O Poder Das Sombras escrita por Scorpio


Capítulo 1
O Senhor das Sombras, o Demônio e a Bruxa - Parte Um




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Andrew Keylock

Epping Green, uma vila muito pequena no interior dos Estados Unidos, não tinha mais que dois mil habitantes em 2003.

Hoje, enquanto eu andava deliberadamente por uma de suas ruas mórbidas, deparei-me com um acidente: dentro do carro, a mulher parecia imóvel, o sangue escarlate escorrendo por sua face pálida. Ao redor daquela cena, abutres humanos se acotovelavam, fazendo de tudo para poderem ver a desgraça alheia. Passei por eles lentamente, arrastando os pés e observando alguns policiais em suas fardas de inverno — cachecóis enrolados ao pescoço e luvas de couro nas mãos — anotando tudo com cuidado extremo. Para alguns, aquela cena era de um horror supremo, avassalador; para mim, não era nada mais que uma situação corriqueira.

Virei à esquina, entrando num estreito bairro comercial de prédios cinza e baixos. A neve se acumulava nas calçadas altas, tomando conta de fachadas e placas de trânsito. Esse, segundo os noticiários, estava sendo o pior inverno desde 1947.

Eu trabalhava num estúdio de tatuagem. Minha função, no entanto, não era tatuar ou colocar piercings nas pessoas: eu apenas era o assistente de M, meu chefe gordo e preguiçoso. Antes de entrar no cubículo que tinha um letreiro maior que o próprio local, olhei-me no vidro espelhado, tirando flocos de gelo acumulados em meus cabelos loiros que foram penteados com bastante esmero.

Empurrei a porta com uma das mãos e vi Katry, a nova atendente, uma mulher de meia idade, mãe de dois filhos. Na maior parte do tempo, ela ficava ao telefone, tagarelando com outras mulheres solteiras (e velhas) sobre homens, dinheiro ou, novamente, homens: coisas inúteis que não levariam a absolutamente nada. Enquanto eu atravessava a sala, ela piscou o olho para mim e voltou à sua conversa. M já me esperava sentado com seu avental branco e barriga proeminente. Como sempre, estava com um pirulito na boca enquanto fazia um desenho tribal nas costas de um rapaz musculoso.

— E aí, Andrew? — disse, a voz grossa soando alta demais.

— E aí... — respondi quase desatentamente. Sentei-me numa das pequenas cadeiras cobertas com plástico filme e peguei o jornal que circulava pela cidade. Folheei as páginas lentamente, apreciando as figuras, mas deixando as palavras miúdas para lá.

— Assim que eu terminar esse cara aqui vou sair, OK?

— OK — respondi ainda sem muito interesse.

— Você já sabe fazer quase tudo, certo? — aquele cara que estava sendo tatuado era o primeiro em duas semanas que vinha fazer algo aqui além de perguntar os preços ou cobrar o aluguel. – Então preciso que você tome conta de tudo enquanto eu estou fora.

Seguro de que ninguém viria, aquiesci. Alguns segundos depois, eu fui à portinha que levava aos fundos e, lá, e tirei um cigarro de dentro do bolso. Acendi-o com o isqueiro antigo que sempre levava no bolso e sorvi a fumaça lentamente, como se ela pudesse me alimentar. Eu me sentia muito cansado física e mentalmente sabendo que eu deveria estar do outro lado do mundo, onde oportunidades surgiam para pessoas normais sem muita grana, assim como eu. Mas como chegar lá sem um tostão furado? Essa pergunta me matava cada vez que era feita.

Ouvi uma porta batendo e entrei novamente, jogando a ponta do cigarro fora. M já tirava o avental e jogou-o para mim. Agarrei-o no ar, prendendo nos dedos e depois colocando no pescoço. Sabia que meu trabalho era como uma prece otimista: você sabe que nunca vai acontecer, mesmo assim, você continua a fazê-la. Meu chefe saiu, seu corpo roliço e tatuado tendo dificuldades para passar pela porta estreita. Quando não havia mais sinal dele, liguei o rádio com uma música que eu costumava ouvir em casa, mas nunca soube o nome. As batidas começaram, as guitarras entraram em ação e alguém bateu à porta. Pedi que entrasse e um cara com uns dois metros de altura, cabeça raspada e roupas pretas tomou conta de todo o cômodo. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele me interrompeu com sua voz gutural:

— Eu soube que vocês fazem boas tatuagens aqui.

— É — Eu não, o M, pensei. – Você vai querer fazer alguma? — perguntei. Essa pergunta era quase mecânica e quase sempre a resposta era a mesma.

— Claro. Mas demora?

— Dependendo do que queira, não.

— Certo.

— Você já tem o que q...

Ele enfiou a mão no bolso e tirou um papel dobrado em várias partes. Entregou-me e eu observei, tentando saber de que lado era aquilo.

