Mantendo O Equilíbrio escrita por Alexis terminando a história


Capítulo 49
Capítulo 20


Notas iniciais do capítulo

Murilo sendo... Murilo.
Enjoy.



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Escovo meus dentes olhando-me no espelho do banheiro de Flávia procurando por mudanças em mim mais imediatas. Pra onde eu vou levo se possível uma escova de dente. E pente, bolsa de dinheiro, celular, sombrinha... São coisas essenciais. Os homens costumam falar de bolsa de mulher, que ali é um poço sem fundo onde se encontra as coisas mais sem noção, não pensam que realmente são coisas necessárias, estamos preparadas para qualquer situação, da mais simples à mais bizarra. Não é bom quando pensamos “ainda bem que trouxe a maquiagem”? Ou “ufa, tem dinheiro aqui”? E aquela clássica “me diz que meu celular está aqui, me diz... ah, olha está”?

Até mesmo quando precisamos de uma balinha de menta naquela vontade por um doce que vem do nada e depois de uma caçada, encontramos a bendita. De fato, algumas pesam, algumas são grandes – sigam o conselho de que quanto maior, mais coisas arranjamos pra colocar, mais peso vai fazer, melhor dispensar – mas sempre vão conter por boa parte algo necessário. Principalmente para as mulheres que passam muito tempo fora de casa, a gente tem que saber se virar. Engraçado como é fácil divagar só de olhar para sua escova de dente. Ou isso ou outras preocupações.

Desde quando Vini comentou sobre o “um mês”, eu não paro de pensar nisso. Estarrecida, surpresa, incrédula, admirada fiquei. Eu pareço a mesma, penso talvez como a mesma, no entanto, já não me sinto a mesma. Sou eu e mais um eu numa escala de crescimento. Faço ainda as mesmas coisas, tenho minhas opiniões, tenho minhas batalhas, minhas paixões. Opa, tenho uma nova agora. Uma que me leva e me traz, me empurra e me abraça. Um enxague, um suspiro, um susto. É Flávia batendo na porta pra me apressar, ela sabe muito bem como eu posso ficar enrolando.

Quase colocando o pé na rua, eis que o amigo Bruno Mars dá um alô, me gritando a preguiça de The Lazy Song, toque especial do meu irmão. Flávia me olha com uma cara que, de primeira imaginei ser uma repreensão por ser bem na hora que estávamos saindo, que era noite já, meio nublada me esperando para chover, e tínhamos que ir caminhando até a faculdade que não era muito longe. Mas não, sua expressão era de divertimento. De novo, eu me lasco e os outros que riem, porque ela sabe da pressão e da proteção que meu irmão exerce sobre mim. Reviro os olhos pra ela, dou língua e atendo o outro:

– Alô?

– Hey, Milena.

– Oi. Eu tô de saíd...

– Aham.

Me corta confirmando em convicção algo que não compete com o que eu ia falar. Será que ele está falando com outra pessoa? Mas ele disse meu nome, ele sabe que sou eu no telefone.

– Aham, o quê?

– Fala alguma coisa.

Sussurra um pouco agressivo. Eu não sei que brincadeira é essa, também não entro. Olho pra Flávia a minha frente que espera alguma resposta minha, que não sei qual dar, se nem sei o que meu irmão quer com isso. Bato o pé um pouco inquieta, querendo ser um pouco agressiva também, mas acabo deixando pra lá.

– Alguma coisa.

– Tá, sem problemas. Pode deixar.

Mais uma resposta convicta, uma confirmação. Mas que confirmação? A ligação está em bom sinal e o fundo silencioso. Ele não pode estar em casa... quer dizer, essa encenação maluca não teria porquê se estivesse em casa, deve estar no trabalho, fingindo algo para alguém. Legal, agora ele me usa como escape. Cadê a cor do dinheiro que nunca vi? Eu devia ganhar algo por isso.

– Do que você tá falando? Quem está aí?

Ele me dá bola? Nada. Só me enfurece.

– Te pego que horas? Que horas termina tua aula?

– Tu tá de sacanagem comigo? Eu vou desligar.

– Nãaaaao. Espera... deixa eu pensar...

– Desde quando tu pensa?

– Oito e meia está bom. Te vejo na porta. Tchau.

