A Lágrima Escarlate escrita por SorahKetsu


Capítulo 8
o poder da derrota


Notas iniciais do capítulo

Um caoítulo feito pra que percebam que a Sorah... não é forte.



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- Sorah! Acorda!

A lifing acordou resmungando baixinho.

- A lágrima! Tem alguma coisa errada com a lágrima!

Sorah levantou num pulo, assustada.

- Não me diga que perdeu! Por que se for isso eu…

- Não, não! Não a perdi, está aqui!

Em seguida, mostrou-lhe a pedra.

- Então o que foi? O que pode ser tão terrível?

Sabrina não sabia. Essa era a realidade. Sentiu uma ponta de arrependimento em acordar Sorah por causa de um simples pressentimento. Não pela falta de conforto da lifing, mas pelo risco que sua vida passava a correr deixando-a nervosa.

- Eu senti uma sensação estranha com relação à jóia. Procurei ver o que era na parte que tenho… temos… e não tinha nada de errado.

- Peraí… deixa-me ver se entendi… você sentiu uma sensação estranha com relação à jóia… mas não com a parte que temos?

- Isso.

- E isso foi a quanto tempo?

- Á uns cinco minutos atrás.

- Não é com o fragmento que temos…então só pode ser…com uma parte que não temos! Você sentiu a presença de outro pedaço da lágrima. Quer dizer que está perto! Vamos, acorda a Mirian! Chega de descanso! Anda!

- Mas a Mirian ainda não se recuperou!

- Olha bem pra minha cara e veja se me importo!

- Hãm... Não?

- Puxa essa menina nem que seja pela perna!

Sabrina tentou acordar sua amiga, que dormia profundamente. A sacudiu desesperadamente, antes que Sorah perdesse a paciência.

Mirian foi acordando devagar, timidamente, resmungando.

- O que foi? – disse ela bocejando – O despertador não tocou?

- Mirian, se você vir uma tomada, me avisa, se bem que é difícil no meio do mato! Acorda, rápido!

- Ta bom, ta bom! Afinal, o que você quer?

- Que você se levante! Eu detectei uma parte da tal lágrima, a Sorah tá desesperada pra achar e advinha quem ta deixando ela irritada por causa do atraso?

- Hãm... eu?

- Anda logo!

Todos de pé e devidamente “empolgados”, Sorah parou Sabrina pelos ombros. Só faltava saber pra onde ir.

- Não sei!

- Como assim, não sabe?

- Não sabendo! Eu sei que ela está próxima, mas não sei pra que lado!

- Humana repugnante, eu vou te…

Sorah ergueu as garras na direção de Sabrina mas deteu-se no último instante. Até Mirian já havia fechado os olhos para não ver o golpe. A lifing ergueu as sobrancelhas, pasma. Olhou para os lados e começou a respirar mais rápido. Ia tombando pra trás mas recompôs-se imediatamente suando frio.

- Eu sei pra que lado ir.

 

O que queria dizer, apenas ela sabia. E fez questão de não contar as outras. Seu motivo era que, se soubessem, jamais aceitariam seguir adiante naquela missão suicida. Sendo assim, apenas andou na direção de seu temor. Por mais que quisesse a lágrima, desejou, no fundo, que estivesse errada.

- Dá pra nos dizer o que está acontecendo? – pediu Mirian em meio a passos rápidos.

- Eu vou parar por aqui se não nos contar.

- Calem a boca as duas! Será que uma vez na vida de você não podem ficar quietas!?

- Assim que nos dizer o que está acontecendo.

Sorah parou. Mirian parou ao seu lado. Sabrina parou de frente para as duas.

- Eu não dou mais nem um passo se não disser onde estamos indo! – resmungou Sabrina.

- Não estamos indo. Chegamos. – admitiu Mirian.

Sabrina olhou pra trás. Havia um homem sentado numa pedra, com a parte detectada da lágrima numa das mãos, jogando para o alto e a agarrando em seguida.

Tinha cabelos castanhos claro, olhos negros e vestia uma capa como a dos guerreiros de Yume que conheceu, apesar de que lhe faltava a máscara.

- Hahaha… Vocês chegaram cedo. – disse ele.

- Esse homem é o terceiro guerreiro de Yume? – perguntou Sabrina.

Sorah franziu a testa. Não tinha energia de um guerreiro.

