dizia que aquele olhar deveria significar alguma coisa. E significava. Significava um pedido secreto para que nos encontrássemos novamente.

                Você andou na minha frente, descendo as escadas do terminal sem olhar para trás e eu te segui, não porque em algum momento criaria coragem e te abordaria, mas apenas porque fazíamos o mesmo caminho.  Diminui a velocidade dos meus passos e me afastei, deixei você ir e te perdi quando virou para subir as escadas novamente. E um desespero tomou conta de mim, comecei a me perguntar se teria perdido um desses momentos na vida que não voltam nunca mais.

                “Nós compartilhamos um momento que durará até o final”.

                Foi neste dia que algo nasceu dentro de mim, um pequeno ponto branco perdido na escuridão. Foi naquela troca de olhares que algo surgia, lentamente e com medo, dentro de nós. Eu sabia que estávamos conectadas desde o primeiro momento que nos olhamos, porque coisas assim são impossíveis de não perceber.

                Eu tinha essa estranha sensação de que já te conhecia. De que você, inteira, me era familiar. Mas se já te conhecesse, jamais te esqueceria. E eu não tinha um nome, um endereço. Apenas um rosto, que ficou embaçado conforme o tempo.

                Até nos vermos outra vez. Você estava com o mesmo moletom preto, as mangas dobradas até o cotovelo, e sentava largada com a mochila no colo. Parei de pé na sua frente, nos encaramos como quem se reconhece e o destino trouxe de volta o momento que eu teria perdido, apenas para que eu o perdesse outra vez. Eu estava disposta a te deixar escapar. Você se concentrou na janela, com o sol no rosto e os olhos estreitos. Reparei nas suas sardas, no seu nariz, na sua boca. E você me olhava de vez em quando. Desta vez, quando descemos do ônibus, eu fui na frente, quase correndo como de costume.

                Não consegui dormir aquela noite, nem a outra ou a outra. Evitei aquele horário e aquele ônibus. Ia um pouco mais tarde e andava duas quadras a mais para não correr o risco de te encontrar. Me perguntava se causava em você a mesma inquietação que você causava em mim.  

                E descobri que causava. Você se entregou da última vez que nos vimos. Eu conversava pelo telefone, enquanto esperava o ônibus, no mesmo terminal em que sempre descíamos e não olhei para os lados quando entrei. Me encostei perto da porta, tentando desligar o mais rápido possível, mas a pessoa gostava de falar.

                “Aham, aham. Tá bom... Tudo bem, tá. Eu entendi. Aham, tá bom. Sim, pode deixar. Eu já fiz, to voltando pra casa agora. Beijo. Tchau.”

                O ônibus parou em algum tubo e eu coloquei o celular no bolso, tentando olhar por entre as pessoas e ver onde eu estava. Eu te reconheci. Você estava meio de costas, pronta para descer, com o moletom preto outra vez. Uma parte de mim se desfez em alívio por pensar que você não me viu, a outra em desespero. Não consegui tirar meus olhos de você e quando menos esperava você virou o rosto, me encontrando, se surpreendendo ao perceber que eu te encarava. Algumas pessoas te empurraram e eu pude ver quando você saiu pela porta, olhando para trás, se prendendo em mim.  

                “E eu não sei o que fazer, porque nunca estarei com você.”

                Você se fora outra vez. Mas existem certas coisas que tem que acontecer e nós éramos uma delas. E foi naquele dia, amor. Eu estava parada de pé com dois amigos no Museu Oscar Niemeyer, em frente a uma parede de vidro. Segurava um copo na mão esquerda e batia a direita na perna toda vez que ria, dobrando os joelhos. Olhei para os lados e você novamente apareceu para atormentar meus pensamentos. Sorria para alguém ao seu lado, que parecia falar sem parar. A cada passo que dava se aproximava de mim, mas não vinha em minha direção. O riso morreu na minha garganta, os outros dois me olharam e se perguntaram o que acontecera.

                Aconteceu você.

                Você parou ao me ver. Ficamos as duas a alguns metros de distância congelada.

                Não havia então, nem ao longe, nenhuma outra voz. Estava ali, certo olhar conhecido, certo corpo encontrado.  Todos aqueles acasos eram uma preparação para esse momento e não havia nada além da paralisia. E a paralisia era a mágica. Pois não conhecia vozes ou manias.

                Mas isso durou apenas alguns segundos. Em um movimento brusco andava desajeitadamente quebrando toda essa distância, tornando olhares em realidade. Nossos lábios se colaram em uma tentativa de saciar “este anseio infinito e vão de possuir o que me possui”. E não era o suficiente. Eu te olhei e assim, tão de perto, parecia ser a primeira vez. Você se afastou, um pouco confusa, um pouco envergonhada. E continuou o seu caminho como se nada tivesse acontecido. A partir de então eu acordo todos os dias esperando que algum destino me cruze com você outra vez. Reconheço agora que quando me sinto afogar, o que me impede de respirar é amor. Apenas amor.

                Espero o horário que costumava te encontrar para ir embora e eu corro toda vez que algo me atrasa. “Se eu corro... Eu corro demais só para te ver, meu bem”. Infelizmente, nossos olhos nunca mais se encontraram.

                “E está na hora de encarar a realidade...”


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