Ele desliga. Assim sem mais nem menos. Tiro o celular da orelha e olho para o visor como se ele fosse me dizer algo, explicar que negócio foi esse. Nem esperança poderia ter nisso. Devolvo o aparelho pra minha bolsa e saio com Flávia como se não tivesse acontecido.

– Vale perguntar?

– Não. Ele falou coisa com coisa. Também nem vou perguntar... Vindo do Murilo pode ser qualquer besteira, não duvido. O que a gente estava falando mesmo?

– Sabe que esqueci? E... espera. Tá começando a chuviscar.

Pegamos nossas sombrinhas e descemos a rua, viramos, descemos, viramos e descemos mais uma vez chegando à entrada da faculdade, a chuva fina, a avenida iluminada, horário de pique, trânsito alto, alunos chegando. Ainda bem que eu estava de calça, começava a fazer frio.

Uma mulher intercepta nossa conversa quando íamos entrar, estava perto da rampa como se estivesse procurando por alguém, olhando para os lados, impaciente. Queria saber se conhecíamos algum segurança que se chamava Rony trabalhando num dos prédios dali. Tinha cabelos ruivos escuros, marcados no ombro, vestida formalmente com algo que parecia uma farda de trabalho, calça e blazer escuros. É nova, deve nem ter uns 25 anos, parece perdida.

Rony, Rony... não lembro de ninguém chamado assim. Mas quem sou eu para lembrar fácil, principalmente de nomes? Vasculho minha memória pra todo caso, vendo uma expressão pensativa da minha amiga ao meu lado que também fechava sua sombrinha. Se ela não lembrasse, desculpa aí, senhorita, senhora, mas eu não lembraria. Flávia então responde, meio inquieta, posso perceber.

– Não, Rony não. Me lembro de um Tony, mas ele era supervisor do anexo de laboratórios de pesquisa.

– Hum. Obrigada de qualquer forma. Devem ter me dado a referência errada.

– Ah, vai à secretaria ou alguma coisa. Pergunta ali para os guardas da portaria, eles devem saber mais a respeito. Fica difícil para nós sabermos, tendo uns quatro prédios por aqui.

Respondo a ela solícita. Quer dizer, eu não poderia dizer na lata que não éramos adivinhas ou algo parecido se tinha pelo menos três outros prédios além do nosso para determos uma informação dessas. Seria rude.

– Ah, obrigada. Depois eu volto então... hã... pra checar isso.

Acompanho-a com o olhar até que chegue a sua moto mais um pouco para o lado, no estacionamento da frente, liga e vai embora. Me encolho um pouco com o frio que começava a aumentar e vou para a portaria, pegando meu cartão de identificação como estudante enquanto andava. Só que Flávia, ela ficou no mesmo lugar, segurando baixa a sombrinha portátil que tocava o chão. Alguma coisa errada? Volto andando de costas até onde está:

– Isso é por causa da prova?

– Hã?

Flávia tem um... olhar perdido. Pensativo.

– Você está estranha. O que foi?

– É que... acho que conheço essa moça. Não me lembro de onde mais ou menos. Não sei... tem algo nela que... ah, sei lá, num convence.

– Tem certeza? Achei bem normal. Deixa pra lá, você tem coisas mais importantes para se concentrar agora.

– E o que você vai fazer enquanto todos estão fazendo prova? Não era nem pra você ter vindo se, de todas as disciplinas de hoje, você está dispensada.

– Tá me chutando daqui, é? Eu que vim lhe salvar nessa tarde? Eu que sou sua amiga, parceira, ajudante...

– Ô Mi, não foi isso que eu quis dizer. Só não quero deixá-la sozinha. Alguém vem te buscar?

– Como você sabe, depois do ataque que tive na segunda, estão sempre atrás de mim, então algum dos dois deve me ligar já-já. Antes eu... eu tenho que resolver umas coisas. Queria falar com Djane sobre umas paradas... da monitoria.

– Então só me acompanha até o banheiro que depois eu vou pra sala.

– Flávia, a gente acabou de sair da tua casa.

– Esqueceu de como minha bexiga fica quando eu tô ansiosa? Bebo muita muita muita água. Vamos que Djane já deve estar chegando com a bomba.

