A noite cobria profunda e escura toda a costa de Pedra do Dragão, sem nenhuma estrela brilhando, mesmo que fosse tímida e minimamente, no céu e não havia lua... Não havia luz, assim como se mostrava escuro o futuro e uma tempestade parecia prestes a desabar sobre o castelo, como a guerra os estava ameaçando... O mar batia zangado nas rochas e era o som mais alto e sinistro que se ouvia, ecoando pelos corredores e salões, junto ao vento que sacudia as vidraças, com seu som fantasmagórico, tremendo as chamas crepitando nas lareiras, fazendo sombras gigantescas dançarem pelas paredes, como almas penadas voltando do outro mundo...

            Rhaegar estava sentado em uma poltrona diante da lareira principal do grande salão e parecia ter envelhecido dez anos desde manhã, seu rosto estava pálido e inexpressivo, seus olhos estavam opacos e vazios, seus ombros se curvavam como se carregasse um enorme peso sobre eles, muito maior do que o príncipe suportava.

            Ele vira suas últimas esperanças voarem longe de suas mãos e agora tentava desesperadamente encontrar outra saída...

            Desde que fugira com Lyanna de Harrenhal, o reino enfrentava um colapso apocalíptico sob o terror de uma nova guerra explodir entre o príncipe dragão e Robert Baratheon. Se fosse um confronto entre os dois pelo amor da donzela, Rhaegar estaria disposto a lutar até que um dos dois estivesse morto... Mas Robert não estava satisfeito em tirar-lhe a felicidade de viver aquele romance ou até mesmo sua vida... Não, ele queria que todo o reino sofresse, muitas pessoas morressem, muitas famílias fosse destruídas... Para que o príncipe presenciasse seu povo sofrendo porque ele decidira seguir seu coração... Para que ele não pudesse fazer nada diante da vingança do outro...

            Sua estratégia para tentar impedir aquela guerra era convencer Lorde Rickard Stark, pai de Lyanna, de que sua filha não estava sendo mal tratada e que uma guerra não a levaria para casa... Talvez o Senhor Protetor do Norte pudesse frear as insanidades de seu arqui-inimigo...

            O pai de sua amante tinha sido irredutível durante suas investidas iniciais para conversar, mas tinha concordado num encontro em Porto Real, talvez por se sentir mais seguro do que em Pedra do Dragão... Mas ele fora para o encontro dos dois muito mais cedo do que o combinado e fora recebido pelo rei Aerys... Pelo louco rei Aerys... E fora morto pelo rei-louco no grande salão do trono, antes que o príncipe pudesse chegar, diante de toda a Guarda Real e o filho mais velho de Lorde Rickard, Brandon Stark, que também foi morto naquele mesmo salão...

            E Rhaegar perdera sua última oportunidade de remediar a situação que havia causado e impedir que os reinos sangrassem por seu amor... Impedir que alguém perdesse a vida pela escolha que fizera... Agora o preço se tornara ainda mais alto do que o inicial, porque as primeiras mortes não só tinham sido dos chefes da Casa Stark, o que endossava o motivo de Robert e do irmão de Lyanna, como tinham acontecido do lado dele, como se estivesse incitando a guerra, ao invés de impedi-la...

            Nada mais podia ser feito... O príncipe teria de olhar nos olhos de sua decisão e enfrentá-la como homem, de espada na mão... Teria de lutar e não podia ser nobre nessa batalha como costumava ser nos torneios, nas justas, como foi quando venceu em Harrenhal... Teria de ser frio e calculista se quisesse vencer ou os reinos sangrariam... Tinha de ser certeiro ou aquilo ganharia uma proporção muito maior e destruidora do que queria... As dimensões que Robert Baratheon desejava!

            Pior do que enfrentar o gordo e desprezível adversário nos campos de batalha era ter de encarar Lyanna, tendo sido responsável pela morte de seu pai e de seu adorado irmão... Rhaegar temia que ela agora o odiasse... Que o culpasse pela loucura de seu pai... Que visse nele um prelúdio de um rei tão louco quanto o que ocupava o trono agora, que matara metade de sua família a sangue frio...

            O maior medo do príncipe era justamente esse: ter a mácula! Todos diziam que, quando um Targaryen nascia, os deuses jogavam uma moeda para o alto e isso decidiria como suas mentes funcionariam... Seu pai nem sempre fora louco, mas desde cedo já apresentava ter a mácula e ele temia que nele apenas estivesse demorando a se manifestar... Temia um dia deixar pra trás seus pensamentos claros e suas decisões lúcidas, deixar pra trás o Rhaegar e se tornar um novo rei-louco...

            - Rhaegar? – ele ouviu uma voz feminina atrás de si e virou a cabeça minimamente.

            - Elia – ele sorriu seu costumeiro sorriso entristecido e a dornense se aproximou e se sentou ao seu lado. – Você não devia ficar se cansando! E se piorar? Tem de ficar de repouso!

            - Eu queria saber se você está bem... – ela sorriu, ternamente, apertando a mão dele, que estava pousada sobre o braço da poltrona próxima a ela, entre as suas.

