Silver Screen escrita por SatineHarmony


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Só agora que percebi que a minha oneshot ficou parecida meio que com o inverso da história do doujinshi My Wind, Forget Me Not, mas, porém, entretanto, contudo, todavia, eu prometo que me inspirei somente na música Kokoro, "cantada" pela Kagamine Rin (Vocaloid). Não sei se alguém lerá, mas mesmo assim, boa leitura ^.^



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Hipnóticos olhos prateados abriram-se no ímpeto, como se tivessem recebido uma descarga elétrica. O cientista sorriu de onde estava, orgulhoso de si mesmo — ele conseguira, a sua criação despertara.

Aproximou-se da mesa cirúrgica com passos lentos e calculados, porém seu entusiasmo era denunciado pelo seu rosto, que carregava uma expressão semelhante à de uma criança que acabara de ganhar um brinquedo novo.

Pegou umas seringas que estavam dentro do bolso do seu jaleco, e os olhos recém-abertos seguiram cada movimento seu, como se estivessem preparados para atacá-lo a qualquer instante. Notando isso, decidiu estender a sua mão para cumprimentá-lo educadamente:

— Olá, meu nome é Shion. — deu um sorriso convidativo. — E você é o Nezumi. — seu tom de voz soou determinado. O robô encarou a mão com suspeita, preferindo permanecer imóvel. Shion desistiu da abordagem amigável: — Eu terei que injetar algumas substâncias em você... — seu rosto enrubesceu, e a vergonha o impediu de terminar a frase. Limitou-se, então, a gesticular para a figura nua do ser artificial, pedindo silenciosamente permissão para mexer em seu corpo.

Novamente, nenhuma reação.

Como os olhos prateados permaneceram apáticos, Shion arriscou tocar-lhe o peito de forma hesitante. A superfície de metal era macia graças a uma camada de silicone, e também era quente devido à recondução da alta temperatura dos motores internos, simulando o calor humano.

As mãos do cientista tatearam por um instante, até pressionar um botão invisível aos olhos. O corpo do robô respondeu abrindo um compartimento oco à esquerda do peito da criatura.

Shion suspirou, decepcionado com a sua falha — um peculiar elemento gelatinoso ocupava o lugar onde deveria estar um coração. Ele estava prestes a injetar a seringa que estava em suas mãos quando um aperto de aço envolveu o seu pulso:

— Shi... On... Shion... — sua voz indicava desaprovação. O dito garoto sentiu um calafrio percorrer pela sua espinha ao lembrar-se dele — do verdadeiro Nezumi.

— Relaxe. — com a outra mão ele acariciou uma das maçãs do rosto do robô. — Isso não lhe fará mal, você precisa disso para funcionar corretamente. — informou.

Ele sentiu o aperto afrouxar, e sorriu com isso. Assim, continuou com o procedimento até esvaziar todas as seringas e com um toque fechou o compartimento.

— Eu pegarei umas roupas para você. — disse, dirigindo-se à porta. Desta vez ele escutou uma resposta:

— Shion...

Ele engoliu em seco para não chorar.

NS

— Então é por isso que você não falava!... — passou a mão pelos longos cabelos brancos, presos em um rabo de cavalo. — De fato eu deveria ter instalado um chip de vocabulário em você. — estalou a língua para a sua própria alienação.

— Realmente foi muita burrice sua. — a máquina revirou os olhos. — Você é uma pessoa muito distraída. — disse sem pudor, e logo voltou a sua atenção para a televisão, de onde aprendera todas as palavras e termos que agora falava.

Os cantos da boca de Shion curvaram-se para cima diante da arrogância do outro — por puro livre-arbítrio ele optara por não instalar o chip de servidão em sua criação —, afinal, um Nezumi obediente não era um Nezumi.

O robô de cabelos azuis deu pausa no filme que estava assistindo — Frankenstein —, virando-se para Shion com o rosto sério:

— Por que você me criou? — o cientista abaixou a cabeça ao escutar a pergunta. — Eu tenho o direito de saber. — insistiu ao vê-lo hesitar. Protelando, Shion sentou-se ao seu lado no sofá com movimentos lentos.

— Você foi feito para substituir uma pessoa. — declarou, fugindo do olhar prateado que o sondava.

— Ela morreu? — foi direto.

— Não, ele me deixou. — balançou a cabeça, desanimado — Não era seu feitio ter uma vida calma e estável. — seu sorriso foi vazio.

— Você me fez à imagem dele, não foi, Shion? — ele não olhou para o humano, não querendo pressioná-lo — E o nome dele é Nezumi. — essa não foi uma suposição.