Realmente, ela bebe muita água. Fico um século esperando do lado de fora do banheiro, perto da nossa sala. A maioria da turma estava lá, esperando pela professora chegar. Assim, encostada na parede que a avisto chegar ao nosso pavimento, toques mansos e abafados do seu salto no piso da escadaria. Seu rosto parece duro, passível, indiferente, perdido. Não havia mais ninguém no espaço além de mim e dela. Ao ver-me que alguma emoção parece remexê-la por dentro, só não sei exatamente dizer qual. Apressa o passo e me alcança, abraçando-me forte, deitando seu rosto num aperto com meu ombro.

– Milena, estive tão preocupada!

– Todos estamos.

– Mas Filipe, meu Deus, soube do ataque hoje pelo meu sogro. Ele... ele te machucou?

– Não. Eu consegui escapar... olha, professora, a senhora tem que ir, todos estão lhe esperando. Eu vou ficar lá embaixo, quero poder falar com a senhora.

– Tudo bem. Eu tenho compromisso, não posso ficar afastada.

Ela funga, eu fungo. Como segurar as emoções que ainda corriam pelo meu corpo? Eu não posso me abalar agora, não agora, tenho que ser forte. Respiro fundo, boto um sorriso encorajador e, gentilmente, acabo empurrando a mulher para seguir para sua sala. Ela assente entendendo minha atitude, mas para antes de chegar à sala:

– Como meu filho está? Vini tem melhorado?

Um sorriso sincero ganha meu rosto, por estar cuidando bem dele, não só por ela ter me pedido. Pisco segurando a água que tinha se acumulado rápido demais nos olhos e passo a mão tirando esse molhado antes de descer.

– Sim. As coisas andam devagar, mas andam.

Ela segura a maçaneta da porta da sala mais serena e balbucia em uma fala silenciosa um “obrigada” antes de entrar. Isso a deixa mais calma. Isso me deixa mais emocionada. Engulo o que quer que tinha pra engolir. Principalmente quando uma voz surge atrás de mim e percebo assombrada que não estava sozinha como momentaneamente pensava estar.

– Ai-meu-Deus. Djane é a mãe dele?

Flávia.


~;~


Tentei achar algum livro bom na biblioteca para passar o tempo. Acontece que lá só tem livro do tipo técnico, acadêmico, nenhum ficcional. Sabia que se ficasse jogando no celular, logo ficaria abusada. Acho que a atendente viu minha frustração, assim ela me ofereceu um livro que carregava na bolsa. Ela estava trabalhando, fazendo vistoria duma ala lá, então poderia me emprestar. Eu poderia ter ficado com os livros das disciplinas mesmo, só não estava no clima pra estudar, queria algo mais pra me ajudar a passar o tempo. O livro era de contos e me indicou, da seleção de três, o do meio. Curiosa, parti para a leitura.

Faz um tempo que não lia algo assim, do estilo ficcional, literatura. Não era muito de leituras, cá e acolá tinha uns livros que me indicavam, que ganhava. Isso porque meu pai trabalha numa livraria e minha avó é cronista. Pretendo mudar essa perspectiva, aos poucos, claro. Preciso dizer que o conto que a atendente tinha me indicado era ótimo, surpreendente e super alucinante. Foram umas 70 páginas altamente devoradas pelo mistério de um simples martini, que termina num possível mistério maior que só o narrador onisciente poderia contar.

Ao máximo tentei não demonstrar minhas expressões de surpresa, espanto, riso, e outros mais. Alguns eu deixei escapar ainda baixos, sendo capturados pela atendente que só sorria de volta. Porém, antes de fechar o livro, banhada ainda por toda aquela catarse que minha avó costuma falar, com o parágrafo final fresco em memória, que dizia “O telefone começou a tocar. Ficou tocando, insistente, por longo tempo...”, eis que Bruno Mars surge cantando bem do meu lado, em cima da mesa, naquele espaço da biblioteca vazia, tomando todo o lugar, quebrando o silêncio.

Claro que eu me encolhi em susto e claro que a atendente viu. Antes de o toque finalizar, atendo. Só não sou tão gentil:

– Oi, peste, que tu quer?

– Primeiro, isso são modos? Segundo, eu sou teu irmão mais velho. Terceiro... hã, não tem terceiro.

– Não sei por que você sempre cita o terceiro se na maioria das vezes não existe um terceiro ponto de consideração. Às vezes nem segundo.

