Negrinha escrita por Sir Death


Capítulo 1
Negrinha


Notas iniciais do capítulo

Antes de mais nada, eu gostaria de avisar que essa fic está na categoria originais apenas enquanto a opção "Negrinha" não é adicionada às demais categorias, consertarei isso assim que possível.

Obrigado pela atenção e boa leitura,
Sir Death.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/398360/chapter/1

~ Negrinha ~

No espelho via-se a imagem de uma criança pobre, pele negra e cabelos ruços. Apenas sete anos de idade, mas já com olhos assustados de uma vida miserável. Nome? Não tinha. Havia apenas alguns apelidos, o mais usado: Negrinha. Era assim que me chamavam.

Contaram-me, tenho como verdade, que nasci na senzala. Filha de escrava, passei meus primeiros anos de vida rastejando pelo chão da cozinha sobre lindas esteiras e trapos imundos. Mantinha-me longe da vista da patroa, mulher boa, odiava a felicidade alheia, principalmente a de criancinhas como eu.

Lembro-me do ranger da cadeira de balanço, onde a patroa entalava suas banhas para bordar, colocar os assuntos em dia com suas amigas ou mesmo receber as visitas do vigário. Bem alimentada e rica, devota que só ela, reservava um banco na missa e comprara uma mansão no céu. Segundo o próprio reverendo, “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, não que eu soubesse o que isso significava.

Como dona Inácia era boa. Mas era tão miserável, viúva e sem filhos, como poderia ter o coração macio se nunca soubera o que é ser mãe? Explicado então por que não gostava do choro de criança, daí também o motivo para minha tristeza reprimida, mal começava a derramar lágrimas no meu cantinho e logo ouvia um grito:

— Quem é a peste que está chorando aí?

E quem havia de ser? Quem mais poderia emitir sons tão irritantes? Eu, é lógico. Mamãe logo vinha ao meu encalço e me arrastava aos beliscões pelo quintal, sempre dizendo:

— Cale a boca, diabo!

Tão complacente, a minha mãe. Realmente era minha a culpa por chorar. Jamais seria a falta de comida ou mesmo o frio insuportável que me fazia encolher os dedos.

Assim desenvolveu-se aquela imagem no espelho: macérrima e atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Minha mãe morreu quando eu tinha quatro anos, levando consigo o resquício de proteção que podia me servir. O que exatamente se passava na cabeça dos humanos? Por que me perseguiam com tanto afinco? Quer eu fizesse algo, quer eu fizesse nada, sempre estavam prontos para baterem em mim. Algo que eu falasse ora era digno de risos, ora de castigos. Qual era a lógica de tudo isso?

— Sentadinha aí, e bico, hein?

Aquelas agradáveis palavras eram o que me impediam de praticar algo que aprendera fazia tempo, andar. Não podia ter o mínimo de liberdade e logo era repreendida. Punha-me num desvão da porta, estática.

— Braços cruzados, já, diabo!

Por horas eu ficava ali, parada, observando o tempo, assustada. O relógio batia as horas e trazia a única coisa que me distraia naquele cenário, um lindo cuco. Ria-me por dentro quando saía pela janelinha e cantava enquanto arrufava as asas.

A vida com certeza não era fácil, mas o que eu podia esperar? Era uma serviçal, uma escrava (mas a escravidão já havia sido abolida), uma coisa que tinha por única função atender aos pedidos da patroa.

Aliás, a patroa e os outros funcionários eram muito atenciosos, sempre criavam novas maneiras de me apelidar. Era cada nome que aparecia: pestinha, trapo, diabo, cachorrinha, barata descascada, coisa-ruim, coruja, pata-choca, lixo, pinto gorado, bruxa, mosca-morta, sujeira, bisca... Bubônica, que lindo nome, não sabia o que significava, mas era tão sonoro, pena que pararam de me chamar assim.

À noite, antes de dormir, acariciava-me e sentia aquelas dolorosas marcas. Marcas de carinho e atenção. Sempre que possível alguém vinha e massageava meu corpo com beliscões e cascudos.

Falando em me espancar, dona Inácia tinha mestrado e doutorado. Fora senhora de escravos e nunca aprovou o regime novo. Realmente, quem pensou nessa de negro ser igual ao branco? Coisa mais errada não poderia existir.

Nem 13 de maio conseguiu deter o desejo da patroa, afinal lá estava eu, a serviçal negra e alvo de todo tipo de judiação.

— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...

Dona Inácia conhecia toda a gama de cascudos e beliscões. E quem disse que isso era suficiente para acalmar-lhe os ânimos? Sempre haveria aquele desejo de relembrar os velhos tempos e vez ou outra ela tinha a oportunidade de fazê-lo. Foi assim no dia do ovo quente.

Ah! O dia do ovo quente! Maldito seja o dia em que não me calei. Uma criada nova roubara um pedaço de carne do meu prato. Sem pensar duas vezes chamei-lhe por um dos meus apelidos. Por que meu Deus? Por quê?

— “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste.

A criada foi contar tudo para dona Inácia. A patroa abriu um largo sorriso, estava incrivelmente necessitada de momentos nostálgicos. Levantou-se da cadeira e carregou suas banhas até a cozinha.

— Eu curo ela! Traga um ovo.

E veio o ovo. Dona Inácia colocou-o para ferver. Ficou parada olhando para meu rosto assustado. O sorriso sádico indicava o quão terrível seria o castigo. Meu corpo tremia temendo o desconhecido. O ovo chegou a ponto e a boa senhora chamou-me:

— Venha cá! — aproximei-me temerosa — Abra a boca!