- Quase isso, minha jovem. Eu já fui um guerreiro de Yume, infelizmente. Mas como pode ver…

O homem afastou a capa, mostrando-lhes um ferimento horrível no abdômen, rasgando até mesmo a armadura de metal. Mas a carne estava podre e infestada de moscas e larvas. Algo realmente repugnante.

-… como pode ver, eu morri naquela batalha, quando Yume fez questão de salvar apenas aqueles três malditos.

- Mor...Morto?

- Hahaha… eu pareço bem vivo não é? A não ser é claro pelas larvas em meu peito e odor que exalo.

- Como foi que voltou do túmulo, criatura? – perguntou Sorah.

- Eu não sei. Sei apenas que devo a um homem como eu, um grande amigo. Como ele realizou tal proeza, não faço a mínima idéia. Bem que gostaria de saber. Mas como agradecimento, tenho apenas que matar algumas menininhas! Hahaha…um preço baixíssimo a se pagar pela vida, não acham? Minha vida pela de vocês! Hahaha... ele nem precisava pedir… eu vou matar tudo aquilo que estiver relacionado a Yume! Meu mestre disse que com essa coisa brilhante, vocês viriam até mim e vejam só! Deu certo!

Ele não sabia o que era a lágrima pois morreu antes que ela surgisse. E seu mestre, fosse quem fosse, estava com a segunda parte dela. E a desprezou ao ponto de usá-la como isca. Talvez, fosse forte o suficiente para não precisar dela. Era só isso que sabiam naquele momento.

- Sorah, você não vai lutar com ele?

- Sabrina, querida, se você ainda não entendeu… ELE ERA UM GUERREIRO DE YUME! Ou seja… SE ELE FOR CINCO VEZE MAIS FORTE QUE EU AINDA VAI SER MUITO POUCO!

Sabrina engoliu um seco. Por isso Sorah não queria dizer onde iam. Ela jamais teria ido junto. Sempre imaginou, desde que chegara ali, que Sorah era incrivelmente forte. E era. Para as pessoas de seu mundo. Mas para o mundo da lifing, sua força é relativamente pouca. O fato dela ser muito mais fraca que o morto deixou as humanas um tanto decepcionadas, e até impressionadas, por existir ser mais forte.

- Hahahaha! Isso mesmo, fujam, fica mais divertido!

- Não vamos fugir! Isso nunca! –bradou Sorah, retirando a espada da bainha.

- Mas o que poderemos fazer contra ele?

- Eu não sei, humana, mas eu não fugirei da morte jamais.

Com a espada em punho, Sorah correu. Tudo foi muito rápido. Quando abriram os olhos, a lifing já estava caída ao chão inerte. Talvez desmaiada, talvez morta. Nenhum dos golpes foi visto.

Mirian e Sabrina estavam sozinhas.

Pensaram em correr, em ajudar Sorah, em atacar, em esperar um ataque para se defenderem, em gritar por socorro. A verdade, é que não sabiam o que fazer em momento algum. O morto-vivo, riu do desespero das duas. Isso pouco antes de puxar uma foice de trás da pedra em que estava sentado.

Elas viram e sentiram a mesma coisa que Sorah. Um olhar frio, um movimento rápido, uma foice cortando o ar, sangue, uma dor repentina, um grito… escuridão.

 

                                     ***

 

Raiva. Uma imensa raiva percorria cada célula de cada veia de seu corpo. Estava prestes a explodir tamanha sua ira. A face vermelha de ódio e a expressão assustadora era a maior prova disso. Os olhos vermelho-sangue apenas comprovavam o fato. A dor era a menor das causas. E ardia, ardia amargamente. A dor da derrota.

Ajoelhada, Sorah dava murros no chão. A parte da lágrima que tinha conseguido foi roubada. Não tinha mais nada.

Não fazia idéia de quanto tempo se passara desde que a batalha acabou. Podiam ter se passado apenas cinco minutos, ou até cinco dias.

E não sabia onde estava. Esse era outro problema. O lugar não parecia uma prisão. Era uma espécie de gruta ou algo assim. Escuro, fechado, úmido, parecido com um túnel e com som de cascata vindo de fora, só pode ser uma gruta.