– Você entendeu.

– Na verdade, de sua última ligação não entendi nada. Vai explicar ou tá muito difícil?

Era drama. Quando se trata do meu irmão, tem que ser assim, dura, severa, áspera. Se der corda demais, ele quer se aproveitar. Se é possível treinar cachorros, é possível treinar meu irmão. Eu acho.

– Nossa, maninha, tá de TPM? Tá violenta.

– Ou fala ou desligo.

– Tá, tá. É que... que eu queria impressionar a Aline.

– E como me dar um perdido faz parte do plano mesmo?

– Bom, eu me lembrei de uma história que você já falou algumas outras vezes... de que as mulheres gostam de caras que tratam e cuidam bem das irmãzinhas. Aí pensei, que se ela visse como eu cuido de você, talvez veja que não sou má pessoa quanto ela pensa. Por isso simulei aquela ligação, tinha que ser verdade – vai que ela olha depois meu celular? As pessoas fazem isso nos filmes, por que seria diferente na vida real, se é por causa do que acontece no real que as pessoas fazem filmes?

Okay, meu irmão definitivamente tá gostando dessa tal Aline. Porque ele tá começando a apelar em ME ouvir pra agradar essa mulher. Eu não acredito que ele fez isso. Fecho os olhos, pressinto um facepalm, mas acabo por encostar a testa na ponta da mesa. O caso é sério.

– Só agora você me dá razão, é isso? Vai me explorar também?

– Bom, eu preciso de sua ajuda para... para uma coisa. Você tá na faculdade, não? Putz, liguei na hora da aula?

– Não, não estou em aula. Tô na biblioteca. Hoje eu não tinha horário, tava ajudando Flávia para a prova de Djane.

– Então tenho que te pegar aí?

– Não precisa. Acho que volto com a professora.

– Como assim, “acha”? Quero certezas! O ataque foi outro dia, você não pode ficar dando oportunidade pra maluco. Eu vô aí.

– NÃO! Não vem! Eu vou voltar com ela. Preciso falar com ela, você sabe. Não a vejo desde domingo. Se te deixa mais calmo, eu ligo antes de sair daqui pra confirmar, seu chato.

– Milena, é para seu bem.

– Murilo, troca o CD. Não aguento mais ouvir isso. Tá em casa?

– Tô saindo do trabalho. Me liga mesmo, sem brincadeiras. Eu aviso o Vinícius. Tchau.

Fico debruçada sobre a mesa da biblioteca, inspirando, expirando, devagar. Ele me... sufoca. E agora ele tem uma razão, com essa de Filipe me rondando. Céus, esse homem não vai me deixar em paz? O que ele quer de mim? Se meu irmão e Vini estouraram ao saber do ataque na segunda, o que diriam da ligação? Devo eu contar? Ai, isso é tão confuso. Tão complicado que dá vontade de encontrar com Filipe só pra acabar com isso. Mas não, eu tenho que ser sensata dessa vez.

A última vez que fiz algo pensando estar resolvendo, avisando o sacana naquela mensagem, eu me meti mais em confusão do que poderia imaginar. Esclarecer tudo demorou, sem falar de tudo que passei e ainda passo. Não, ele não merece nada de mim.

– Milena?

Levanto a cabeça e vejo Flávia entrando na biblioteca com os materiais dela. Quanto tempo se passou nem me liguei de verificar. Com a minha leitura até que pareceu ser bem rápido. Era a agora, a hora da verdade. Ela tinha ouvido minha conversa com Djane mais cedo, deve ter matado metade da charada já. Tive que praticamente empurrá-la para entrar na sala, prometendo que falaria com ela logo após. Ainda parece perplexa.

– Mi, antes que diga algo, eu preciso te dizer uma coisa.

– O quê?

Ela se senta a minha frente, descarrega os materiais na mesa e respira, preocupada com alguma coisa. Olha de um lado e outro se certificando que não havia ninguém mais por ali, a não ser a atendente longe nas prateleiras. Isso não me parece ser boa coisa. Putz, aconteceu algo. Meu coração entra logo em alerta.

