Segredos De Família. escrita por Tauana Indalecio Braga


Capítulo 3
Capítulo 3 A história de Mari




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- O que você quer saber primeiro?- pergunta ela depois de um longo silêncio em que ficou observando os transeuntes passarem, estava pensativa.

- Me fale da sua mãe, o que aconteceu entre ela e a família Siqueira?

- Ela e minha avó tinham acabado de se mudar para cá, por isso ela foi contratada imediatamente. As pessoas daqui não trabalham naquela casa sabe...todo mundo tem medo...mas minha mãe não sabia de nada. Até tentaram avisar ela, mas ela achou que era besteira.- disse a menina enfiando um pedaço de pão na boca.- Minha avó conta como ela ficou feliz quando voltou da entrevista na casa das Siqueira. Como ela ficou fascinada por aquela casa. Mas as coisas começaram a mudar logo nos primeiros dias. Minha avó conta que ela chegava estranha em casa, calada, esquiva, como ela é até hoje na verdade. Ela começou a dizer que sairia do emprego, que queria mudar da cidade sem dar maiores explicações. E quando foi para o último dia de trabalho...bem...aconteceu alguma coisa com ela lá...minha avó diz que ela foi estuprada, pois ela voltou grávida de mim, mas não tinha namorados na época, ela nem tinha tempo pra isso!- os olhos da menina ficaram frios, uma sombra de raiva passava em seus olhos -Ela voltou catatônica, elas mandaram um carro trazer ela...minha avó disse que ela chegou toda machucada, tinha sangue nas roupas e marcas de mordidas e arranhões. Claro que junto com ela veio um envelope bem gordo, cheio de dinheiro e uma carta dizendo que ela havia sofrido um acidente de trabalho, e que elas seriam generosas pelo nosso silêncio sobre o assunto. Tudo foi tratado assim, na maior frieza, elas ainda ajudam para nos manter caladas...mas elas já calaram a única pessoa que poderia dizer o que realmente aconteceu naquela casa.

- Ela foi estuprada? Mas por quem?

- Não sabemos, minha mãe nunca falou sobre isso...sabemos apenas o que dizia naquela carta, que ela voltou grávida para casa e o que ela grita durante os pesadelos...ela passa a maior parte do tempo dormindo...e sempre tem pesadelos...não é uma forma muito boa de se viver não é?

- E quanto tempo sua mãe trabalhou lá?

- Não sei direito...um mês...talvez dois...

- Ela suportou bastante tempo!

- Elas pagam muito bem! E ela precisava do dinheiro se quisesse sair da cidade. Mas não deu tempo, elas pegaram mãe antes que ela pudesse fugir. Com o dinheiro que recebemos delas ,pagamos dois anos de tratamento psiquiátrico pra minha mãe na melhor clinica da cidade, mas as respostas dos médicos foi vaga e obviamente forjada. Eles disseram que ela estava com depressão por conta da gravidez indesejada, depois depressão pós parto...Um outro médico que avaliou minha mãe, um estrangeiro que minha avó conheceu e que estava de passagem pela cidade que disse outra coisa...ele disse que ela estava em choque pós traumático muito profundo, e que dificilmente ela se recuperaria por completo.

- Deixa eu adivinhar...os médicos anteriores a esse são todos da cidade.- Marcus tinha calafrios de imaginar aquela pobre jovem toda machucada e tratada de maneira tão descartável. Os detalhes da historia eram registrados avidamente por Marcus em seu inseparável caderninho.

- Exatamente...eles dariam o diagnóstico que elas quisessem, elas são muito influentes...mas...eu soube que as sessões lá são gravadas...se ao menos conseguíssemos aquelas fitas, talvez descobríssemos o que aconteceu com ela! Soube que fizeram algumas sessões de hipnose.

- Mari não é tão simples assim, não podemos ir até lá e simplesmente pedir para ver as fitas da sua mãe!

Mari ia responder, mas parou quando Dona Ana se aproxima com o vinho e o copo de água.

- Aqui está, desejam mais alguma coisa?- pergunta Dona Ana , atenciosa, completamente diferente da atitude que tivera com Mari a alguns minutos atrás.

- Por enquanto é só, obrigado Dona Ana.- responde Marcus , e a velha senhora se afasta, lançando olhares curiosos para ele e Mari, que se encolhe.

- Temos que tomar cuidado com o que falamos em voz alta nessa cidade...existem ouvidos em todos os cantos, e todos são delas!- murmura ela, ainda olhando para o balcão onde a velha estava.

- O que quer dizer com isso?