Abri. Fechei os olhos. Ouvi o tilintar da colher na panela e o borbulhar da água fervente.  De repente, uma dor indescritível fez-se sentir na minha boca. Como uma brasa, o ovo queimava tudo. Pensei em gritar, em cuspir o instrumento de tortura, mas as mãos da patroa me amordaçavam. O urro saiu pelo nariz, abafado. Esperneei. Grande coisa! Nem os vizinhos perceberam esse caso!

— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?

Fiquei lá, largada no chão, contorcendo-me em dor. Enquanto dona Inácia voltava ao trono para receber o vigário.

— Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária — mas que trabalheira me dá!

O vigário provavelmente não ouvia os meus gemidos.

— A caridade é a mais bela das virtudes cristãs, minha senhora.

— Sim, mas cansa...

E a servidão machuca.

— Quem dá aos pobres empresta a Deus.

Deus não gostaria do ovo cozido.

— Inda é o que vale...

Mas o tempo passou. E certo dezembro vieram hospedar-se na casa da dona Inácia duas aparentadas dela. Dois anjinhos, pequenas garotinhas louras, ricas, nascidas e criadas em berço de ouro.

Sentada no meu cantinho da sala, pude ver o momento de sua chegada, correndo e pulando, rindo como filhotinhos. Voltei rapidamente meu rosto para a patroa, crente de que a veria pronta para aplicar os mais terríveis castigos. Mas qual não foi minha surpresa quando vi a senhora rindo? O que estava acontecendo? Quando as regras mudaram? Divertir-se não era mais pecado?

E de ingênua eu só não tinha os olhos assustados. Levantei-me num salto e tentei juntar-me à brincadeira. Mas veemente fui repreendida com as palavras de sempre.

— Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga?

Ah! Esqueci-me do que era. Um lixo, uma ninguém. Uma forte dor arremeteu no meu coração, uma dor diferente das outras, não era física, mas machucava como se fosse. Mais uma para o catálogo. Recolhi-me ao meu cantinho chorando.

— Quem é, titia?

— Quem há de ser? — fez-se vítima — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora.

Brincar... O que seria isso mesmo? Talvez aquilo que só as crianças humanas pudessem fazer. Já sonhara brincando, mas minha imaginação restringe-se a divertir-me com o cuco do relógio.

As malas chegaram.

— Meus brinquedos!

Uma criada abriu as malas e despejou os brinquedos.

Meu Deus! O que era aquilo? Quanta coisa colorida! Um cavalinho, um cavalo de pau! Tudo era maravilhosamente chamativo, mas algo conseguiu sobressair-se na pilha de brinquedos. O que era aquilo? Uma criança? Fala mamã... Dorme...

Meus olhos arregalados observavam a cena tentando compreende-la, sabia que não era de verdade, mas, então, o que seria?

— É feita?

Perguntei. Aproximei-me lentamente das garotas. Não lembrava nem da patroa e nem do ovo. Minha atenção era integral da criança de mentira.

— Nunca viu boneca?

— Boneca? — as garotas pareciam admiradas comigo — Chama-se Boneca?

— Como é boba! — riram — E você como se chama?

— Negrinha — respondi acanhada.

Os anjos riram novamente, mas logo pararam e me convidaram para brincar.

— Pegue!

O quê? Pegar? Elas queriam brincar comigo? Eu poderia brincar? Meu coração batia forte, quase saindo do peito. Peguei temerosamente a boneca e sorri, vez ou outra olhando assustada para a porta. Não entendia mais nada. Estava no céu! Rodeada por anjos e segurando um anjinho no colo. Então aquilo era brincar? Que sensação incrível!

De repente percebo que alguém nos olhava. Tremi. Temi o pior. Lembrei-me do ovo. Dona Inácia observava calada a cena. Deixei cair algumas lágrimas já me preparando para o castigo. Mas algo extraordinariamente inesperado aconteceu.

— Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?

Hein? Como assim? Que palavras eram aquelas? Estaria dona Inácia louca ou realmente estava sendo carinhosa? Não havia mais nada de assustador na senhora. Só sei que sorri grata pela concessão.

Foi então que percebi que também era criança. Também amava a boneca, assim como os anjinhos também a amavam. Eu era humana. Tornei-me humana. Deixei de ser coisa. Eu tenho alma! Uma sensação maravilhosa percorreu-me o corpo. Agora realmente era humana e não tornaria a ser coisa, jamais!

Mas as férias acabaram. As garotinhas voltaram para casa e levaram consigo a boneca. A casa retornara ao que era antes. Tudo regressou ao estado inicial, exceto eu. Como deixaria de ser humana? Como poderia ser coisa novamente?

Nem tudo voltou ao normal. Dona Inácia não me perturbava muito mais e uma nova empregada ajudava a viver, tinha bom coração.

Estava tudo errado! Queria ter novamente a boneca em mãos. Impossível! Uma tristeza incompreensível assolou minha pobre e recém-descoberta alma. Não mais comia nem carregava o susto nos olhos. Andava pensativa, nostálgica.

Tal como Ícaro, eu cheguei muito perto do sol e paguei o preço inegociável da felicidade.

Lembrando-me das brincadeiras no jardim, vi-me rodeada por bonecas. Eram todas minhas! Todas louras e de olhos azuis. Falavam mamã e dormiam. Podia escolher à vontade. Brincava despreocupadamente com elas. Não havia mais nada a minha volta. Não existia mais casa, não existia mais dona Inácia, nem servidão, nem castigos. Estava presa naquele mundo ideal e dele não queria sair.

Não sei quanto tempo se passou, nem percebi quando aconteceu. Mas aos poucos as bonecas iam sumindo. No fim restou apenas uma. Aquela mesma boneca do dezembro passado, falando mamã e dormindo. E num passe de mágica minha consciência se desfez. Estava finalmente livre.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Então é isso, obrigado pela leitura e comentem o que acharam.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Negrinha" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.