A Arte Maior escrita por Fernanda Lima


Capítulo 3
Palavras - Parte 2




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O dia amanheceu cinza e nevoento, combinando talvez com a profunda atmosfera de obscuridade que planava sobre aquele vale de conto-de-fadas. 

Lia despertou de uma noite agitada. Seus sonhos eram pouco nítidos e confusos, mas ela conseguia sentir que possuíam um significado maior. 

Quando desceu a velha escadaria de madeira, usando as vestes envelhecidas de sua desaparecida tia, encontrou seu tio concentrado no que parecia ser um grande e antigo pergaminho.

- Tio Dante. - Ele não a ouviu. 

Ela se aproximou dele, e cutucou suas costas cobertas pelo  empoeirado agasalho de lã. Ele deu um sobressalto e olhou para trás, dando um largo sorriso ao ver a garota de cabelos cor-de-mel.

- Dormiu bem? - Ele perguntou.

Ela assentiu, séria, como se estivesse procurando a melhor forma de falar sobre algo desagradável. Ele percebeu isso, mas se manteve impassível.

- Venha cá, sente-se. Conte-me o que anda passando nessa sua cabecinha.

- Bom... - Ela pensava numa forma de exprimir em palavras aquilo que estava sentindo. - Faz apenas um dia que descobri quem realmente sou, qual o passado de minha mãe e qual é a minha verdadeira missão nesse mundo. 

- Eu sei que é difícil para você ter ouvido uma coisa daquelas, depois de todos esses anos vivendo como se nada disso estivesse acontecendo.

- Sim, mas é que...

No dia anterior

- Então, você descansou? - Ele acordou a menina sonolenta aos poucos, enquanto ela, confusa, tentava se lembrar de onde estava.

- Oi, tio... 

- Você caiu no sono ontem, antes que eu pudesse começar a te contar tudo o que tenho para dizer. Mas agora que você está acordada, pegue algo para comer e sente-se aqui, pois temos muito o que conversar.

Ela apanhou um pão de dentro da cestinha de palha que ficava pendurada abaixo da janela de madeira, e voltou para junto de seu tio. Tentava clarear sua mente ao máximo, pois tinha consciência de que o que estava por vir não seria fácil de digerir.

- Lia. - Ele se tornou sério e pensativo naquele instante. - Eu primeiro preciso que você prometa que vai manter a cabeça aberta para tudo o que vou lhe contar. É claro que no início vai ser difícil de acreditar, por mais que você já tenha visto e sentido com seus próprios olhos na noite passada, mas eu quero muito que você tente.

Ela assentiu. Estava totalmente concentrada no que estava por vir. Seu coração dava saltos, enquanto sua mente teimosa buscava uma forma de conter a excitação de saber a verdade.

- Então, vamos começar.

Ele deu uma breve pausa.

- Lia, quando você era criança, uma vez você me perguntou se o que podíamos enxergar pela janela era tudo o que existia. É claro que eu disse que não, mas além disso, te falei que algumas pessoas podiam ver mais pela janela do que outras, e que essas pessoas muitas vezes podiam muitas vezes até mudar a paisagem que viam.

- Eu não me lembro disso.

- Claro que não, você era muito pequena. Por isso estou lhe contando. Naquela época, você provavelmente também não entendeu o que eu quis dizer com aquilo. Mas e agora, você consegue compreender, dadas as circunstâncias?

Ela refletiu por alguns instantes.

- Acho que você quis dizer que há mais coisa nesse mundo do que podemos ver normalmente. E que também é possível alterar a realidade.

- E essas habilidades, de ver mais do que o normal e de mudar a realidade, não são inatas. Se você as tem, é porque em algum momento de sua vida, seja na infância, na fase adulta ou na velhice, as aprendeu. É com o intuito de aprender e difundir tais habilidades que surgiram as ditas Artes Ocultas. 

- Então, aquilo que minha mãe estava fazendo ontem...

- Era uma forma elevada de magia, entendida como transmissão mental de ação e reação. 

- E como ela sabe fazer isso?

- Obviamente, ela teve que aprender. Algumas pessoas aprendem isso por conta própria, através dos livros; outras, ainda, têm tutores ou mestres que as ensinam; porém, no caso dela, teve a oportunidade de fazer o que pouquíssimos conseguem: frequentar a maior instituição de ensino e pesquisa mágicos já desenvolvida pelo homem: a Real Academia de Artes Ocultas. 