– Sabe aquela mulher que apareceu mais cedo? Nos perguntando sobre um tal segurança? Pois eu me lembrei dela. Acho que a vi no estacionamento de trás na segunda, lembro porque a Marcinha me deu carona e falou de uma ruiva numa moto que estava olhando para o carro. Ontem, quando saímos com a galera, e, sendo mais precisa, quando procurávamos você e o Vinícius, nós falamos com o porteiro, e ela estava lá. Estava até com uma roupa parecida. Estou sendo paranoica ou tem algo acontecendo, Mi?

O sobressalto de sua voz meio nervosa toma meus ouvidos, tensos com o próprio silêncio do ambiente da biblioteca e com o baque no meu estômago por saber disso. Eu tinha que me controlar acima de tudo.

– Tem, Flávia. E agora com isso, não parece nada bom. Não que antes parecesse. Acho que sei quem ela é.

Eu falo numa calmaria incomum, ainda que por dentro eu trema um pouco. Quer dizer que as palavras de Filipe eram verdadeiras, que ele tinha alguém me vigiando, não necessariamente ele. Assim que ele soube que eu estava com o Vini, ele tem uma grande informante de olho em mim. Também não quero assustar minha amiga, entrar em pânico agora não é uma boa ideia.

– Quem?

– Uma vigia que ameaçaram ter colocado pra mim. Sabe o assalto de segunda? Não foi assalto, foi um ataque. Foi ele que a deixou me vigiando, ele mesmo me confessou.

– Ele? Ele quem?

– O pai do Vinícius.

Ela implode um grito de surpresa, olhos assombrados e perdidos, provavelmente pelo nó que se formava na cabeça dela ante minha revelação. Chamo sua atenção pelo alarme e ela se controla, não deixando de ter uma reação espantada. A noite estava longe de acabar. E ainda tinha que falar com Djane.

– Olha, façamos assim, você vai pra casa e me espera. Eu tenho que falar com a professora e peço que me deixe lá, então poderemos conversar melhor, tá? Não precisa se assustar... Eu tô bem.

– Mi! Isso é sério! Você tem que ir à polícia!

– Flávia, depois, tá? Eu tenho coisas mais urgentes agora. Por enquanto, peço que não comente com ninguém. Principalmente Vinícius e meu irmão. Eles vão tentar fazer alguma besteira e muitas delas eu ainda tô tentando resolver. Confia em mim.

– Tá. Me mantém informada. Djane já deve estar saindo da sala, faltava só duas pessoas quando saí de lá.

– Como foi a prova?

– Não foi tão intensa quanto pensei. Acho que consegui lidar.

Nos despedimos, entrego e agradeço o livro à atendente da biblioteca e saio para procurar pela professora. Engraçado ou não, o conto que eu tinha lido era do tipo policial, mistério que intriga a todos os personagens. Espero que não esteja eu traçando um romance policial também, prefiro ficar na tragicomédia. Ter a certeza de que tenho uma vigia, que ainda falara comigo, é o bastante pra me alarmar, porque Filipe as falando ainda me dava o benefício da dúvida. Agora as coisas parecem bem mais sérias, como meu irmão ou Vini mesmo falaram e custei acreditar.

Estou mesmo em perigo? Tentaria algo contra mim?

Encontro Djane na sala, arrumando uma papelada a sua frente na mesa, de pé. Todos os alunos tinham saído e eu, internamente, agradecia muito. Ao me perceber, engulo o que aconteceu anteriormente e forço um sorriso, encostada na porta.

– Ouvi que a prova não foi tão intensa dessa vez.

– Seria irônico se descarregasse neles o que me corroía. Não que fui antiética nas outras avaliações fazendo isso, dessa vez só queria dar um crédito para eles. Mas todas as que pareceram exageradas, eram assim por necessidade do ofício.

– Tinha minhas desconfianças sobre essa teoria do ofício, agora me sinto melhor pelo esclarecimento, eu acho. Onde podemos conversar?

– Pensei em sairmos, o Center ainda está aberto. Depois lhe levo para casa. Prometo que não vou interferir ou falar com meu filho. Eu... e-eu consigo lidar.

– Na verdade, preciso mexer nesse plano. Mas vamos ao Center, precisamos conversar.


