era o seu coração na linha. escrita por zênite


Capítulo 1
os problemas que você criou em sua própria cabeça.




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Os problemas que você criou em sua própria cabeça.

X


E talvez tenha sido ali, naquele pedaço no meio do nada, aquele canto esquecido por Deus, em que eu tenha me perdido. Você entende, não entende, Remmie? Talvez eu só precisasse disso, de alguém que não virasse pra mim e me dissesse que eu era um escroto completo mesmo que eu, na verdade, seja isso mesmo até hoje. Alguém que mesmo sem saber meio sabendo me puxasse para as nuvens, por mais sem senso que isso possa parecer quando nós já tínhamos nossos vinte e dois anos e alguns quebrados.


Sabe, Remmie, sonhos são sempre tão idiotas, você sempre disse isso, e é tão irônico que chega a ser filho da puta como foi exatamente você que me fez acreditar que alguns sonhos foram feitos para se realizarem. Só alguns. Só você. Nada era perfeito, era tudo tão ruim, na verdade. Nosso apartamento tinha menos de quatro cômodos, porque aquela cozinha -sabe, a cozinha que você colocou fogo, que mal cabia um ser humano de um tamanho decente não pode ser considerada um cômodo, não um completo. O nosso apartamento tinha infiltração em lugarem que eu nem imaginava ser possível, o nosso colchão tinha a mesma macies que o chãoem que os mendigos lá de frente dormiam. Os mesmos mendigos para quais você deu todas as nossas compras do mês porque estava irritado comigo, naquele mesmo mês em que tivemos que pedir comida pros vizinhos.


Eu te odiei tanto aquele mês por isso. Mas eu te odiei tantas vezes que é incontável, chega a ser ridículo, patético, como eu te odiava. Como nos odiávamos. Como nos amávamos. Como tudo é tão no passado. Lembra, Remmie, de quando você colocou fogo na nossa minúscula cozinha, de como o inquilino queria nos colocar pra fora dali a ponta pés. Mas nós já estávamos tão fodidos que ele ficou com pena, eu ficaria também se estivesse no lugar dele. Nós estávamos tão sujos, você tinha justamente queimado o canto da sobrancelha e isso parecia tão patético. Mas nós rimos, rimos porque sabíamos que não teríamos dinheiro para consertar aquilo -mal tínhamos dinheiro para comer, e que a nossa cozinha tinha ganhado uma nova coloração preta, cor de carvão, sabe? E que era amar ou odiar, e que era muito mais fácil amar. E nós já tínhamos problemas de mais para odiar.


Eu queria bater em você naquele mês de novembro, tudo estava tão frio, tão escuro. Tão escuro justamente porque você havia esquecido de pegar a maldita conta de luz. Nós eramos tão fodidos que eu sempre pensava: Como caralho nós achamos que isso ia dar certo? Mas logo eu enterrava isso em algum canto empoeirado, onde colocamos as coisas que nós não queremos lembrar,coisas inúteis. E essas coisas ficam lá, naquele canto empoeirado em baixo do tapete felpudo, o problema é que elas continuam lá, enterradas, só esperando o momento x, o pior momento, para vir a tona.


Mas eu enterrava, eu as enterrava milhões de vezes, eu as enterrava quando nós praticamente passávamos fome porque aquele emprego é um lixo e paga muito mal. Enterrava quando você surtava e praticamente me tacava em uma bela queda com o chão do lado de fora, aquele perto da nossa janela. Enterrava quando tinha que subir cinco lances de escada porque elevador é um luxo ao qual nós não tínhamos direito, não pelos poucos wons que pagávamos por mês naquele fim de mundo. Enterrava bem lá no fundo, bem embaixo daquele tapete desprezível.