- Não cai um alfinete nessa cidade sem que elas saibam! Aposto que elas te já sabem quem é você, e que estamos juntos aqui!- sussurra Mari olhando para todos os lados desconfiada.

- Mas como isso seria possível? Acabamos de nos conhecer!

- Não importa! Elas sempre sabem!- de descontrola Mari, com os olhos arregalados.

- Como?

- Elas são bruxas!- sussurra Mari se debruçando sobre a mesa para ficar mais próxima de Marcus.

-Bruxas? Ora Mari, não seja ridícula!- ri Marcus

- Quero ver você falar isso depois que conhecer minha mãe...

- Mari...sua mãe foi estuprada! E ficou traumatizada com isso! Foi terrível, mas não vejo como você chegou na conclusão de que elas são bruxas!

- Elas matam os próprios maridos sabia? – rebate Mari, ela poderia argumentar o dia inteiro, para ela era certo, aquelas mulheres eram bruxas.

-É...eu ouvi falar... mas isso me parece um tanto absurdo, ouvi dizer que muitos morrem de doenças como câncer! Só vi duas mortes suspeitas! A do carro que explodiu com o cara dentro e a do cara que virou presunto com 12 facadas... você acha que foram elas quem fizeram isso?

- Não diretamente...foi...o cara....- responde Mari. Ela esfregava as mãos, era visível que aquele assunto a deixava desconfortável.

- Que cara?- Pergunta Marcus já sem piscar, mas antes que a conversa pudesse continuar, Dona Ana aparece com os pratos.

- Aqui está, bom apetite!- diz Dona Ana, deixando os pratos na mesa, mas se mantendo ao lado, os encarando, até que falou- Ahn...com licença ,me desculpe a ousadia senhor Bandeira...mas, de onde o senhor conhece a nossa querida Mari?

- NOSSA querida Mari?- pergunta Mari sarcástica. Mas ela foi descaradamente ignorada pela velha italiana.

- Bem... a Mari é amiga da família, vim fazer uma visita.

- Mas o senhor não disse que era de São Paulo? Achei que a mãe dela era mineira.- responde a velha desconfiada.

- As nossas mães, eram muito amigas...ela me pediu para vir ver como andam as duas depois que a avó dela morreu.

-Ah sim, trágico! Trágico! Pobre menina!

- Bem...não queremos que a comida esfrie não é mesmo Mari? Pode comer, parece estar faminta!- Mari o olha com gratidão, seus olhos passeavam entre a Dona Ana e o prato, como se precisasse de permissão para começar a comer.

- Ah claro...bom apetite...com licença...- diz Dona Ana visivelmente desapontada.

   Mari parecia estar nas nuvens, a tensão que passava em seus olhos foi completamente dissolvida diante da panqueca que ela tanto queria. Ela degustava cada garfada se deliciando de uma tal maneira, que Marcus sentiu inveja do seu prato. Dava gosto de ver, o jornalista se sentiu grato por ter aceitado a proposta infundada de uma desconhecida de lhe pagar uma panqueca. Que pedido mais absurdo! Você oferece um café e acaba pagando um jantar italiano por informações incertas. Não era a forma mais inteligente de conseguir as historias que precisava, se continuasse assim , ele pensou, entraria em falência ainda no primeiro mês.

Mas aqueles pensamentos passaram como relâmpago, deixando apenas a satisfação de ver Mari tão feliz. Ele estava ansioso para continuar a conversa, mas esperou paciente a moça terminar seu prato, afinal, depois das informações que ela já tinha dado pra ele, ela merecia. Quando Mari finalmente acabou de comer, quase 30 minutos depois de ter sido servido o “jantouço” que foi passado num silencio profundo, ouvindo-se apenas o som dos talheres no prato e dos gemidos degustativos da moça, ela limpou a boca com o guardanapo e se apoiou cansada na cadeira.

- Satisfeita?- pergunta Marcus com um sorriso.

- Nunca estive tão satisfeita na vida! Obrigado por isso.

- O prazer foi meu, eu deveria ter filmado você comer! Nunca vi alguém degustar tanto um prato de comida.

- Você engole a comida porque pode ter quando quiser! Já eu não! Sabe-se lá se um dia eu vou conseguir comer essa panqueca de novo!- Marcus ficou preocupado e olhou o preço no menu. Ele tentou ser discreto o quanto dava, mas foi mais forte que ele, Mari fingiu não notar. O jantar sairia tão caro assim?

    Os preços não eram absurdamente caros, era o preço de um almoço por quilo mais salgadinho, ele não gastaria mais do que 50 reais naquela refeição para os dois, então se deu conta da situação de Mari.