            - Tudo o que eu não queria aconteceu, Elia! – ele respondeu, desesperado.

            - Eu lhe disse que amar era como pular de um penhasco... Mas acho que nem eu poderia imaginar que o preço que você e Lyanna pagariam teria de ser tão alto... – ela confortou-o, serenamente. – Eu sinto muito, meu amigo!

            - Por que eu não podia amar apenas você, não é mesmo? – ele se lamentou e a garota apenas riu. – Acho que não nasci para ser feliz...

            - Não diga uma coisa dessas! – ela o repreendeu. – Coisas boas também lhe aconteceram! Nossos filhos! Nossa amizade! O amor de Lyanna! Mesmo que tudo tenha acabado assim, não despreze a felicidade que lhe foi dada!

            - Perdoe-me – ele sorriu, beijando as costas das pequeninas mãos de Elia. Ela sempre tinha as mãos muito frias, ao contrário das dele. – Você tem razão, como sempre!

            - O que está pensando em fazer?

            - Preciso direcionar a mira de Robert para Porto Real... Trazer minha mãe pra cá com Viserys e deixar todos vocês a salvo...

            - Acha sensato deixar todos nós em um só lugar? Ele não parece querer só uma luta, Rhaegar... Ele parece pronto pra te fazer sofrer... Tenho medo por nossos filhos!

            - Eu também – ele concordou. – Tinha pensado em mandá-los para Dorne, mas será o primeiro lugar em que você procurá-la... A família de Lyanna já pagou caro por meus erros, não quero que a sua sofra o mesmo fim...

            - Então, mande-a pra lá! Não estarão esperando encontrar Lyanna em Dorne!

            - É uma boa ideia – ele concordou, pensativo. – Se ela concordar...

            - Acha que ela não concordaria? É para a proteção dela!

            - Eu não seu o que está passando pela cabeça dela agora... Deixei-a com sua dor, sem pressioná-la, para que ela decida o que quer de mim agora... Eu não a culparia se ela quisesse partir...

            - Isso não impediria mais a guerra...

            - Eu sei... Mesmo assim... – ele tornou a curvar os ombros, infeliz.

            - Acho que não devia deixá-la sozinha nesse momento tão difícil! Ela precisa do seu apoio mais do que nunca!

            - Elia, meu pai matou o pai e o irmão dela! Eu sou a última pessoa que ela deve querer ver!

            - Seu pai não é você! Ela sabe disso! Você estava tentando fazer o que era certo!

            - Eu falhei! Fazer o certo nunca foi meu ponto forte... – ele se lamentou.

            - A vida não é feita só de acertos, Rhaegar! Mas também não é feita só de erros! Nós dois sabemos bem disso! Nós dois seríamos um erro, mas Rhaenys e Aegon foram nossa salvação! Ela ama você e você a ama! Pare de ficar se lamentando e vá ficar do lado dela! Lyanna perdeu o pai e o irmão, mais do que nunca, ela precisa da sua força! Seja o homem por quem ela se apaixonou!

            - Sim, querida! – Rhaegar sorriu minimamente e se levantou. – Quer que eu a leve para o seu quarto?

            - Não – ela sorriu, amavelmente. – Vou ficar mais um pouquinho aqui, perto do fogo. Depois eu subo! Prometo que vou devagar!

            - Se precisar de ajuda, peça, viu, Elia?

            - Eu pedirei!

            Ele se dirigiu para as escadas e subiu até o quarto de Lyanna. Encontrou-a deitada na cama grande sob o dossel de prata, sobre as almofadas de cetim dourado, parecendo uma pintura. Seus olhos estavam fixos no céu negro e tempestuoso, distantes.

            - Lyanna? – ele chamou-a, fazendo com que a garota o olhasse. Seus olhos estavam vermelhos, seu rosto pálido marcado por onde muitas lágrimas já tinham escorrido, ela deu um sorriso triste, como os que ele costumava dar e se sentou no colchão, chamando-o com o olhar para se aproximar e se sentar ao seu lado.

            O príncipe se sentou e fitou-a longamente, em silêncio, sem encontrar as palavras que queria dizer. A garota puxou as mãos dele para as suas e segurou-as com força, surpreendendo-o.

            - Meu amor, eu nem sei o que lhe dizer... – ele quebrou o silêncio que tinha se instalado no quarto. Ela assentiu, com lágrimas brotando instantaneamente de seus olhos. – Você não merecia uma dor assim...

            Lyanna se aproximou mais dele e se sentou em seu colo, sendo abraçada em seguida.

            - Eu não queria que ninguém sofresse por nossa causa... – ela disse, numa voz baixinha e chorosa. – Não queria que eles... Se eles tivessem aceitado vir até aqui ao invés de Porto Real, nada disso teria acontecido... – ela afundou o rosto no peito dele.

            - Ninguém podia imaginar que meu pai... – ele fez uma pausa, suspirando pesadamente. – Que o louco rei Aerys faria uma coisa dessas... Sem motivo nenhum... Lyanna, me perdoe!