Eu enterrava porque sabia, nós sabíamos, que se não enterrássemos nós nunca iriamos querer olhar na cara um do outro. E, por todos os Deuses, eu detestava mais essa ideia do que a ideia de subir cinco lances de escada com você nas costas. Lá no fundo, eu sabia, eu sempre soube, que quando chegasse lá em cima, bem lá em cima mesmo, seria um apartamento minúsculo, uma cozinha carbonizada, um colchão duro, água e gelo na geladeira, mas seriamos eu e você. Seriamos eu e você apertados em uma cama pequena, um colchão duro, com um cobertor que te dá alergia, mas seríamos eu e você.


Eu sempre fui tão ferrado, que eu nem podia te conhecer de um jeito um pouco mais normal, entende. Normal. Até hoje me pergunto o que diabos você viu em mim, o nosso primeiro encontro tinha tudo, tudo mesmo, para fazer você ir correndo embora, pra bem longe sabe, Remmie, eu teria ido. Talvez você já fosse tão fodido que não se importou. Não se importou com o fato de nada dar certo naquele primeiro encontro, de como chovia pra porra, de como aquele ponto de ônibus parecia pequeno, de como os ônibus resolveram entrar de greve de última hora e nós não tínhamos a menor ideia de que ele não passaria nunca. E como nós ficamos lá, mofando, até você virar e perguntar se eu queria um café. E foi tão estranho porque eu não tinha um won, e eu sempre fui tão honesto que eu tinha que responder isso. Mas você sorriu, e você era tão lindo. Você é tão lindo. E disse que pagaria. E nós fomos, e não tinha uma cafeteria aberta. E nós comemos um sorvete, e ainda chovia, e fazia frio. Mas nós comíamos sorvete. E o meu molhava, porque a nossa sombrinha havia voado e nem os Deuses sabiam onde ela havia ido parar. E tudo parecia perfeito. Mas não era. Só não importava.


E importou tão menos ainda quando você se jogou no meio da rua e gritou com todas as forças o quanto odiava o governo. Nós quase fomos presos. Nós quase fomos presos tantas vezes, Remmie. Nós chegamos a ser presos uma vez, mas estávamos tão acostumados com a falta de conforto da nossa própria casa que aquila cela não pareceu tão ruim. Você havia chutado um guarda, chutado. Eu ainda não sei porque eu fui em cana junto, só sei que estávamos em uma cela. Mas estávamos juntos. E pra mim isso não era tão ruim.


E o que há de tão ruim em nós? Tirando o fato de que nenhum de nós sabia nem ao menos fazer um bolo pré-pronto, ou fazer um macarrão instantâneo sem deixar que ele virasse uma papa para bebê intragável, ou secasse o caldo até virar um troço preto carbonizado e sem gosto. Mas nunca foi ruim, de verdade, era ruim, claro, era ruim não ter comida, sentir frio, trabalhar para morrer, mas de fato não era ruim. Não era ruim, Remmie, porque eramos nós. Mesmo sendo um nós desprovido de qualquer chance de dar certo, eramos nós. E agora eu estou aqui, sentado no chão no centro do nosso apartamento de cozinha carbonizada esperando que você perceba o quanto foi um cretino escroto e resolva subir aqueles cinco lances de escada, sabe, Remmie, aqueles que eu subia quase todos os dias com você nas costas.


E é escroto como eu tenho certeza que não vai ser nem vinte e quatro horas antes de você bater naquela porta. E é filho da puta como isso tudo acontece no mínimo uma vez por mês. Mas talvez só seja pra ser, por mais que você deteste falar que só é pra ser, porque você não acredita nesse tipo de babaquice. Mas você é babaca, você é daquele tipo de babaca por quem garotinhas de colegial suspiram, e é do tipo de babaca que é ótimo de cama. E talvez nossa história pudesse virar um conto, daqueles em que temos um babaca e outro babaca que no final ficam juntos e felizes para sempre, só que dessa vez com um toque a mais especial, porque é humanamente impossível que alguém seja tão fodido como nós somos.


E talvez mais impossível ainda isso isso dê certo, mas talvez só seja pra ser.


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Notas finais do capítulo



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