— Tsc, você é muito inteligente para o seu próprio bem. — respondeu, esquivando-se da declaração anterior. — Que sorte a minha que não instalei o chip de autonomia em você... — pareceu pensar em voz alta — Imagine o risco que eu correria?

Ele sentiu uma mão acariciar-lhe o rosto com delicadeza. O movimento foi sequencial, típico de máquinas, porém o cientista compreendeu a intenção do robô.

— Eu nunca seria egoísta a ponto de deixá-lo, Shion. — assegurou-lhe Nezumi, deixando o outro confuso — afinal, quem dissera isso? O garoto pelo qual esperara por mais de uma década ou a unidade de vida artificial que ele próprio projetara?

Na dúvida, o garoto de cabelos brancos apenas assentiu.

NS

— Você deveria sair um pouco da frente da televisão... — Shion sugeriu, seus lábios franzidos em um bico infantil.

— Por quê? — questionou, erguendo uma sobrancelha desafiadoramente — Comportamento humano, regras de etiqueta, idiomas — aprendi tudo isso com a TV.

— Pois saiba que você só existe graças a eles. — gesticulou para os livros que acabara de empilhar sobre a sua escrivaninha.

— E eles têm imagens? — Nezumi acionou a opção mute no aparelho, parecendo estar interessado pela conversa.

— Claro. — ele deu um sorriso tanto divertido ao abrir um dos livros, mostrando a foto de um coração partido ao meio, com setas indicando veias, valvas e afins. O outro reagiu franzindo a testa:

— Sangue. Dor. — tombou a cabeça para o lado, seu programa incapaz de compreender o que lhe era exibido.

— Não necessariamente, isto é puramente informativo. — deu de ombros — E mais, um coração ferido a ponto de sangrar não dói mais do que um ferido emocionalmente. — acrescentou, e o robô captou um tom de amargura em sua voz. Ele estreitou os olhos, tentando processar a última frase. Ao falhar, decidiu mudar de assunto:

— Sabe o que você é, Shion? — comentou, voltando sua atenção novamente à TV. Escutando um som de questionamento do cientista, mudou de canal, sintonizando em um filme pornô. — Você é aquela mulher que está chicoteando o rapaz. — apontou.

— Não, Nezumi, eu não sou um s. — lutou contra o rubor diante de tal cena imprópria — E se você realmente aprendeu etiqueta pela TV, então deveria saber que isso é algo muito inapropriado de se fazer! — exclamou, acenando as duas mãos nervosamente para desligar o projetor da televisão.

— Mas eu adoro vê-lo assim, desconcertado. — a voz do robô abaixou alguns decibéis, adotando um tom sedutor. Shion tentou ignorar o fato de que o seu rosto estava ficando cada vez mais vermelho:

— Bom, eu não pesquiso sobre corações por gostar da dor alheia —, eu pesquiso pois tenho de. Meu pai era um alcoólatra e a minha mãe, acima do peso, portanto eles resultaram nisso — gesticulou para si mesmo —, um filho com problemas cardíacos. — seus lábios formaram uma linha rígida — Mas tem um bônus: talvez eu consiga um coração para você também. — sorriu, repentinamente alegre. Nezumi adorava o jeito de Shion, como ele mudava de humor em tão pouco tempo. E então, novamente, a fisionomia do cientista ficou séria:

— Eu preencherei esse vazio seu. — ambos escutaram a promessa implícita nesta declaração. Ele sentou-se em sua poltrona, colocando o óculos enquanto começava a folhear os livros que estavam sobre a sua escrivaninha.

— Shion. — chamou.

— Sim? — levantou os olhos da sua leitura.

— Você fica bonito com óculos. — sorriu, voltou a ver televisão logo em seguida.

Shion fechou os olhos enquanto sentia o fluxo de sangue subir até o seu rosto.

NS

Bocejou, sonolento, ao fechar o livro. Uma rápida olhada no relógio de parede o fez perceber que já era quase madrugada. Sabendo que não conseguiria processar mais nada por hoje, levantou-se da cadeira, indo em direção ao seu quarto.

Desligou a luz da sala de estar:

— Oyasuminasai. Bonne nuit. Boa noite. — recitou o robô. Este era um costume seu — mostrar para Shion tudo o que aprendera de novo.

O cientista virou-se, surpreso. Sorriu com aquela visão — Nezumi sentado sobre o sofá, sendo iluminado somente pelo brilho fraco da televisão. Seus olhos prateados reluziam belamente, atraindo Shion a abraçá-lo, a tê-lo perto de si. Sem pensar, avançou pela sala, parando em pé em frente dele.

A máquina apenas ergueu uma sobrancelha, começando a processar em seu sistema as possíveis ações de seu criador. Um dedo levantou o seu queixo — em um canto de sua mente, Shion lembrou-se das inúmeras vezes em que Nezumi fizera isso consigo —, fazendo-o fitar aqueles olhos vermelhos. Olhos humanos, calorosos, convidativos.