— E então?

— Não, acho que menos de meia hora. Sente-se, por favor. Eu vou buscar os materiais.

Fui ao armário onde M guardava tudo: luvas, gazes, anestesias e cigarros. Tirei o que precisava de lá e voltei à salinha. Impressionantemente, o cara não estava mais. Dei de ombros, agradecendo, porque aquela não era a primeira desistência misteriosa. Virei-me, com uma bandeja de metal esterilizado nas mãos, para guardar os instrumentos novamente em seus lugares. Contudo, dois cliques metálicos me paralisaram imediatamente: uma arma gélida e dura foi colocada em minha nuca e aquele homem provavelmente queria algo. Se quisesse dinheiro, iria sair sem nada: há dois meses que eu não era pago, pois, nesse buraco, as pessoas não eram muito fãs de tatuagens. Senti, então, que iria parar num necrotério com uma etiqueta no dedão do pé indicando “assassinato”.

— Pensou que poderia se esconder por muito tempo, então?

— Não sei do que está falando, cara.

— Não sabe, é? Quem sabe uma bala possa lembrá-lo.

— Eu realmente não sei de que droga você está falando!

— Sabe sim! Você é como eu! Você ainda é meu irmão! — gritou assustando-me ainda mais.

— Eu nunca o vi em minha vida! — lembrei-me, nesse momento de pressão e medo, que M guardava embaixo da mesa um bastão de baseball. Aproveitei o segundo de loucura e adrenalina, rapidamente me abaixei, peguei aquela barra de madeira e bati com toda a força que pude na cabeça do brutamonte. Ouvi o baque surdo quando ele caiu, mas não me virei para vê-lo. Sai correndo até onde Katry estava, na recepção, passando pela em um átimo de segundo... Olhei para o balcão branco onde ela deveria estar, mas vi apenas sangue escorrendo e formando uma poça carmesim. Sem escolha, voei para onde eu sabia que estava seguro: o antigo Shopping SART.

Era hora do almoço; as pessoas estavam em suas casas e quase todas as lojas estavam fechadas. Corri quase sem respirar e, quando cheguei à frente do prédio enorme e azul, coloquei as mãos nos joelhos e fechei os olhos. Aquele homem era louco, com certeza. As portas, antes sempre abertas, agora estavam fechadas por pesadas correntes enferrujadas e grandes cadeados de ferro que pendiam inertes. Sabia que ao lado dele havia uma saída de emergência que fora arrombada pelos poucos drogados que ainda não foram “recuperados”. Entrei por lá, agora andando um pouco lentamente, sabendo que o cara ainda estava desacordado e demoraria um pouco para deduzir sozinho onde eu estaria agora.

Como era dia, os viciados estavam na floresta fazendo sua festa. Dentro, parecia uma cidade fantasma; não havia cheiro de shopping: as frituras e pipoca há muito desapareceram. A única coisa possível de se sentir era a poeira estalando sob meus pés e a grama que nascia no chão quebrado e mal cuidado. Parei, sentei-me e observei o cinema onde eu trabalhei durante algum tempo. Havia um pôster de um clássico romântico e um tapete de folhas mortas deixando tudo com um aspecto horrível, um filme de terror idiota.

Deitei-me no banco e coloquei as mãos atrás da cabeça. Fechei os olhos e tentei imaginar como eu iria sair daquilo. Nunca fui de ser sortudo, e, nesse momento, eu sabia que precisava fugir, esconder-me em algum lugar. Aqui não era seguro e aquele louco, se não foi preso por causa das pessoas histéricas que queriam saber o que aconteceu na loja, estaria solto por aí, segurando uma arma e me procurando por não sei o motivo.

De repente, quando eu menos esperava, houve um estrondo alto. Meus instintos, naquele momento, salvaram-me. Pulei do banco e saí correndo ao outro lado. Ouvi que passos, milhares deles, aproximavam-se, fazendo um barulho ritmado e esquisito, como em uma apresentação das forças armadas, onde todos os soldados fazem tudo perfeitamente. Corri como se não houvesse outra coisa a se fazer e realmente não havia: forcei-me a não olhar para trás e apenas pensar em minha frente. Atravessei a porta dos fundos do shopping como uma flecha. Consegui apenas olhar de um lado para o outro e ver que um carro vermelho estilo picape estava estacionado perto da loja de ferragens. Sem cerimônia, quebrei o vidro com o cotovelo, mas, para meu azar, o carro estava aberto e com a chave na ignição. Um homem gritou que eu parasse, mas como fazê-lo sem morrer? Liguei-o, pisei fundo no acelerador; o carro saiu em disparada pela rua, deixando todos os passantes perplexos.

Se houvesse alguém atrás de mim, eu não sabia. Se houvesse algo a acontecer futuramente, era incerto.


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