As meninas estavam ao lado, ainda desacordadas. Significa que aquele guerreiro não as queria como refém. Nem mortas, pois o único golpe mortal transferido foi à Sorah, que graças a sua subestimada velocidade, pode desviar, mesmo que por pouco, do golpe fatal. A cicatriz começava pouco abaixo do olho e descia até estar a dois centímetros de sua jugular. Não doia muito. Ela era fina e precisa. Não para fazer sofrer, mas para matar de uma só vez. E como Sorah não morreu, também não sofreu muito, estando quase sem dor alguma. Sua maior dor, era a da derrota. E não só esta, mas uma outra que preferiu guardar para sí.

  Em meio a seus lamentos, Sorah ouviu passos vindos de onde desconfiava ser a saída, devido a claridade maior que do lado oposto.

Os passos ecoavam por toda a caverna. Não descartou a possibilidade de ser o guerreiro que as fez de refém. Mas pra que ele teria raptado Sorah junto das guardiãs? Parecia algo inútil. Se eram elas que o mestre do tal guerreiro queria, pra que se preocupar em trazer uma lifing?

Onde estavam era bem escuro, mas pode-se fazer uma sombra fraca na parede, que ia aumentando conforme o ser se aproximava.

Sorah se levantou, pôs-se a frente das meninas e retirou a espada da bainha, em posição de ataque.

O que surgiu, definitivamente não era o guerreiro. Era apenas um rapaz, talvez da mesma altura de Sorah, armado apenas de um pano molhado e uma trouxa. Se é que essas coisas podem ser consideradas armas. Tem cabelos castanhos bem claros, quase loiros, amarrados num rabo. Coisa absolutamente desnecessária, pois ele é tão curto que preso mesmo, fica só uns quatro centímetros. Os olhos são verdes. Ele é magro e um pouco forte. Podia ser considerado como um corpo de guerreiro iniciante talvez. Nada como Dart, que parecia freqüentar uma academia mais do que a própria casa.

Ao ver Sorah desperta o rapaz soltou o que levava nas mãos e as ergueu em cima da cabeça, em sinal de rendição.

- Se vai me matar, poderia pelo menos me dizer um obrigado. - disse ele em meio a soluços de medo.

- Você não é um servo do guerreiro de Yume?

Sorah apontou a espada diretamente para o nariz do jovem, que levantava as mãos cada vez mais.

- Não, não! Eu sou Hebel, apenas Hebel!

- Nomes não dizem nada. Diga de uma vez, quem é você?

Sorah encostou a ponta de sua espada no meio do nariz de Hebel.

Sabrina diria, se estivesse acordada, o quão complicada uma pergunta como essa pode ser. Quando alguém pergunta “Quem é você” e não se refere ao seu nome, o melhor a se fazer, é responder com outra pergunta: “diga você, quem eu sou?”. Sim, pois, para cada pessoa que conhecemos, somos um alguém completamente diferente do que somos pra nós mesmos. E se Sabrina estivesse acordada pra dizer tudo isso, Sorah estaria confusa o suficiente para dar-lhe um soco e mandá-la calar a boca.

- Sou apenas o cara que te salvou a vida, e que vem humildemente pedir um obrigado, trazendo ataduras e comida, quando é ameaçado de morte!

- Eu não pedi ajuda de ninguém. Por que não devo te matar? Deveria saber, meu caro, que quando se leva uma lifing desacordada para uma caverna, ao acordar, ela irá te matar sem piedade. Mas… se me der três motivos bons pra que eu não te mate, eu posso pensar.

Sorah podia contar quantas gotas de suor caiam do rosto do rapaz aquela altura.

- Primeiro, eu te salvei, você me deve algo. Segundo… eu sei que até os lifings têm um pouco de honra, logo imaginei que você não mataria quem te salvou. Terceiro…

Sorah espetou a ponta do nariz de Hebel, que estava quase desmaiando.

- …terceiro, eu estou desarmado e isso não seria justo!

Sorah pensou um pouco, apenas para deixá-lo aflito.

- De acordo.

Em seguida, guardou a espada e mandou que cuidasse das meninas. Mas para seu espanto, ele pegou um pedaço de pano que estava em sua mão e colocou sobre o corte de Sorah.

- Tem um remédio pra cicatrizar mais rápido e não deixar marcas depois…

- Nunca mais toque em mim de novo, ouviu, humano?

- Desculpe-me, não vai acontecer mais!

Sorah sentou-se num canto enquanto Hebel cuidava dos ferimentos das guardiãs. De pernas cruzadas, começou a meditar.

