Caçar (Hunt) escrita por Danilo Narciso


Capítulo 1
CAPÍTULO 1 - Morangos e Creme




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Que eu não tive uma infância normal nunca fora segredo pra ninguém. Desde pequeno, problemas e conturbações são parte de minha vida, mesmo que Chang e mamãe tentassem amenizar para mim o que seria uma infância desastrosa. Ao longo do tempo as tragédias foram se tornando rotina, e deixei de acreditar na existência da felicidade.

Não que eu não faria tudo diferente se pudesse. Se tivesse uma outra chance, tentaria levar uma vida normal e tentar ser apenas um garoto, que brinca de carrinho e sonha em ser um astronauta. Mas essa não é minha realidade, nem no mais profundo dos sonhos.

Não vale a pena listar cada tragédia que marcou minha vida até meus quinze anos; contarei, assim, apenas os fatos mais marcantes e/ou relevantes para nossa história.


Meu nome é Daniel Nakamura. Vivi com minha mãe e minha irmã até certo ponto de minha adolescência, apesar de convidados especiais (agradáveis ou não) terem passado por nossa família durante determinados períodos de nossa vida.

Não sei de onde vim; sei apenas que não sou filho de meus pais. Primeiro, porque não tenho nada haver com Chang, mamãe ou papai, cujo rosto ainda está memorizado em minha cabeça (apesar de ter falecido há anos); segundo, porque nenhum deles compreende a mente do ser-humano e/ou a manipula como eu.

Meus pais eram imigrantes do Japão; falavam cinco línguas diferentes e ambos eram muito inteligentes. Quando Chang completou dois anos de idade, mudaram para um sítio a 30km de Pueblo, nos Estados Unidos, quando descobriram que minha mãe estava grávida. Alguns meses depois, minha mãe deu à luz a mim, e então quase vivemos felizes por muito tempo.

Até meus sete anos, nunca tinha dado muita atenção ao fato de que tenho a pele morena e olhos verdes, enquanto meus pais e minha irmã têm a pele branca e olhos puxados. Quem me deu o toque foi Chang, que dois anos mais velha, ficava muito mais intrigada com esse fato do que eu mesmo. Mas minha mãe nos respondia tranquilamente que isso não tinha nada haver com nosso grau de parentesco, e que eu era seu filho tanto quanto Chang era. Como a resposta era sempre a mesma, ao longo dos anos fui desistindo de perguntar.

Minha mãe era uma pessoa doce, de bom coração e disposta a ajudar-nos sempre que precisássemos. Tinha cabelos longos e pretos, era magra e tinha feições doces. Cheirava a morangos frescos com creme de leite; um cheiro que, mesmo sendo um pouco enjoativo, ainda me fazia sentir bem.

Recordo-me de brincar com minha irmã, que sempre me dei bem. Nunca fui uma criança fácil de relacionar, mas Chang sempre fazia questão que eu me sentisse bem-vindo. Não brincávamos com outras crianças, pois as coisas que sou capaz de fazer nunca eram bem olhadas por ninguém. Porque ninguém gostava quando, involuntariamente, usava de meus poderes como forma de auxílio nas brincadeiras. E eu sabia disso, porque apesar de ninguém nunca me falar nada, eu lia nos olhos das outras crianças. Ouvia suas mentes. Decifrava seus pensamentos. E não é segredo pra ninguém que isso não é normal.

A rejeição de meus colegas de escola ao longo dos anos criou um vazio dentro de mim, tirando-me toda a magia de ser criança. As coisas ao longo dos anos foram perdendo a graça, e toda a ingenuidade característica de uma criança no auge de sua infância desapareceu. Restaram-me assim, apenas a mágoa e o medo. Medo de relacionar-me; medo de viver; medo do meu poder, que agora era mais visto por mim como uma maldição.

