Hospital Das Almas escrita por Mei chan


Capítulo 3
Derik




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– Pelas minhas contas, que não são muito confiáveis, em um lindo dia de primavera em meados de julho de 1987 os meus pais se conheceram. Eles eram muito jovens e não tinham nada de bom para se preocupar e a partir dai vocês comecem a história, quando um casal apaixonado se ama muito... No frio do inverno... Enfim, nove meses depois eu nasci - ele gesticulou na vertical em frente ao seu corpo, ao som de algumas risadas. - Mas o casal apaixonado na história não era tão apaixonado assim, na verdade o meu pai era do exército, e se o cigarro ainda não o matou, ainda é. Minha mãe era só mais uma jovem inocente que que amava um homem de farda. Como não tinha muita instrução nem perspectiva de vida assegurada, não pensou duas vezes quando se viu em um relacionamento com um aspirante a capitão.

Com o passar do tempo as fardas continuam as mesmas mas as pessoas não, infelizmente, porque seria muito legal se nós pudéssemos andar com condecorações no peito. Com o meu pai não foi diferente, depois do casamento ele fez de casa um inferno melhor do que o original. As poucas palavras que ele dizia eram sempre bem pensadas e difíceis. Quando chegava em casa eu só sentia o cheiro de nicotina e escutava seus pesados passos que seguiam sempre a mesma rotina: banheiro, quarto, cozinha e rua. Que eu me lembre ele nunca passou um natal em casa, nem mesmo nos meus aniversários, pra falar a verdade o máximo de contato pai e filho entre nós era que ele me obrigava a bater continência na primeira vez que o visse no dia - levantando-se, ele repetiu o movimento com precisão não deixando dúvida que fizera isso por muito tempo. - Ele estava sempre fumando, como uma pessoa pode tossir mais do que falar? Chegou ao ponto em que nuvens de fumaça se formavam ao seu redor, sinceramente eu acho até que ele já devia ter sua própria atmosfera.

Quando o cigarro não pode mais satisfaze-lo as outras tantas mulheres apaixonadas por fardas preencheram o seu vazio. Não fazia a mínima questão de esconder que andava com outras, e as vezes até levava-as para dentro de casa . Essas coisas foram se acumulando, e com o passar do tempo ficaram piores. - Derik foi ficando cada vez mais sério e mesmo que sutilmente seu tom de voz se alterou. Acho que apenas eu percebi a diferença porque com todos os seus gestos, olhares e expressões, ele prendia a atenção de todos naquela sala.- A minha mãe enfrentava tudo sozinha, ela nunca chorava ou reclamava mas acho que isso foi pior. Quando você pensa muito antes de falar e faz da sua cabeça uma prisão para as palavras elas se tornam cada vez mais pesadas, os seus significados dobram de tamanho, sufocam durante as noites de insônia, sugam os restos de esperança. Tudo isso acontece mesmo que sejam só palavras que nem ao menos foram ditas. - Ficou pensativo por um momento e continuou depois de olhar nos olhos de cada um. - A pior fase é quando as palavras se tornam arrependimentos...

No dia do meu aniversário de 10 anos pela primeira vez minha mãe me disse que queria sair para comemorar. Eu fiquei muito feliz, de verdade, acho que foi o dia mais feliz da minha pequena vida de 10 anos.

Nós fomos ao maior cinema da cidade, almoçamos, fomos ao parque de diversões, e por fim eu comi quase todos os sabores de sorvete da sorveteria. Pode não parecer muita coisa, mas até então eu só saíra com os meus pais para festas dos oficiais do exercito onde só tinham velhos assustadores e enrugados até a alma. Eram raras as vezes que eu saia de casa sem ser nessa ocasião, ainda mais sozinho com a minha mãe.

Quando voltamos para casa ela me pôs para dormir como sempre fazia, mas antes de cair no sono ela disse que tinha algo para mim. Depois de um abraço bem forte ela beijou minha testa, e logo depois colocou em minhas mão uma pena, dessas que se usava para escrever antigamente, e bem baixinho disse no meu ouvido " Não deixe que os outros escrevam o seu futuro" . Se eu disser que eu entendi exatamente a mensagem que a minha mãe estava tentando deixar para mim, vendo que até mesmo por trás de uma simples pena tinha um profundo significado e que depois desse dia eu transformei completamente a minha visão de mundo - ele respirou um pouco depois de dizer a frase toda sem pausas- Eu estaria mentindo, até porque eu só tinha 10 anos, por favor. A verdade é que eu fiquei triste pra caramba porque eu ganhei uma pena de presente, uma PENA. - Eu não conseguia imaginar o Derik como criança mas com certeza a expressão de frustração não deve ter mudado muito, ela era muito convincente, acredite.- Eu não tive muito tempo pra ficar triste por causa disso porque no dia seguinte ela foi embora. Sem se despedir ou explicar, ela apenas se foi e nunca mais apareceu, não ligou, não mandou uma carta, nada. Eu ainda não sabia, mas esses eram só os rastros do seu arrependimento.

De qualquer forma só depois de uma semana que eu meu pai percebeu que ela tinha partido e a única coisa que ele me disse foi "não me faz falta". Eu fiquei muito triste e quase perdi o ano na escola mas mesmo depois de tudo isso eu ainda não entendia. Foram muitas as tardes que eu fiquei na varanda a espera da minha mãe na esperança que ela mudasse de ideia e voltasse para casa, ou pelo menos viesse me buscar, mas eu fiquei só na espera mesmo.

Bom, conforme o tempo eu fui crescendo como pude, sendo cuidado por uma ou duas empregadas, fazendo o que eu queria e quando achava melhor. Mas com 16 anos algumas luzes se ascenderam na minha cabeça. Eu queria sair, conhecer outros lugares, viajar sem rumo só seguindo a direção do vento, sem ter uma casa ou um lugar para onde eu pudesse voltar. O que eu queria realmente era desfazer os laços que me prendiam aquela família e arrebentar os que sobrassem.
Depois de me informar um pouco, fui até ao cartório e preparei todos os documentos necessários e em menos de dois meses os papeis de emancipação estava na mesa do escritório do meu pai. Eu não estava muito confiante mas não teria porque ele recusar, afinal era mais uma coisa que não faria falta na vida dele. Em pouco tempo os papéis apareceram em baixo da minha porta, todos devidamente assinados, e junto deles havia um bilhete com letras cuidadosamente escritas: " Saia quando quiser, enviarei dinheiro que for preciso. Não me perturbe mais."

Não perdi tempo, arrumei minhas coisas mais importantes, peguei um pouco de dinheiro que meu pai tinha guardado em casa e parti no primeiro ônibus que passou na minha frente.

Depois daquele dia eu me tornei livre. - as suas palavras saíram como um suspiro de alívio.

– A minha primeira parada foi em uma praia...


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