- São escravas suas?

A meditação de Sorah foi interrompida repentinamente, fazendo-a abrir um dos olhos.

- O que disse?

- Essas humanas. Elas são escravas suas?

- Escravas? Por que eu teria escravas?

- Um dos reinos lifing está escravizando humanos.

- O reino da noite não pode ser. – Sorah estava ciente de que não havia ninguém liderando este reino, pois pertence a sua família – Nem o reino antigo – o pertencente a Dart.

- Não, não. Ouvi dizer que é o rei do território de fogo.

O território de fogo, a quem não conhece, fica a impressão de um lugar terrível. Com rios de lava, vulcões para onde quer que se olhe entre outras coisas. Mas quem já foi até lá, sabe perfeitamente que tudo aquilo não passa de um grande deserto. Enquanto que o reino antigo recebeu esse nome simplesmente por ser o primeiro a se formar naquelas terras, e o reino de Sorah, o da noite, conhecido por ser noite durante quinze horas, e dia apenas pelas outras nove.

- Não vim de lá.

- Nasceu em território humano?

- Não.

- Está numa missão de seu reino? Espionagem?

- Não.

- Então o que faz no mundo humano?

Sorah pensou numa resposta pra dar, mas não tinha respostas nem pra sí mesmo. Sabia que estava naquele lugar. Mas que era apenas por que não podia ficar no mundo lifing sem que os habitantes de seu reino pedissem para que ela os comandasse. E isso ela não queria pelo simples fato de gostar de lutar não por obrigação, mas por prazer. Comandar um exército? Não, obrigada. Estava melhor assim, com seus súditos pensando que está morta.

Hebel pensou que o motivo de Sorah estar ali era segredo, devido ao fato de que ela não respondeu. Também não insistiu em saber.

- Desculpe-me, senhorita… senhorita…

- Sorah. Apenas Sorah.

- Certo. Desculpe-me Sorah, mas… você não seria casada, seria?- perguntou ele timidamente.

Sorah sabia muito bem que tipo de pergunta era aquela. Mas concluiu que o rapaz não poderia ser assim tão louco, e apenas respondeu:

- Não.

Após alguns segundos, com um sorriso sacana e a maior “cara-de-pau” (como diria Mirian), Hebel termina de fazer a pergunta que realmente queria:

- Gostaria de se casar comigo?

Sorah foi ficando vermelha de raiva, enquanto Hebel continuava com o sorriso bobo.

- HUMANO IDIOTA, O QUE TE FAZ PENSAR QUE EU ME CASARIA COM ALGUÉM COMO VOCÊ?

Em seguida, lhe deu um soco típico dela mesma.

Com os gritos, Sabrina e Mirian despertaram. Com o soco, desejaram ainda estar dormindo.

Hebel tirou momentaneamente o sorriso bobo da face enquanto massageava a própria cabeça do golpe de Sorah. Esta, voltara a meditar. O rapaz correu até as meninas, que se levantavam devagar.

- Vocês estão bem? – perguntou ele com uma voz doce e serena.

- Acho… acho que estamos. – Respondeu Mirian sem dar muita atenção ao jovem.

- Então… Uma de você quer se casar comigo? – o sorriso idiota voltou-lhe à face rapidamente, e sua voz modificara-se de modo estranho.

- O que?! Mas eu só tenho treze anos e nem sei que você é!

- Prazer, Hebel. – segurou a mão de Sabrina e apertou num comprimento forçado – Quer se casar comigo?

- Bom, isso não muda o fato de que só tenho treze anos.

- Tudo bem, eu não ligo.

- Mas eu ligo! – disseram as duas juntas tentando acabar com o papo ridículo.

Hebel não deixou de se sentir um tanto humilhado.

- Hebel? – chamou Sorah ainda de olhos fechado da meditação.

- Sim?

- Você é um idiota.

Não havia chance alguma de Sorah ou qualquer outra das meninas presentes pensar em se casar ou ter um relacionamento que seja com Hebel. E deixaram isso perfeitamente claro. No entanto, o rapaz parecia feliz e animado aquela altura.

- Hei, Hebel! – chamou Mirian.

- Estou aqui.

- Por que você parece estar tão feliz?

- Porque estou feliz.

Mirian admitiu que fez a pergunta errada, mesmo que a qualquer pessoa normal, a resposta é que estivesse errada.