   Foi quando, pela primeira vez, ele parou para olhar pra ela com mais atenção. Suas roupas eram simples, mas não simples demais ao ponto de se pensar que ela não poderia pagar 15,80 reais para comer uma panqueca.

Os cabelos castanhos dela eram curtos, chegando somente até encima do ombro, num corte reto que parecia que ela mesma havia cortado. Uma franja comprida caia em seus olhos cor de mel. Sua pele olivada pelo sol, destacava com seu vestido de algodão branco com detalhes de flores de crochê coloridas.

- Você trabalha Mari?

- Faço bico de diarista...eu estava trabalhando num caixa, mas os horários não tava dando pé

-Porquê?

- Tenho que cuidar da minha mãe!- responde ela, passando um pedaço de pao no molho que havia sobrado de sua panqueca.

- Onde ela está agora?

- Dormindo...ela dorme a maior parte do tempo.

- E tem pesadelos com esse tal cara, é isso?- a pergunta pareceu um choque forte em Mari, que ficou o olhando em choque por alguns instantes- O que foi?

- Nada...é só que não falamos dele em publico...- respondeu Mari baixando a cabeça. Logo em seguida Dona Ana aparece novamente para retirar os pratos. Mari passava por ali todos os dias, e nunca havia visto a dona do restaurante ser tão prestativa.

- Espero que tenham gostado da comida!- disse a mulher olhando diretamente para Mari com ar de repreensão.

- Ah sim, estava muito bom mesmo Dona Ana! Pode me trazer a conta! – diz Marcus limpando a boca e jogando o guardanapo teatralmente na mesa.

- Ah sim...claro, a conta...não querem nenhuma sobremesa? Temos pudim de leite e...- começa a velha mas logo era interrompida por Marcus.

- Ahn, não obrigada é só isso mesmo! – diz Marcus finalizando a conversa, e a velha italiana se afasta, bem lentamente, era obvio que estava tentando ouvir a conversa dos dois. – ela parece bem interessada em nós não é?

- Melhor conversarmos em um lugar onde ninguém possa nos ouvir.

- Espera, antes me fala direito dos pesadelos da sua mãe!

-...tenho dó dela...ela vive numa realidade totalmente alheia a nossa...e não é uma realidade boa...ela é assombrada!

- Assombrada? por esse tal cara?

- Ssh! Fala baixo! Já disse que a cidade tem ouvidos! Não se fala dessas coisas abertamente por aqui! Eu já disse, aqui as pessoas agem como se estivessem nos anos 60...bem diferente das pessoas “prafrentex” da cidade grande.

- Prafrentex? Nossa eu não ouvia isso há séculos!

- Bem vindo a Três Marias! É capaz de você ouvir comentários como, nossa aquela menina é mesmo um pão!- brinca Mari.

- hahaha interessante...- ri Marcus.

   Dona Ana se aproxima com a conta, e enquanto Marcus contava o dinheiro, ela examinava sua carteira de cima. Ao notar, Marcus fecha a carteira rapidamente, e deixa cinco reais de gorjeta.

   A dona do restaurante acompanhou eles com os olhos até a esquina, quando finalmente saíram da vista da velha.

- Estou começando a acreditar quando você diz que a cidade tem ouvidos...essa gente é bem intrometida não é?- reclama Marcus, dando mais uma olhada para tras, esperando a Dona Ana aparecer na esquina tentando os espionar.

- Aqui se cuida da vida dos outros melhor do que da própria vida! Mas tudo na hipocrisia da “ética social”, isso é, por debaixo dos panos.

- Nem tão por debaixo dos panos assim não é...foi bem descarado...

- Bem, só nós dois estarmos juntos lá já é uma polêmica pra cidade...como eu disse, as pessoas não gostam muito de mim por aqui.

- Porque isso?

- Eles sabem que eu sou filha bastarda da família Siqueira...acham que eu sou amaldiçoada...eu e minha mãe...

- Isso é ridículo!

- Não muito, na verdade...somos mesmo amaldiçoadas Marcus...- responde a menina num tom melancólico.

- Você usou a palavra assombrada...agora amaldiçoada, não acha que são palavras pesadas demais?

- Me diz isso quando ver minha mãe...ela teve uma crise  braba á um mês...tive de leva-la nos médicos de novo, eles dobraram o medicamento dela, e esta quase na hora de ela toma-los...estamos quase chegando!

- Estamos indo para sua casa?

- Sim! Nossa casa é a única da quadra! As outras casas estão abandonadas ou são apenas térreos vazios, ninguém poderá nos ouvir lá!