Shion envolveu a boca da máquina com seus lábios, tentando não pensar em como aquilo era inadequado. Aquela foi uma sensação estranha, mas ele não discerniu se era um estranho bom ou ruim. Surpreendentemente, os movimentos de Nezumi não eram sequenciais ou programados, o que o fez perguntar-se onde ele aprendera tudo aquilo — oh, claro, filmes.

Ele sentiu o desejo de enterrar a sua mão nos macios cabelos azuis, acariciá-los agora que tinha chances de fazê-lo. Suspirou com a textura sedosa que sentiu, e decidiu afastar-se antes que fizesse mais algo.

Nezumi estava perfeitamente composto, e seus olhos prateados observavam Shion — os ofegos que soltava por entre os lábios, a forma como seu rosto ficara tão vermelho quanto a cicatriz que possuía ao longo de uma de suas maçãs do rosto.

— Para que isso? — perguntou o robô enfim, seu programa chiando em incompreensão.

— Um teste. — o garoto fez um movimento de desdém com as mãos. — Terei de fazer uma manutenção em você amanhã...

Nezumi fechou a cara:

— Eu sei distinguir um beijo, Shion. — revirou os olhos — Eu perguntei a razão.

Uma mão estendeu-se à sua frente, afagando-lhe o rosto delicadamente. A máquina ficou estática enquanto recebia a carícia.

— Estou apreciando a minha criação. — respondeu o cientista, dando um sorriso inexpressivo. Ele saiu da sala sem mais declarações.

Sendo recebido pelo silêncio e solidão que tão bem conhecia, Nezumi dobrou as pernas contra o peito. Levou uma das mãos até os lábios, divagando:

— É uma pena que eu não seja capaz de sentir o seu gosto, Shion.

NS

Rosto contra o frio assoalho de madeira. Parte do corpo sobre o felpudo tapete da sala de estar. Postura recolhida; posição fetal.

Nezumi tombou a cabeça, hesitante:

— Shion, você está dormindo?

Nenhuma resposta.

Ele aumentou a amplitude de seus receptores, esperando ouvir aquele conhecido tum-tum-tum.

Nada.

Franziu o cenho, confuso — Shion morrera? Não, a morte não agia de tal forma, silenciosa — Nezumi aprendera na televisão que ela era algo chocante, dramático — mesmo tossindo sangue, a artista terminaria o seu número final. Até mesmo mortes por causas naturais eram emocionantes — sim, aquela senhora morreria de velhice, mas apenas após contar um dos romances mais belos da História.

No entanto lá estava Shion, seu corpo sem vida abandonado sobre o chão, e, pelo que tudo indicava, vítima de um ataque cardíaco.

O robô sentiu uma repentina onda de temor — seu criador morrera, e agora? Ele teria que fazer contato com o mundo exterior? Não, ele não podia — provavelmente terminaria sendo forçado a cometer suicídio, igual vira em Frankenstein.

Abaixou os olhos com pesar, não sabendo ao certo o que fazer — ele não fora programado para isso! Olhando ao redor ele avistou um buquê ásteres amarelas sobre a mesa de centro. Pegou uma delas, não se dando tempo de admirar a simplicidade da beleza da flor. Sim, Shion gostaria disso caso ainda estivesse vivo.

Em pé ao lado do corpo, deixou a flor escapar-lhe por entre os dedos, e esta repousou suavemente sobre o peito do cientista.

Exatamente como nos filmes.

Satisfeito, Nezumi sorriu:

— Oyasuminasai. Bonne nuit. Boa noite. — pausa. — Obrigado por tudo, Shion.

NS

A televisão e as luzes da sala apagaram-se repentinamente. Nezumi estalou a língua:

— Cortaram a energia? — resmungou consigo mesmo. Não fazia nem uma semana que tinham cortado a água do apartamento de Shion devido às contas a pagar — mas não é como se isso tivesse feito alguma diferença para o robô, claro.

Teoricamente ele sabia o que fazer agora — ele aprendera em filmes que, em momentos assim, o casal apaixonado dividiria um jantar romântico à luz de velas —, no entanto isto não podia ser aplicado a si — como conseguiria assistir televisão sem energia elétrica?

Resignando-se, Nezumi levantou do sofá, indisposto. O que faria agora? Andando pelo apartamento envolto na escuridão, seu sistema ativou automaticamente a visão noturna. Só então ele realmente observou o lugar no qual passara os últimos anos — notou como as paredes eram coloridas, combinando com o espírito de Shion.