- Eu quis dizer qual é o motivo de você estar tão feliz se levou três foras em menos de cinco minutos.

Hebel olhou confuso para Mirian, que ainda esperava uma resposta. Obviamente, as pessoas daquela ilha, ainda não chegaram ao tempo de saber o que significa a palavra “fora” na linguagem adolescente.

- Você levou três foras, ou seja, três tocos, ou melhor… - o vocabulário de Mirian não era bom o suficiente para saber como ficaria essa palavra na linguagem culta. - sei lá! Deixaram-te no vácuo, de cara no chão e…

- Cala a boca, Mirian! Só vai piorar cada vez mais a situação! Quer traumatizar o rapaz, é? – bronqueou Sabrina – O que acha de dizer simplesmente que três garotas recusaram o pedido, desesperado, diga-se de passagem, do Hebel.

- Boa idéia. Mas eu não vou repetir tudo isso aí de novo.

- Bom, é porque eu nunca recebi tantas meninas em casa!

- E se não parar de ser tão estúpido, a única coisa que você vai receber em casa são convidados pro seu velório. – ameaçou Sorah, no seu jeito todo especial de pedir silêncio.

Alguns poucos minutos na maior monotonia se passaram. Mirian olhava para o teto da caverna, Sabrina para Sorah, esta meditava, Hebel…bem, Hebel não estava fazendo absolutamente nada.

- Querem dar uma volta?

Hebel quebra o silêncio repentinamente, e sua voz quase que corta o ar ao seu redor, estourando nos ouvidos de quem já havia se acostumado com a quietude. Resumindo, ele assusta Sorah.

A lifing sequer abriu os olhos. Mas sua feição mudou de serenidade para ira quase num aviso. Um aviso, que todos ali foram inteligentes o suficiente para entender. Sim, é melhor dar uma volta. Ou quem sabe duas, três. Mas que seja agora. Antes que Sorah entre em erupção.

Sabrina se sentiu aliviada de se livrar do ar pesado da caverna. Estava um dia lindo, sem nuvens… e o Sol também estava muito forte. A pequena queda d’água pela qual passara, até para Sabrina que tem poder de fogo, foi tranqüilizante.

Esta mini-cachoeira caía num lindo lago, onde se podia ver carpas em cardume, tão límpida a água. Talvez ali pudessem ter um pouco mais de paz do que nos outros dias. Se é que nos últimos dias elas tem tido alguma paz.

A água gelada até o peito amenizava o calor. E lhes dava um banho merecido. Apesar de que suas roupas são impermeáveis. E agora, não poderiam tirar nem parte dela. Hebel estava presente.

- Então, como vocês estão? Quero dizer, encontrei vocês num estado péssimo dois dias atrás.

- Você nos encontrou? Desculpe-me, eu não sabia. Se soubesse teria agradecido. Bom, deixa-me dizer meu nome, que ainda não me apresentei. Eu sou Sabrina.

- E eu sou Mirian. Muito prazer, Hebel!

- O prazer, definitivamente, é todo meu.

- Quantos anos você tem? – se interessou Mirian.

- Quinze. E vocês?

- Nós duas temos treze. O que alguém jovem como você está fazendo sozinho por um mundo tão perigoso?

- Seu nome é Sabrina, não é? Bem, Sabrina, eu conheço bem as leis, mas tive problemas em meu vilarejo.

- Leis? A que lei você se refere?

- A lei do andarilho, claro. É a lei que diz que ninguém deve recusar abrigo a quem estiver sozinho em tempos de guerra. Mas bem, eu nunca pedi abrigo a ninguém. Eu fugi de meu vilarejo a alguns anos, devido à problemas familiares. Mas e vocês? O que meninas tão jovens fazem num lugar como esse, e ainda por cima, com uma lifing, o que é mais perigoso ainda?

- A gente não teve muita escolha. Somos guardiãs, mas viemos de um outro mundo a alguns dias. E quanto à Sorah…agente aprendeu que ela late mas não morde, entende? Ela só ameaçou até agora, mas tem nos protegido com a própria vida.

- Vocês são guardiãs do que? Não me digam que é da…

- Lágrima.

- Meu Deus, isso é uma honra muito grande! Eu estou nadando com meu futuro, isso é emocionante. Cuidem bem dele, por que só tenho um, heim!