~;~


À noite gosto de jantar coisas mais leves, como caldo e sopas. Minha mãe sempre fazia para mim e para não ficar enjoativo, ela tentava uns sabores e receitas diferentes. Só meu avô que reclamava um pouco, dizia que tomar sopa é coisa de quem está doente, de quando não passa mais nada, é à sopa que se recorre. Assim que eu me sentia ao provar da sopa de um restaurante no Center. De que não passa mais nada além de líquido, quero dizer. Pelo menos eu não sentia aquilo tentar voltar, era bom sentir algo morno tentando aplacar o frio do alarme que tinha por dentro do meu corpo. Aos poucos eu me acalmava mais, a tensão ia se dissipando.

Quando caminhei com a professora até seu carro me mantive atenta ao redor procurando pela tal ruiva. Eu vi uma moto, mas a pessoa em questão estava de capacete e estava numa área escura para verificar como era a roupa. De qualquer forma, sendo ela ou não, eu estava ficando aflita. Bom, ter alguém te perseguindo tem desses efeitos, não? Djane não demorou muito pra perceber minha inquietação, pelo modo que eu ficava enrolando a ponta da minha bolsa e ficava olhando de um lado para o outro. Ao entrar no carro, ela não o ligou de primeira:

– Alguma coisa errada?

Ah, tanta coisa que eu nem saberia por onde começar. Ainda estava duvidosa do que eu falaria, mas no fundo eu tinha que falar. Lidar com o incerto e com as loucuras do Filipe iriam explodir minha cabeça se eu ficasse pensando demais nisso. Olhava os pingos da fina chuva começarem a atingir o vidro e rumarem para baixo pela gravidade no que eu poderia comparar com uma vontade sem noção minha de querer chorar.

Por que eu queria chorar? Eu sou forte, eu consigo lidar. Consigo? Sim, o estado deplorável é o do Filipe, que se presta a essas loucuras. Isso não deve ser medo, não deve! Preocupação, isso, deve ser isso... tem que ser isso.

– Hã... de certa forma, sim.

Geralmente as pessoas quando estão ansiosas, nervosas, apreensivas, batem o pé ou a perna, movendo-a rapidamente de encontro a alguma base como o chão. Não o poderia fazer, estaria me entregando demais se batesse no chão do carro. O tique então tinha passado para minha mão, enrolando e enrolando a ponta da minha bolsa no colo. Djane pôs a sua sobre a minha num movimento delicado para me fazer parar e olhar para ela. Eu estava fugindo um pouco desse seu olhar, não queria ter que preocupá-la também.

– É por causa de Filipe?

– Se eu responder que sim, a senhora promete não brigar comigo?

– Milena, minha menina, não faria isso com você.

Ela me deu um terno abraço, daqueles que só mãe parece dar. Uma segurança por estar em seus braços me fez suspirar e qualquer figura de medo parecia se dissipar. Odiava fraquejar, odiava mais ainda quando alguém via isso. Pior era que o ódio era dirigido a mim, não aos outros que me infligiam algo. Apenas uma vez na vida eu nutri ódio por uma pessoa e, tendo a prova desse gosto, era algo que não queria mais ter na vida. Ódio é algo que consome, que prende, que dói.

Os caminhos que uma vez tomei, consegui seguir em frente. Não foi nada fácil, claro, mas não desisti de me recuperar. Foi uma única grande queda de minha fortaleza, e desde então eu a reconstruí. Só que às vezes a gente deixa de cuidar do nosso próprio forte e as emoções vão achando brechas e brechas até fazerem furos de verdade e lá estavam nossas fraquezas. Pra mim era altamente vergonhoso mostrar a outra pessoa uma falha minha, penso às vezes ser por medo de um julgamento, e que este talvez aumentasse meu furo e minha vergonha numa reação em cadeia. O perfume cítrico da professora é respirado por mim num conforto. Acho que eu... só precisava de um cuidado como no outro dia meu irmão precisava de mim.

Mais calma, sentindo o carinho e a preocupação dela de suas mãos passando em minhas costas, me levantei dela e respirei fundo, mostrando que estava melhor. Estava de verdade.

– Melhor irmos jantar, eu sei que a senhora deve estar com fome.

Verdade que eu queria disfarçar aquilo que de ruim senti, porém, eu precisava me centrar no que tinha para conversar, pois na minha cabeça, havia muitos precisando de mim para que eu me desse o luxo de fraquejar por algo que não valeria a pena. Além do mais, não queria dar o gostinho a Filipe de demonstrar medo. Caí, fato, mas levantei, e por ter levantado, ele que se prepare, pois eu não vou me deixar levar pelas ameaças dele.

