Quase três séculos se passaram desde que eu desistira da minha humanidade para salvar o meu filho e desde que eu abandonara o que restava dela – o amor que eu sentia por Baelfire – para manter o meu poder.

Algumas vezes, ao longo desses últimos séculos, algo me fazia recordar vagamente do que era sentir o coração jorrar sangue nas veias do meu corpo. Eram sempre lembranças fugazes, rapidamente esquecidas diante do meu grande objetivo, mas décadas já se passaram desde a última vez que me senti – ainda que brevemente – como um homem, e agora, quando estou tão próximo do meu objetivo, esse sentimento volta a me assombrar. A causa? Essa garota que eu consegui para colocar as coisas no meu castelo em ordem: Belle.

Eu podia ter escolhido uma pessoa da aldeia que fica nas proximidades do castelo, alguém que realmente quisesse fazer esse tipo de serviço. Mas eu queria ter certeza que seria uma pessoa que me odiasse, porque é muito mais fácil conviver diariamente com uma pessoa que te odeia.

Então, quando recebi um pedido de ajuda de uma pequena aldeia próxima à fronteira, onde a maior parte das batalhas contra os ogros estava acontecendo nos últimos anos, percebi que era uma boa oportunidade, pois sabia que Sir Maurice, o lorde protetor da aldeia em questão, possuía uma filha, Belle.

Eu ofereci usar meus poderes para ajudá-los em troca da jovem e, para minha surpresa, o lorde recusou. Percebi que o motivo da recusa não era o amor pela filha – embora com certeza ele a amasse –, era o orgulho. De todo modo, Belle passou por cima da decisão do pai e resolveu-me acompanhar, mas não por gostar de mim e querer a minha companhia – se fosse esse o caso, eu a teria recusado imediatamente –, ela foi comigo porque queria bancar a heroína.

Eu tentei tratá-la mal e, de fato, ela tem tido uma estadia bastante desconfortável, mas há algo nela que me impede de alcançar o ápice da minha crueldade. Nos primeiros dias, eu me aproximava para ordenar que ela fizesse serviços que eu sabia que a assustariam, mas, quando eu encarava seus olhos azuis, não conseguia enunciar a ordem.

Então, poucos dias atrás, houve o problema com aquele ladrão, Robin Hood. Eu o capturei tentando roubar uma varinha mágica da minha coleção e resolvi torturá-lo por alguns dias antes de matá-lo. Belle se apiedou dele e o soltou, o que teria sido razão para eu matá-la, mas novamente algo me impediu. Ela faz bem o serviço e não quero ter o trabalho de achar outra pessoa, deixarei que veja as consequências de seus atos para que não os repita. Aquilo era mentira, eu sabia disso, mas repeti dentro da minha cabeça muitas vezes e, posteriormente, disse a ela também.

Durante a nossa caçada ao ladrão, Belle tentou fazer com que eu voltasse atrás muitas vezes de muitas maneiras diferentes, mas eu não me recordo muito bem de todas as suas palavras porque algumas frases se destacaram nas minhas lembranças, sobrepujando todas as outras:

– Acho que você não é tão mal quanto quer que os outros acreditem. Acho que, lá no fundo, há amor no seu coração. E por algo além de poder.

Suas palavras fizeram o meu coração acelerar, inundado de um sentimento com o qual eu tinha pouca familiaridade, a felicidade. Era como se o último resquício da minha humanidade, muito bem escondido dentro de mim, gritasse concordando com Belle.

Mas percebi que tivera sucesso em mostrar a ela que aquilo não me atingira ao dizer que a única coisa que eu valorizava mais que o poder eram as minhas coisas, pois ela me olhou com um misto de irritação e desprezo, dizendo:

– Você é realmente tão tenebroso quanto dizem.

Eu fiquei simultaneamente contente e triste por tê-la convencido, mas também muito surpreso em constatar que, no mais íntimo do meu ser, eu desejava que ela tivesse insistido que havia amor em mim. Belle era a primeira pessoa que dizia acreditar em mim desde que Bae partiu.

Percebi naquele momento que o meu envolvimento com ela estava ficando muito perigoso. Enquanto Belle continuar me odiando, não há problema, e ela continuará, porque não sou um homem, foi o que eu disse a mim mesmo naquele momento e repeti depois, quando o xerife de Nottingham a pediu para si e eu joguei fora uma oportunidade de abandoná-la.

Entretanto, foi o que aconteceu depois que me mostrou que eu precisava mandar Belle embora. Quando eu me senti mal ao ver que Robin Hood esperava um filho, ao perceber que quase deixara uma criança crescer sem pai, como o meu Baelfire. Foi um momento infeliz para o que resta do homem dentro de mim despertar: exatamente na frente da pessoa de quem eu mais deveria escondê-lo.

Bom, eu sempre soube que coincidências não existem, então, talvez, Belle tenha ajudado esse ser humano a aparecer. Isso, entretanto, criava novas perguntas. Por que essa jovem possuía tanto poder sobre mim? O que havia nela que me tornava tão sensível aos seus desejos?

De todo modo, mantê-la comigo se tornou uma loucura a partir daquele momento, a menos que decidisse abdicar de todos os meus planos para reencontrar o meu filho, porque, para concretizá-los, eu deveria permanecer simultaneamente frio e invulnerável. Eu precisava matá-la ou, pelo menos, mandá-la para longe.

Não me lembro muito bem porque não a matei naquele momento. Provavelmente teria matado, mas, de repente, ela estava perto demais e eu voltei a sentir o meu coração batendo contra o peito. Então, quando ela me abraçou, mesmo mandá-la embora se tornou uma alternativa muito dura.

Eu vi a maldição sendo lançada, vi a filha de Snow White nos salvando. Essa jovem não tem o poder de modificar isso, portanto, tudo que preciso fazer é esperar, porque ou ela não é um empecilho, ou vai desaparecer de alguma forma da minha vida antes que a maldição seja lançada.

Desde aquele dia, tem-se tornado cada vez mais difícil deixá-la ir. Eu poderia pensar que a amo, mas eu já amei antes a minha esposa Milah e, depois, Cora, e sei o que está acontecendo comigo é muito diferente daquilo.

O que existiria nessa garota que me torna incapaz de matá-la ou, pior, a faz capaz de me convencer a não matar um completo desconhecido? Eu preciso urgentemente descobrir. Belle pode vir a se tornar uma grande fraqueza, e se há algo que sei a respeito desse novo mundo para onde iremos, é que eu não poderei ter fraquezas.