- Tudo bem… Quero dizer, estamos dando o máximo de nós.

Estavam? Claro que não fizeram muito até agora mas aquele era o máximo. Elas eram fracas não sabiam usar o pouco poder que tinham e essa era a única verdade.

- Mas sempre ouvi dizer que eram quatro guardiãs.

- Bem, era. Mas a do gelo foi morta, e a da terra ainda não encontramos.

- Acho que isso não vai demorar. Quando o planeta está em perigo, a jóia reúne as suas protetoras. Ao menos é o que diz a lenda.

- Então vamos dar uma ajuda à lenda e parar de papo pro ar. - a voz de Sorah vinha de trás da cascata.

A lifing saltou na água e caminhou até a margem.

- Acham que ficaremos aqui pra sempre? Vocês estão muito fracas para o tipo de desafio que enfrentarão. Por isso, procuraremos o treinamento que lhes foi reservado. E sim, existe um treinamento reservado pra vocês. Fica a um dia e meio daqui. Provavelmente a guardiã da terra está lá. Eu pensei que pudéssemos economizar tempo não levando vocês treinar, mas estava enganada. Se existe algo essencial nisso tudo, é o treinamento de vocês. Agora saiam da água, se despeçam do seu amiguinho e vamos embora.

- Mas o Hebel não pode vir com agente? – perguntou Mirian. - é mais um pra lutar.

- Não creio que esse idiota seja útil numa luta, mas se assim quiserem… Mas eu não tolerarei suas idiotices.

Hebel realmente queria seguir com elas. E já sabia a quem devia respeitar, e com quem poderia ser ele mesmo. Adoraria se tornar guerreiro.

Logo, havia, novamente, um homem e três mulheres no grupo. Um homem? Bem, Hebel era, relativamente, alguns anos mais velho que Dart. Mas este, sem dúvida alguma, era muito mais maduro, forte, inteligente e… bonito, diga-se de passagem. Hebel parecia-se mais com uma criança muito alta. Em corpo e cérebro.

Adentrando-se novamente na floresta, Sorah tirou o cinto que prendia sua bainha. Ele era todo feito de pano. O segurou na mão, enquanto olhava para a espada embainhada com a outra.

Enquanto isso, Sabrina e Mirian explicavam a rotina de caminhadas ao jovem.

Sorah puxou um pouco a calça larga até acima do joelho. Encaixou a espada junto de sua perna e procurou algo pra amarrá-las.

- Hei, Hebel, me dá seu laço de cabelo. Você não precisa dele.

- Tudo bem, mas o que você vai fazer?

Só então haviam se dado conta do movimento estranho e repentino de Sorah. Ela, que havia prendido a espada na perna esquerda, agora colocava a calça sobre ela, ainda segurando o cinto que antes a prendia.

- O que está fazendo, Sorah?

A lifing sorriu à pergunta de Sabrina.

- Não estava se queixando de apenas andar no meio de florestas? Pois bem. Seu treinador fica numa cidade grande. Enorme, pra ser exata. Só não é maior que a cidade do rei humano. Yelion, a cidade do comércio. Eu só estou escondendo minha espada. E é melhor que também façam isso. Eles poderão nos ver como criminosos caso as vejam. E pra qualquer um que pergunte, eu serei cega e muda.

Sorah colocou o cinto vendando os olhos.

- E por que isso?

- Humanos não gostam muito de lifings, sabem… e se ainda não repararam… EU SOU UMA. Tampando meus olhos, eles não verão sua cor. Não falando não verão meus dentes. Agora vamos em frente.

- Mas como saberá o caminho estando de olhos vendados?

- Conheço muito bem este lugar. E não é só através de minha visão precária que sei onde estou.

Mais alguns metros dali, a floresta terminaria pra começar a cidade. Não havia nem um tipo de portão, barreira ou muro impedindo a entrada de mais pessoas. Fosse quem ou o que fosse, era bem vindo ali.

E tinha muita, mas muita gente mesmo. As pessoas pipocavam de um lado pro outro em busca de alguma inutilidade. Era muito parecido com certas cidades que Sabrina e Mirian conheciam muito bem, do mundo de onde vieram. A diferença é o número nulo de prédios e as inutilidades, que aqui, era mais inúteis ainda. Coisa que chamava demasiada atenção das pessoas.