Estantes e mais estantes ocupavam lugares estratégicos em todo o apartamento — havia uma até mesmo na cozinha, cheia de livros de receita. Chegou ao corredor onde ficava o quarto de Shion, onde ele nunca ousara entrar. Mas agora ele não está mais aqui..., pensou, não hesitante em empurrar a porta de madeira — afinal, esta era a coisa mais lógica a se fazer.

Livros, livros e mais livros disputavam espaço no cômodo. A cama era mínima, fazendo Nezumi perguntar-se se Shion dormia confortavelmente ali. A madeira tanto da cama quanto das estantes era antiga, rangendo ao menor dos toques. Havia um cheiro de guardado no ar, porém o robô não era capaz senti-lo.

Avançando hesitantemente pelo cômodo, Nezumi tirou um livro da estante, incerto do que fazer — será que ele deveria lê-lo? Lê-lo em memória de Shion? Como assim em memória de Shion, de onde ele tirara uma ideia absurda dessas?

E então ele se viu com uma edição de Otelo em suas mãos.

NS

— Desdêmona... — suspirou. — Por que tinhas de morrer? — lamentou-se.

Sentiu algo desconhecido escorrer de seus olhos, prejudicando brevemente a sua visão. Quando olhou para baixo, avistou a última página do livro marcada por uma grande mancha negra.

— O que?... — passou as mãos no rosto, vendo seu óleo na ponta de seus dedos. — Como?... Eu estou vazando? — franziu o cenho, confuso. Era comum para os humanos vazarem quando chorassem, isso ele sabia, porém ele? Será que estava com defeito? E não havia mais Shion algum para fazer-lhe uma manutenção. — Irei distrair-me com livros. — decidiu em voz alta. — Mais, eu preciso de mais. — confessou com uma voz cheia de desejo, pegando outro livro da estante. E mais, e mais.

Era tudo um desastre — Romeu e Julieta cometiam um suicídio equivocado. Nello e Patrasche morriam congelados dentro de uma igreja. Édipo descobria que o homem que ele assassinara era o seu pai, e a mulher com quem se casara, sua mãe. Os livros tinham tanto finais felizes quanto tristes. Seus personagens favoritos sempre morriam. Os casais pelo qual torcia nunca ficavam juntos. Aquilo doía, deixava o programa do robô desnorteado.

E fluidos não paravam de serem derramados de seus olhos.

Não era possível; aquilo era simplesmente impossível — como os humanos eram capazes de gostar daquilo? Como eram capazes de se entreterem com a desgraça alheia? Shion era um s, com certeza, por ter sugerido a ele tantas vezes praticar tal ato — ler um livro. Ler um livro — envenenar-se, ser tomado por emoções extremas, turbulentas, intensas.

Nezumi era incapaz de aguentar aquilo — como pudera ele ter sido tão insensível esse tempo todo? A primeira vez que vira Shion. As reclamações de Shion acerca seu vício por televisão. Os jantares em que sentara à mesa com Shion somente para acompanhá-lo, uma vez que não consumia comida humana. O beijo que recebera de Shion. O corpo de Shion estirado no chão da sala, sem vida. Flores — fora tudo isso que Nezumi pudera oferecer a Shion como despedida?

Levantou-se do chão, saindo do cômodo — precisava respirar, ele necessitava de ar imediatamente. Abriu as portas para a varanda, aproximando-se da barreira protetora.

Um longo grito irrompeu de seus lábios, causando uma pane no seu sistema — não havia sinais de perigo, portanto por que estava ele gritando?

Sentou-se na barreira, desabotoando a sua camisa. Suas mãos atravessaram com ferocidade o silicone de sua pele, abrindo à força o compartimento na área esquerda do seu peito.

Era isso. Era o fim.

O estranho líquido viscoso que o mantinha vivo escorreu, tendo como destino a rua a diversos metros abaixo da bancada.

— Shion, eu me importo com você. — disse, em uma voz rouca de vergonha. Vergonha, ele podia sentir vergonha? — Mais do que eu deveria, meu criador. — fechou os olhos, sentindo o óleo escorrer com mais frequência. — Dormirei pela primeira vez em minha vida, espero que eu goste da experiência. — confessou com uma voz trêmula.

Ele não conseguiria viver em um mundo tão incerto, tão invertido, tão distorcido — afinal, ele era apenas uma máquina, não podia fazer algo além do que lhe fora programado.

— Oyasuminasai.

Quando a última gota de sua essência vital deixara-lhe, o corpo de Nezumi tombou para frente, seu sistema completamente desativado.

— Bonne nuit.

E Nezumi tinha apenas um desejo: que nenhum humano sádico tivesse se entretido com o seu fim.

— Boa noite para todos vocês.


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