Minha irmã insistia em dizer que isso era um dom; quando éramos menores, ela costumava dizer que isso era uma dádiva enviada por seres superiores, dada a mim para fazer o bem. Mas eu ainda não sei como posso salvar o mundo lendo a mente alheia.

Excluindo minhas conturbações de infância, éramos felizes. Éramos uma família, unida, e gostávamos de ser isso. Mas como a vida nunca me deu uma brecha, em meio a meus nove anos a morte de meu pai veio para me assombrar.

Chorava pelos cantos, baixinho, lamentando a ausência da figura paterna em minha vida. Chang sofreu ainda mais que eu, e como ela sempre esteve ao meu lado, tentei ao máximo dedicar-me para ajudá-la a superar isso.

E ela ia superar; ia demorar, mas nós íamos superar.

Dois anos depois, porém, mamãe conheceu Marcelo. Namoraram sério por quase um ano, quando ela foi demitida de seu emprego em Pueblo. O dinheiro não entrava, e apesar de Chang e eu ajudarmos como podíamos, apenas com o auxílio de Marcelo que mamãe conseguiu manter nossa casa em pé. Contas pagas, seu namorado veio morar conosco no sítio.

Eu gostava de Marcelo. Apesar de não sermos muito próximos, ele fazia o possível para me agradar: nos enchia de guloseimas, tratava bem mamãe e, se estava pondo dinheiro dentro de casa, não poderia ser uma pessoa má. Mas mais uma vez, a vida provou-me que eu estava errado sobre as pessoas.

Nunca me preocupei em ler sua mente. Ela era confusa, e ler uma mente assim é mais difícil do que se imagina. Marcelo vivia constantemente bêbado, mas isso não era novidade para ninguém. Mamãe, assim como nós, sabia de seus defeitos. Apenas não sabíamos a gravidade da situação, e o quanto esses defeitos poderiam nos prejudicar.

Ao longo do tempo, Marcelo chegar em casa bêbado tornou-se rotina, principalmente depois que sua pequena loja de guloseimas no centro da cidade faliu. Quando chegava em casa, batia em mamãe, e quando nos chorávamos e berrávamos não poupava força para nos agredir também. Passados alguns meses a situação agravou-se, e ele passou a fazer de nós seus escravos pessoais. Chang cuidava da casa, enquanto mamãe trabalhava fora. Eu, enquanto isso, passava por uma espécie de treinamento dado por ele mesmo, para tornar-me igualzinho a si quando crescesse. Nunca me deixei influenciar pelas coisas que fui obrigado a fazer, mas também nunca as esqueci.


~



Os meus catorze anos foram o pior ano da minha vida. Mamãe já não suportava mais apanhar, e aceitava por medo. Medo dele nos agredir, medo dele descontar em nós a raiva que teria caso algum dia o denunciássemos. Mas a coisa foi ficando fora de controle, e tomou proporções muito maiores do que se esperava.


Um dia, após chegar tonto do bar, Marcelo tirou-me de meu quarto e prendeu-me em uma poltrona na sala. Notei que os móveis estavam fora do lugar, e que diferentemente do habitual, a poltrona estava de frente para o sofá.

— Espere aqui, pirralho. — Marcelo avisou-me, e saiu em direção à cozinha. Voltou com Chang nos braços e, forçadamente, tirou-lhe as vestes e a jogou no sofá. Marcelo a envolvia em seus braços e, sendo mais forte que minha irmã, a mantia deitada enquanto tirava a própria calça. Chang, se debatendo, chorava e mordia os lábios para não berrar, uma vez que se mamãe descobrisse iria sofrer as consequências de seu grito.

Mas eu, impossibilitado de ajudar minha irmã e sendo obrigado a assistir aquilo tudo, não me conti e berrava em meio a lágrimas de desespero. De repente, mamãe surgiu das escadas e golpeou Marcelo na nuca com um bastão. Então ficou sem reação, esperando ver as consequências de seu ato.