Compradores e vendedores, gritavam fazendo oferta. As barraquinhas, sobrepostas uma sobre as outras, balançavam conforme seu dono apoiava-se nela pra chamar a atenção de um comprador. E o barulho de tudo isso? Insuportável. Agradável somente aos ouvidos de Mirian e Sabrina. Mas que saudade de multidões! Mas que saudade de seres humanos!

- Podemos comprar alguma coisa?

Sorah não respondeu à pergunta de Sabrina, simplesmente ignorando-a. Estava se passando por muda. Apenas abrir a boca seria suficiente pra causar pânico geral devido aos seus dentes.

Num beco, extremamente sujo e quieto, Sorah adentrou-se puxando o resto do grupo que ainda tinha os olhos brilhando com tanta coisa linda. Linda, sim. Útil? Não. Nem muito menos barata.

- Olhem aqui, querem para de achar que sou rica? Aquele dinheiro que paguei a armadura de vocês foi roubado, se querem saber. Não posso pagar nada disso nem se quisesse. Além do mais, o que sobrou está contado pra pagar a hospedagem. – avisou Sorah baixinho, pra que ninguém os vissem.

- Hospedagem?

- Exatamente. Não podemos andar durante a noite numa cidade. Ficaremos em dormitórios.

- Mas… se me permite, senhorita Sorah… - chamou Hebel.

- Me chame apenas de Sorah.

- Certo Sorah. Mas de acordo com a lei do Andarilho, depois das seis da tarde, podemos pedir abrigo sem pagar nada.

- Isso só vale pra quem está sozinho.

- Mas nós não precisamos dormir na mesma casa, certo?

Era um ótima idéia. Ótima não, brilhante. Mas mesmo que guardassem dinheiro, não poderiam gastá-lo. O proprietário da casa que visse um andarilho cheio de compras pedindo abrigo, teria o direito de recusá-lo imediatamente, com o pretexto de que o viajante teria vindo á cidade, gasto todo seu dinheiro, e agora se apóia nas leis para dormir num canto quente de graça.

Foi difícil à partir daí olhar todos aqueles produtos – alguns que nem se sabia pra que servia, mas que parecia barato e bonito – legais e resistir a tentação de comprar. As ofertas dos vendedores, embora tentadoras, não superaram a cara fechada de Sorah.

Caminharam o máximo que lhes foi possível no meio daquele monte de gente louca. Pararam apenas quando os vendedores começaram a se retirar. E era só nesta hora que as pessoas saíam das ruas e iam para suas casas ou hospedarias. Logo, as ruas estariam vazias, quietas e seguras.

Sorah tirou a venda dos olhos e a guardou. Havia pensado bem na idéia brilhante de Hebel. E por menos que parecesse, ela tinha defeitos.

- Não vamos poder parar agora. Não para dormir numa casa humana. Principalmente separados. É extremamente perigoso.

- Por quê?

- Hebel, seu idiota, nunca esteve nessa cidade antes, não é?

- Não nos últimos… - calculou nos dedos –quatorze anos.

- Ela mudou muito de lá pra cá. De dia é a cidade do comércio. À noite, se torna cidade de ladrões. Os preços daqui são muito baixos em relação a outros pontos da Ilha. Não fazem idéia do motivo não é? Bem, os habitantes, à noite, roubam os clientes das hospedarias e principalmente aqueles que pedem abrigo.

- E como as pessoas não pararam de vir aqui?

- Eles trocam os produtos bons por quebrados. As pessoas nem notam.

- E como é que você sabe disso?

- Já fui roubada aqui. E os vi fazendo isso.

- E não fez nada?

- Está brincando? Eu matei dois deles!

Silêncio. A rua foi preenchida dele. Não havia ninguém nas ruas e a noite já tinha caído àquela altura. O ar se tornou frio e cortante. Atravessava apele e se instalava sem rodeios nos ossos dos jovens. Foi quando um único som foi ouvido. O do vento passando pelas casas tortas, assoviando.

- E afinal, onde vamos dormir? – quis saber Mirian.

- Onde quiserem.

- Como assim?

- Deitem por aí. Hoje dormiremos fora.

- De novo? Fala sério, é a única vez que passamos por uma cidade e onde vamos dormir? No chão, claro! Escuta, Sorah, já ouviu falar de uma coisa chamada cama?

- Sim, já. A última vez que dormi em uma foi há pelo menos vinte anos. Agora pára de reclamar e deita.