Lia estava trêmula, ela mal conseguia piscar. Ela nunca imaginou a existência de algo tão grandioso assim. Nunca sequer cogitou que a magia pudesse realmente existir fora dos livros infantis. Isto é, pelo menos até ter um testemunho ocular de que algo estranho estava realmente acontecendo por aquelas bandas.

- Eu não consigo visualizar algo assim. Como é uma academia de artes ocultas? Como elas são ensinadas? O que mais as pessoas fazem ali dentro? Como você faz para ingressar? E o que isso tem a ver com aquela figura estranha que apareceu na nossa casa ontem?

- Calma, Lia, calma. Tudo será devidamente esclarecido. Vamos responder uma pergunta de cada vez, mas eu gostaria de começar pela última. Antes de respondê-la propriamente, eu gostaria de fazer uma pergunta: por que você vacilou antes de pronunciar a palavra "necromancia" ontem à noite?

- Eu... eu não sei. - Ela sentiu seus pêlos se eriçarem apenas de ouvir o tal nome. - É como se um sopro gélido tivesse percorrido o meu corpo. Essa palavra me soou pesada e estranha, como se houvesse algo de sinistro por trás dela.

- Bom. Você não deixa de ter razão. Deixe-me antes explicar uma coisa. O que você pensa sobre a morte?

- Eu sempre acreditei que ela não é o fim. Mas não sei muito mais do que isso.

- Está certo. Ela realmente não é o fim. Muitos acreditam nisso. Mas poucos sabem como ela é dividida. - Ele deu um longo suspiro e se levantou, começando a caminhar pela pequena e abafada sala de estar. - Hades, Sheol, Niflheim, Yomi. Muitas culturas, muitos nomes e conotações foram dados a ele, mas de uma forma ou de outra, sempre está presente. Ele, o dito Reino dos Mortos, realmente existe e pode ser acessado a partir de uma forma especial de arte oculta, a dita necromancia.

Lia engoliu em seco.

- Quase todos os que morrem são mandados para ele. Lá, há uma divisão natural feita entre os justos e os injustos, e uma guerra sem fim toma conta daquele lugar maldito. Os poucos que ficam em uma espécie de limbo entre a vida e morte, normalmente pessoas que não aceitam que estão mortas ou aquelas que ainda têm uma missão neste mundo, seja ela boa ou má, servem como mensageiras do submundo para os vivos que sabem de sua existência, mas não dominam a arte da necromancia. Enquanto isso, alguns poucos corajosos se aventuram na tal arte, e conseguem acessar o Reino, muitas vezes tomando partido de um dos lados, sendo seduzidos por suas ofertas.

- E isso é perigoso, certo?

- Geralmente as ofertas do lado negro são mais sedutoras do que as do lado dos bons, justamente por aqueles não terem quaisquer escrúpulos. Então, muitos dos que entram no mundo da necromancia acabam por cometer atos terríveis, e a se converter também à magia negra.

- Entendi. - Mil pensamentos passavam pela cabeça dela, mas havia uma pergunta que não queria calar. - Mas o que isso tem a ver com a minha mãe e com o que aconteceu ontem? 

- É aí que eu queria chegar. Sua mãe, pessoa de garra, foi uma dessas corajosas.

O coração de Lia deu um solavanco.

- Como é? A minha mãe é uma necromante?

- Na verdade, sua mãe é A necromante. Ela entrou em um grupo de necromancia durante os tempos de academia, e de todos os sete, foi a única que não se converteu ao lado dos impuros. 

As peças do quebra-cabeça começavam a se encaixar em sua mente. Ela imaginava o que aquilo poderia ter significado na vida de sua mãe.

- Então os outros seis resolveram persegui-la por ela não ter seguido o mesmo caminho que eles, estou certa?

- Correto. E, depois que o selo do livro foi quebrado, eles finalmente a acharam, e não vão descansar enquanto ela não seja convertida, ou destruída.

Destruída. O corpo dela gelou e ela desatou em lágrimas. Dante sentou-se ao seu lado e a abraçou, tentando reconfortar a menina que agora sabia de todo o passado - mas mal desconfiava do que estava por vir.


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