Fechei os olhos para o que vinha a seguir; eu sabia que o golpe não tinha sido suficientemente forte para derrubá-lo. Ouvi pancadas; gritos, gemidos. Senti a mão de Chang envolvendo meu rosto para tranquilizar-me, quando ela mesma tremia e suava mais que eu. Após alguns minutos, abri os olhos e percebi que minha irmã também os havia fechado.

Marcelo tinha sumido. Mamãe tinha sumido.


~


Por vários meses, Marcelo manteu mamãe presa no sotão. Não a víamos; a ouvíamos nos três meses iniciais, mas depois os gemidos de dor foram substituídos por um silêncio de horror. Chang foi forçada a assumir um emprego em uma loja perto de casa, enquanto os serviços domésticos foram transferidos para mim. Não podíamos permitir isso em nossa casa; não em nossa família.


Foi quando vi Marcelo manuseando uma arma. Vi ele guardando ela dentro de uma gaveta, no quarto de hóspedes, enquanto eu procurava por Chang. O lugar perfeito, uma vez que nem eu nem Chan íamos ao quarto de hóspedes. Eu tinha que pegar aquela arma. Nós tínhamos que matá-lo.

Corri silenciosamente até Chang e a avisei de minha nova descoberta. Seu rosto transmitia surpresa, mas em sua mente era impresso o ódio. Ela, mais que eu, queria dar cabo de nosso padrasto.

Naquela noite, subimos silenciosamente até o quarto dos hospédes e pegamos a arma. Mas, ao invés de procurar Marcelo, concordamos em ir libertar mamãe primeiro. Protegidos, podíamos agora ir tranquilamente atrás dela no sotão. Meu coração apertava só de pensar nisso.

Subíamos a escada silenciosamente quando tropecei em um dos degraus. Apenas agora percebi o quanto estava suando frio e tremendo. O barulho do impacto da arma com o degrau foi suficientemente alto para acordar alguém de sono leve como Marcelo. Por alguns segundos eu e Chang permanecemos imóveis esperando alguma reação, mas nenhum outro ruído foi ouvido. Seguimos pela escada até o terceiro e último andar da casa.

Se da casa nenhum ruído era ouvido, do sótão ouvia-se menos ainda. O clima no último andar era pesado, e procurávamos algum vestígio de onde mamãe poderia ter sido confinada. Foi quando avistamos uma pequena porta no canto direito da sala, onde sabíamos dar para um pequeno cômodo. Há muito não andávamos por aquele andar; mesmo quando nos era permitido caminhar pela casa, nunca nos foi interessante visitar aquela parte da casa, que mais me parecia sombria.

Tenso, caminhei até a porta, que estava trancada por fora por um cadeado. Procurei pelo cômodo alguma espécie de chave, quando encontrei uma em uma das gavetas vazias do armário do sótão. Ia até a porta destrancá-la quando percebi o silêncio que pairava sobre o ambiente. Chang não poderia estar tão quieta.

— Largue a chave sobre a mesa — disse uma voz firme atrás de mim.

Meu corpo, tenso, imobilizou-se. Ele tinha pegado Chang. A respiração nervosa de minha irmã era nitidamente perceptível de onde eu estava.

— Eu disse — repetiu ele, quase cospindo as palavras. — para largar a porra da chave sobre a mesa, pirralho inútil.

— Não dê ouvidos a ele, Dan! — minha irmã gritava. — Vá atrás de mamãe!

Virei-me de frente os dois. Marcelo estava com Chang presa nos braços, imobilizada em algum ponto de seu joelho. Ele a estava machucando. E ia machucá-la mais, se eu não fizesse o que ele estava mandando. Deixei a chave sobre a mesa, e enxerguei um olhar desesperado em minha irmã. Tentando ler sua mente, decifrei seus pensamentos.


Meu bolso.



Seu bolso.