Sorah encostou-se na parede de uma casa tão torta, que seu angulo em relação ao chão deveria ser de, no máximo, cinqüenta graus. Como ela se sustentava, era um grande mistério.

Os demais deitaram atrás dos arbustos de outra casa. E assim, devidamente acomodados e absolutamente desconfortáveis, adormeceram ao som do vento frio.

 

                                              ***

 

 

- Acordem, humanos inúteis! Estão pensando que é farra? Levantem de uma vez!

Sorah os despertou e saiu andando na frente. Os vendedores já começavam a armar as barracas de venda àquela hora. Apesar de ser, talvez, mais cedo do que Sabrina e Mirian normalmente acordariam pra ir pra escola.

- Estou começando a ficar com raiva dessa Sorah.

- Mirian, você acha mesmo que ela se importa?

- Fala sério. Quem foi que a elegeu como líder do grupo? Porque eu com certeza não fui.

- Eu ouvi isso, humana! – Sorah, apesar de estar a uns vinte metros dali, ainda escutava com perfeição. – Andem logo, se eu tiver que apressar vocês de novo, garanto que vão se arrepender.

Hebel foi apenas o primeiro a disparar na frente para alcançar Sorah. As outras o fizeram logo em seguida.

Mais algumas horas e as ruas estavam lotadas novamente.

Ao meio dia, Sorah parou em frente a uma casa grande, no fim de uma rua. Aliás, rua que era uma das únicas não usadas para comércio. Ficava distante e não tinha saída.

A casa era toda decorada com vitrais e esculturas de guerreiros e guerreiras. Parecia uma igreja. Tinha jardim grande e até cercas. Pintada de um humilde amarelo claro, era a única coisa simples na decoração.

Sorah receava entrar. Estava nervosa e apreensiva. Apertava as mãos suadas e olhava as esculturas.

- O que aconteceu, Sorah?

- O treinador de vocês é aqui. O escolhido para treinar guardiãs.

- E por que está tão apreensiva?

- Não é nada. É que… conheço esse mestre. Ele nunca me deixará entrar aí.

- Você vai morar na cidade enquanto treinamos?

Sorah riu.

- Estão brincando? Isso é um tchau. Eu vou procurar MEU treinamento e vocês ficam aqui o resto do ano. Sozinhas. Hebel também tem que ir. Ele não é uma guardiã e esse homem treina apenas pessoas relacionadas a Yume.

- Um tchau? Mas você vem nos buscar depois, certo?

- É claro. Eu ainda quero a lágrima. E vejam se ficam bem fortes heim? Não vou mais defender vocês de nada depois disso.

- Então… O que fazemos agora?

- Entrem aí, digam que são guardiãs e ele vai dar um lugar pra dormirem. É muito simples. Acho que a guardiã da terra já está aí dentro, treinando. Então se esforcem e a alcancem. Eu vou procurar um bom treinador pra não estar mais fraca que vocês daqui a um ano.

- Certo… Então… Tchau, Hebel! – disse Mirian sorrindo.

- Tchau… - respondeu ele um pouco triste.

- Tchau Hebel, tchau Sorah. – Repetiu Sabrina.

- Tchau, humanas estúpidas. Tornem-se um pouco menos inúteis! Volto aqui em exatamente nove meses. Estejam prontas.

 

Foi uma espécie de adeus. Depois daquela cena, Sabrina e Mirian entraram na casa e não saíram mais. Hebel se despediu de Sorah e logo partiu também, procurando um treinador para si. Ele também se encontraria com elas novamente em nove meses, pois aqueles dias foram suficientes para se tornarem amigos. Nunca mais vê-las seria horrível.

Já Sorah, com todo seu conhecimento de mestres, sabia exatamente aonde ir. E agora, sem as humanas para atrasá-la, percorreria grandes distâncias em curto tempo. Possibilitando a escolha do melhor treinador possível. Não era apenas as guardiãs que se tornariam infinitamente mais fortes. Sorah jamais se permitiria ficar pra trás. 

Mas não queria dizer que estavam seguras. Muitas coisas vêm acontecendo alheias as pequenas meninas. Uma trama já estava em andamento. Muitas coisas precisavam ser reveladas.

Era tudo muito mais sério do que poderiam imaginar.

“Mas por enquanto, deixemos que vivam”

 


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