Por isso comecei falando de Vinícius, de como estava passando, o que estava fazendo, como estava seu comportamento, o que ele pensava de tudo aquilo... o alívio dela era meu alivio também. O jantar todo foi assim, ela mais tranquila. Era o que eu precisava também, me tirava a culpa por tê-la deixado perdida esse tempo todo. Como era sopa o alimento, foi bem rápido. Assim eu a puxei para sentarmos num banquinho que tinha por ali perto das lojas para fugir um pouco das conversas altas e músicas que tocavam.

– Então... sobre segunda...

– Oh sim, o ataque! Seu Júlio soube pelo meu filho hoje, ele quase não acreditou, eu mesma pasmei quando me ligou essa tarde. Nunca imaginaria que aquele homem faria algo assim... Ele já me prejudicou várias vezes, mas nunca partiu para cima desse jeito. Você não sabe o quanto eu fiquei preocupada...

Ela falava pegando em mim certificando-se de que eu estava bem mesmo. Mexia em minhas mãos, mexia no meu rosto, nos meus braços. Era até meio estranho, eu que não me importava. Minha mão direita, aquela com que bati no falso ladrão, vira e mexe dava uma dorzinha ainda do meu “golpe final”, estava acostumada. Quando fui atacada pelo cachorro e me machuquei, ela foi altamente protetora comigo, bem parecida com essa vez. Conto com meu estado de espírito depois de todas essas loucuras que passamos juntas para não me importar dessa vez.

Assim explico-lhe tudo o que aconteceu, desde quando achei que estava sendo perseguida até o momento que meu irmão decretou minha guarda preventiva. Nem preciso dizer que ela super concordou. Só houve um momento que hesitei, quando ia chegar à parte que falaria que estava com seu filho. Não querendo ser precipitada quanto a isso, pulo e continuo o relato.

Com a lua se escondendo nas nuvens, nuvens essas carregadas, o vento frio e um pouco forte remexia na minha blusa e cabelos, nos fazia encolher um pouco e dava para ver que logo choveria novamente, só não uma chuva forte, o que eu estava agradecendo. Djane segura minhas mãos enquanto ouve tudo que tenho a dizer, ora e outra é carinhosa, me deixando acanhada por ela me ter quase como uma filha e eu... fazendo mais que um papel de amiga a seu filho. Pretendia contar em breve, não queria me aproveitar da situação que nos rondava. No entanto, uma coisa eu não poderia mais deixar passar:

– Eu tenho uma coisa para falar, que aconteceu hoje. Só que a senhora não vai gostar. Nem meu irmão ou Vinícius...

– O que?

– Filipe me ligou hoje. Quer que eu o encontre para uma conversa. Claro que eu dispensei, não tenho porque ouvir a ele ou suas explicações. Só que... lembra quando eu disse ainda pouco que ele tinha me deixado um vigia? Pensei que era blefe, mas não, é verdade. A pessoa falou comigo antes de eu entrar na aula e Flávia a reconheceu de outras vezes mais.

– Aquele... maldito descontrolado! Temos que ir à polícia. Você não tem que ficar sobre a ameaça desse homem...

– Eu não quero ter que envolver polícia, Djane, eu sei que se eu fizer isso, só vai complicar mais as coisas, ele vai ficar com mais raiva de mim e aí sim pode tentar alguma coisa. Não tenho medo dele, tenho medo do que isso tudo pode fazer com ele, que já não batia bem da cabeça. Acho que ser ignorante também não tem ajudado.

– Porque não falou disso ainda com seu irmão? Você vai esconder isso dele? Milena, não!

O semblante dela é marcado pela indignação. Não sei se de Filipe pela audácia ou se de mim, por “omitir”. Só pela reação dela consigo prever mais ou menos a de meu irmão. Nessas horas que dá vontade de novo de ir encontrar com o Filipe só pra acabar de vez com essa história, porém, minha razão ainda me diz para não o fazer, que isso é algo corresponde ao Vini. Só não sei se ele está mais preparado. Enquanto isso Filipe pode estar criando planos mirabolantes para ter o que quer.