            - Você não é culpado pelos atos do seu pai, meu amor! – ela segurou-lhe o rosto entre as mãos, carinhosamente, fazendo-o olhá-la nos olhos. – Você não é culpado e mesmo assim terá de enfrentar as consequências pelo que ele fez... Como podíamos esperar um fim tão injusto para o que fizemos?

            - Eu estava conversando com Elia e ela acha que será mais seguro pra você ficar em Dorne quando a guerra estourar... Ninguém vai procurá-la lá... – os olhos de Lyanna se encheram de horror.

            - Eu não posso! Rhaegar, eu tenho de falar com meu irmão! Eddard entenderá! Eu explicarei tudo a ele, direi que fugi com você... Que seu pai fez tudo da própria cabeça! Você... Você não pode ir pra guerra!

            - Mesmo que seu irmão escute, Robert não vai desistir da guerra, Lyanna, não mais... Já não é por nossa causa... Ele me quer morto, não vai mais escutar a ninguém...

            - Ele tem de ouvir! – a garota disse, parecendo desesperada. – Rhaegar, eu... Eu estou grávida!

            O príncipe sentiu como se uma avalanche de sentimentos passasse sobre ele. Seu coração disparou de alegria e medo e era como se o chão tivesse sumido debaixo dele... Ele sentia a felicidade de ter um filho com o amor de sua vida e o peso de que era mais um precioso tesouro que ele não sabia se conseguiria proteger... Como se um sino badalasse dentro de sua cabeça, ele podia ouvir uma voz ecoando sussurrada: o terceiro dragão... O terceiro dragão...

            - Meu amor, eu preciso manter você a salvo, você e nosso filho! Eu não posso arriscar sua segurança! Em Dorne, você vai poder passar os meses de gravidez tranquila!

            - Longe de você? Enquanto você trava uma guerra? – ela o desafiou. – E quando ele nascer, como vai ser, Rhaegar?

            - Eu não tenho escolha!

            - Se eu falar com meu irmão, talvez você nem precise lutar...

            - Sua família terá de vingar a morte do seu pai e se irmão, Lyanna... E, mesmo que eu não concorde com o que meu pai fez, não posso deixá-lo desamparado, você entende? Ele ainda é meu pai... E se eu lutar, ainda posso remediar essa situação... Posso fazer com que essa guerra dure o mínimo possível...

            Ela tornou a afundar o rosto no peito dele e os dois ficaram em silêncio, enquanto ela chorava cheia de angústia e de dor. Tudo o que ele mais queria era que os dois pudessem fugir pra longe de tudo e serem felizes... Mas a felicidade era um sonho de primavera e o que ainda os espreitava era o inverno...

            - Vou conversar com Jon... Bolar um plano pra que você possa ser levada pra Dorne sem chamar a atenção de ninguém...

            - Mas Lorde Connington não vai querer estar ao seu lado quando estourar a guerra?

            - Sim e com certeza estará, mas eu não confio em mais ninguém além de Jon pra protegê-la... Eu confiaria minha vida a ele!

            - Então, também confiarei! – Lyanna tentou sorrir e os dois uniram as testas, de olhos fechados. – Eu só lhe peço que me deixe por aqui o máximo que puder, pra que eu possa estar ao seu lado!

            - Eu prometo, meu amor! – ele se levantou da cama lentamente, segurou o rosto de Lyanna entre suas mãos e uniu os lábios dos dois, apaixonadamente. Depois deixou um beijo no ventre dela, fazendo-a sorrir e algumas lágrimas voltaram a saltar de seus olhos. – Vou procurar Jon. Volto pra vê-la mais tarde!

            - Está bem – ela jogou-lhe um beijo, vendo-o atravessar a porta e fechá-la.

            Quando se viu sozinho, Rhaegar encostou-se na fria parede de pedra do corredor e deixou o desespero dominá-lo, segurando o rosto com ambas as mãos. Não havia nada que ele pudesse fazer pra proteger aqueles a quem amava... Temia que tivesse chegado ao ponto em que nem mesmo sua vida conseguiria proteger...

            O assovio do vento parecia aumentar gradativamente, como um agouro de morte, como se profetizasse que tudo teria um fim e o príncipe dragão sabia exatamente qual seria... Mas ele tinha de ser forte e enfrentar seu destino, mais do que nunca, porque esse era o seu papel naquela história, naquela canção... Sua hora de sair de cena tinha chegado, mas ele não sairia sem lutar e lutaria mais do que nunca... Por seus três filhos, pelo futuro deles e principalmente pela promessa que o nascimento deles trazia: ressurreição!

            Ele olhou para fora, para o céu enegrecido que despencava em milhares de gotículas de água, dando um contorno macabro ao futuro que agora ele podia enxergar... Sempre buscara em seus livros as respostas e agora que as via diante de si, tudo parecia tão óbvio e tão despido de belezas... Mesmo assim, ergueu a cabeça e inspirou fundo, recomposto, decidido... Elia tinha razão, ele tinha de ser grato por toda felicidade que lhe fora dada... Aquela era sua triste canção... Sua triste canção de gelo e de fogo... Do amor ardente que sentira por uma loba do Norte... Mas sua canção chegava ao fim e uma nova começaria...

            - O dragão tem três cabeças!