- Isso faz parte do bulling coletivo contra vocês? Sua casa ser a única da quadra habitada...?

- Talvez...não sei...- desconversa a menina.

   As próximas duas quadras foram seguidas em silêncio, as pessoas passavam olhando curiosos para os dois, enquanto Mari se encolhia, ficando ainda mais baixinha do que já era. Até que entraram numa rua deserta. Era como se fosse um bairro fantasma, as poucas casas que haviam lá estavam abandonadas a muitos anos, e os terrenos baldios tinham o matagal que chegava na altura de Marcus.

    O som dos grilos era quase ensurdecedor, mas não chegava a ser desagradável, o clima de abandono era substituído por uma paz inexplicável se fechasse os olhos e sentisse a brisa leve batendo no rosto.

 Andando mais um pouco, já sentindo a calma lhe tomar, Marcus sente de repente um frio no estômago. Uma sensação de perigo o rodeou, um gosto metálico invadiu sua boca e o coração disparou como se lhe gritasse para correr para bem longe dali. Ele não entendia, a poucos instantes estava tão relaxado que poderia simplesmente armar uma barraca no meio da rua, que não tinha nenhum transito, e dormir em paz ao som dos grilos.

   Ele olha confuso para Mari que empalideceu. Ela olhava fixamente para uma casa que já á muito havia sido branca, mas o tempo havia cobrado caro da pintura , agora num bege sujo, descascado pelo tempo. Passaria facilmente por uma daquelas casas abandonadas da rua.

   Mas pelas frestas da janela de madeira, quase todas quebradas, se via uma luz laranja dançando lá dentro. Um tiquinho de vida dentro de uma casa moribunda.

- Ai meu deus!- geme Mari antes de sair correndo ate o portão enferrujado e subindo as escadas carcomidas da casa.

   Marcus vai atrás, sem entender o que acontecia. Ao passar pela porta, um forte cheiro de suor, poeira , cera de vela e sangue tomou seu nariz. Ele corre e alcança Mari que abria cada cômodo da casa , aparentemente a procura de sua mãe.

   A casa era surpreendentemente grande, os passos deles eram ouvidos como cascos de cavalo em contato com o chão de madeira já oco. Atravessaram todo um corredor escuro, a casa estava cheia de velas acesas por todo canto , fazendo sombras assustadoras sobre os retratos pendurados na parede.

  No fim do corredor, culminando em uma porta com a maçaneta quebrada, Mari hesita por alguns instantes e procura os olhos de Marcus, agradecendo por ele estar ali. Quando abriram a porta, uma mulher, encolhida num canto escuro do quarto , batia com a cabeça na parede.

O cheiro do quarto era insuportável, o fedor de sangue com certeza vinha dali. Um rio de um liquido negro saia da mulher que se esmurrava, e quando ela levantou a mão para disferir outro golpe na própria cabeça, Marcus pode ver um objeto reluzente em suas mãos, era uma faca.

  Quando a sombra de Mari se projetou na parede ao lado da mulher, essa se atirou contra a parede, a esfaqueando como podia, gritando histericamente.

- Vá embora! Eu não vou deixar você fazer isso de novo! Não de novo! Eu te proíbo de me tocar! Sai de perto de mim!- gritava a mulher.

- Mãe! Mãe sou eu! Fique calma! Shh!- grita Mari tentando acalmar sua mãe, se aproximando devagar e segurando seus braços, para que ela não a cortasse.

- Ele esta aqui! Esta sentindo? Esta sentindo?- pergunta a mulher com os olhos arregalados, em desespero.

- Ai meu deus, você esta sangrando! O que você fez?! Marcus, chama uma ambulância! Ela esta ferida!- Marcus estava em choque. Ele se atrapalha para pegar seu celular , que escapa com uma pirueta de suas mãos.

- Quem é ele?- pergunta a mulher desconfiada.

- É um amigo!- responde Mari, segurando um pedaço de pano que encontrou ali perto sobre o ferimento de sua mãe.

- Vá embora enquanto pode rapaz! Você ainda está limpo! Nós somos sujas! Ira se sujar se ficar muito tempo com a gente!- murmura a mulher. Ela sangrava muito, um corte em sua barriga jorrava muito sangue, manchando seu pijama de flanela. Marcus estava chocado, ela não parecia sentir dor, e sim alivio.

    Antes que Marcus pudesse responder para a mulher, a atendente do outro lado da linha responde. Eles precisavam leva-la ao hospital imediatamente ou ela morreria.


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