Havia uma arma em seu bolso. Talvez Marcelo não tenha visto, mas Chang pressionava quase imperceptivelmente sua mão para baixo, até o cabo da arma. Logo o alcançou, uma vez que sua mão estava livre, mas sua posição não a permitia atirar em Marcelo. Mas em um gesto rápido, atirou na porta, que abriu-se revelando um pequeno cômodo com um corpo dentro.

Corri para lá, mas freei quando vi o corpo. Freei pois era apenas um corpo, sem graça, sem cor, sem vida. Os olhos abertos, cegos de dor, agora revelavam o desespero pelo qual mamãe havia passado, e os cortes em seus braços, a tortura que havia sofrido. Corri a seu encontro e a abracei, mesmo que minha mãe não pudesse sentir meu abraço. Uma lágrima desceu pelo meu rosto e um grito foi sufocado pelo cheiro de mofo, de morte. Ela não cheirava mais a morangos e creme.

Levantei pela necessidade de encontrar minha irmã, que na sala lidava com um outro problema.

O tiro havia assustado Marcelo, que a libertou. Chang, em posse de uma arma, agora estava domando nosso padrasto. Mas ele não parecia nem um pouco menos tranquilo, e sua expressão indicava sarcasmo e indiferença.

— Não seja tola, menina — disse, rindo. — Eu chamei a polícia. Aposto que eles estão muito interessados em saber em como a filhinha perturbada de Aline Nakamura matou a mãe e agora ameaça o padrasto com uma arma. Mas, se você concordar em ser minha putinha, posso falar que tudo não passou de um engano - um sorriso abriu-se em seu rosto.

Chang chorava, desesperada, e eu podia perceber suas mãos tremendo e fraquejando enquanto seguravam a arma. Ela percebeu que aquilo era o fim da linha. Ela percebeu que o que viria a seguir não poderia ser bom.

Aos poucos, sirenes e mais sirenes podiam ser ouvidas ao redor do sítio, e luzes azuis e vermelhas iluminavam o ambiente preto e branco da casa. Chang provavelmente ia ser levada para algum tipo de reformatório, mas mesmo assim seu pensamento estava em mim. Gritava para eu fugir de lá enquanto eu, atônito, não queria deixá-la sozinha ali. Mas não havia muita coisa que eu poderia fazer por nós, então eu iria embora. Iria embora, mas voltaria para buscar minha irmã.

Iria embora, mas antes iria vingar-nos. Vingar minha mãe, vítima inocente de um monstro que ingenuamente pôs dentro de casa; vingar minha irmã, que seria condenada a passar os próximos anos em um reformatório por um crime que não cometeu; e vingar a mim, que durante tão pouco tempo de vida fui obrigado a presenciar tantas tragédias.

Concentrei-me na mente de Marcelo, pela primeira vez. Queria causar um confronto, e tentei fazer algo que sabia que era capaz mas que nunca tive coragem de testar: imergi Marcelo em uma dor de cabeça sem precedentes. O ódio dentro de mim, dessa forma, era transformado em dor. Aos poucos, veias foram estourando dentro da cabeça de meu padrasto até ele cair, desacordado, no chão. Era a primeira vez que usava meu poder para machucar alguém; era a primeira vez que usava meu poder para algo útil.

Olhei para minha irmã e a última coisa de que lembro foi de pular pela janela até o jardim, correndo em direção ao mundo.

Eu estava livre.


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Notas finais do capítulo

E aí, tudo bem? Este é o primeiro capítulo de Hunt, uma história a qual tenho muita afeição. Espero que ela te encante da mesma forma que encantou a mim e a alguns de meus amigos. Alguns capítulos são cheios de drama, outros de fantasia, e alguns até mesmo de comédia. Espere drásticas mudanças de humor na história se pretende lê-la. Gosto de conversar com meus leitores, então sintam-se à vontade para fazer perguntas, críticas e elogios, que os receberei de braços abertos. E não se esqueça de deixar um comentário! Um abraço,

Danilo



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