– Não, eu vou contar. Entendi que é sério, não vou esconder... só não sei como. De amanhã não passa. Por isso que eu queria que me deixasse hoje na casa de Flávia ao invés de me deixar em casa, preciso esclarecer umas coisas e... se eu ver meu irmão, ele vai perceber. Somente por enquanto quero que ele não saiba, ele já tem preocupações o bastante.

– Milena, não me peça isso. Sabe que meu dever é...

– Eu sei, eu sei, mas olha, estou confiando na senhora quanto a isso. Poderia não ter falado nada e estou aqui, preciso do crédito de apenas uma noite. Por favor.

Ela titubeia um pouco, muito insegura do que pensar ou me responder, fica bem claro em suas expressões. Torço mentalmente que sim, que atenda meu pedido. Uma noite com Flávia não ia me matar, nem estaria em perigo, na verdade acho que teria uma aliada com quem conversar sobre tudo sem que eu pudesse me reprimir ou algo do tipo, pois agora que ela descobriu algumas coisas antes eu explicar toda a história do que ela ficar perdida ou eu ter que mentir. Chega de mentiras, né?

– Tá, eu não falo. Mas tem que prometer falar disso amanhã, sem falta.

– Sem falta.

Armava e imaginava um pouco do que seria o dia seguinte, teria a tarde e noite livre por ter sido dispensada pelos professores do dia, Carvalho e Silvana. Minha vida acadêmica estava indo bem pelo menos. Ela me deixa na casa de Flávia e deve confiar tanto em mim que nem pergunta ou pensa nisso como algo suspeito. De me deixar na casa da minha amiga, digo, pois para os outros somos nada mais que professora e ex-monitora.

Minha amiga me recebe ansiosa, mas logo me faz ir tomar banho. Oferece seu quarto e uma roupa de dormir sobre uma cama reserva de solteiro. Diz que vai me esperar na cozinha e eu... eu me preparo para o primeiro round com meu irmão no telefone.

– Hey, tá chegando?

– Não, na verdade. Estou na casa de Flávia, vou ficar por aqui.

– Como assim? Isso não fazia parte do acordo.

– Eu não assinei nada, Murilo.

– EU NÃO QUERO SABER, EU VOU TE BUSCAR AGORA.

– Não precisa gritar. Eu não vou embora e é pra você não vir. Se quiser que eu chame a Flávia pra confirmar que estou com ela, eu chamo, mas nada mais que isso.

– Eu não dou permissão.

– Quem disse que eu pedi? Estou a-vi-san-do.

Ao fundo consigo ouvi-lo falar baixinho com quem penso ser Vini, explicando sobre minha ligação. Pronto, agora com dois deixa meu trabalho mais pesado. Imagina se eu tivesse dito da história sobre a ruiva. Murilo continua alterado, eu sabia que não ia ser fácil:

– Milena, eu vou aí e ponto final.

– Pois pegue seu ponto final e fique na porta, você sabe que sou capaz de deixá-lo lá.

– Assim você só me dificulta as coisas. Eu te busco e a gente conversa, pode ser? Eu... eu não grito.

– Há! Sei. Não me convenceu. Além do mais, eu tenho umas pendências com minha amiga, então te aquieta aí, que amanhã de manhã eu volto.

– Volta como?

– De ônibus, sei lá.

– MAIS NEM QUE A VACA TUSSA UMA MÚSICA COMPLETA! ESPera um pouco... tá, o Vinícius te busca aí. Eu tenho reunião amanhã cedo com a merda do R.H. então ele vai te buscar.

– Tá, tá, eu ligo pra ele de manhã.

– Essa conversa ainda não acabou, Milena.

– Eu sei, Murilo, eu sei.

E, de verdade, eu sabia. Mais que ele.

Olho a minha escova de dente que tinha tirado da bolsa e penso que, por mais que nos deixemos preparadas, como as coisas rolam não dá sempre pra confiar e o fato de estar munida de coisas que podem nos ajudar, nunca realmente estamos num bom estado de preparação. Digo isso por saber que não sou eu de fato quem deve se prevenir, preocupo-me mais por ter que exigir isso de Vinícius, quem na verdade parece estar fugindo aos poucos e me distraindo do principal.


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Notas finais do capítulo

O velho dilema de "história principal" e "história paralela". Como vcs acham que tá essa missão da Milena?



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