Bem ao Lado escrita por Alessa Petroski


Capítulo 40
Capítulo 40




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A tesoura afiada fazia seu trabalho impecavelmente. Ela subia e descia, indo para a esquerda e para a direita, comandada por uma mão experiente. Paola cortava os fios dos meus cabelos com maestria a mais tempo do que eu conseguia recordar. Ela terminou o corte, o analisando com seus olhos verdes cor de folha, e espanou meu rosto com uma escova macia de cerdas brancas.

– Está pronto - ela diz puxando a capa que estivera ao redor do meu pescoço durante o processo.

– Você tem mãos de fada, Paola - falo pegando em meu cabelo levemente molhado, sentindo a maciez dele e a falta de alguns bons centímetros.

– Quisera eu ter mesmo. Ontem, Nando saiu de casa furioso por eu ter estragado o jantar, salgando a massa. Mas não sei o que fazer, menina, sou péssima na cozinha.

– Então somos duas - falo olhando a nossa imagem duplicada pelo espelho largo.

Paola e eu possuímos um físico bem parecido, ambas com sobrancelhas negras e finas, um quadril volumoso e quase a mesma altura. Às vezes, eu pareço mais com ela do que com minha mãe.

– O que anda acontecendo com você? - pergunta ela.

– Por que? Tem algo de errado comigo? - pergunto em tom de desespero.

– Claro que tem! - ela levanta as mãos ao céu - Você está calada. Lembro bem que sempre foi difícil te fazer ficar quieta enquanto eu cortava seu cabelo porque você não parava de falar.

– Não é nada de mais, tia, coisas da escola - falo escorando a cabeça no encosto da cabeça para olhar o teto simples do salão de beleza dela.

Tia Paola era a irmã mais nova do meu pai e a que mais gostava de mim. Isso era fácil perceber porque diferente das outras ela não virava a cara quando me via.

Ela tirou o lenço laranja que usava na cabeça e o enrolou no pescoço, deixando soltas as ondulações negras de seu cabelo.

– Como ele é? - ela pergunta sentando-se ao meu lado.

Não respondo de imediato e ela vira minha cadeira para ficar de frente com a sua de forma brusca, fazendo meu pescoço doer.

– Alto? Magro? Tem o cabelo azul? - ela tenta adivinhar.

– 1,90, olhos escuros, cabelo preto, um corpo de matar qualquer um - respondo mordendo a língua por ter dito aquilo daquele jeito.

– Belo partido. E qual é o problema?

– Ele é um sugador de sangue da época da Primeira Guerra.

– Tudo bem, senhorita rabugenta, saia do meu salão.

– Ai, tia, desculpa - falo olhando para ela - É sério, sinto muito.

– Eu também estou falando sério. Tenho que arrumar o cabelo de uma noiva. - ela diz organizando em sua maleta o material para penteados.

Saímos do salão dela, e minha pele reclama por ter saído daquele ar gélido para aquela temperatura escaldante da tarde. Senti certa apreensão pela ironia que usei ao falar com Paola, por ter esquecido que a sensibilidade dela não tolerava isso. Senti-me péssima.

– Me desculpa, tia?

– Como não desculpar, se você me pede com essa carinha de cachorro - ela fala e me aperta a bochecha, depois beija meu rosto - Vai dar tudo certo entre vocês.

– Como pode ter tanta certeza?

– Porque eu sinto - ela sorri revelando dentes pequeninos e reluzentes.

Engulo em seco por conhecer bem as previsões de tia Paola. Se havia alguém com um sexto sentido aguçado era ela.

– Obrigada pelo corte, tia.

– De nada - ela entra em seu carro pequeno e vermelho estacionado em frente ao salão - Lembre-se do que seu avô dizia sempre: continue andando, sem medo de cair ou de correr.

– Vou lembrar - falei e ela começou a dirigir para longe.

Fiquei parada sem saber para onde ir, lembrando-me do vovô Douglas, que viaja para os lugares mais selvagens do mundo, com uma coragem inabalável. Ele deveria estar em algum lugar da Ásia, provando de uma cultura bem diferente da nossa. Certa vez ele me revelara que viajava para fugir das lembranças do grande amor de sua vida, que o deixara há alguns anos, devido a doenças cardíacas. Era bom relembrar vez ou outra que o sangue dele e de vovó corriam em mim também, carregados de um grande amor.

De repente soube para onde deveria ir, para onde eu deveria estar. Andei quase correndo por aquelas ruas, em busca do orfanato onde eu sabia que ele estaria.

Fazia quase três semanas que eu não o via, mas conhecia bem o lugar onde ele passaria as tardes de sábado, com voluntários da escola. Ele e seu grupo estavam repintando partes do orfanato com a tinta doada pelos pais dos alunos. Minha mãe havia feito questão de doar duas latas de tinta grande, na esperança de que pelo menos a parede de um lugar eu fosse pintar.

Além de minha recusa em pintar havia meu distanciamento calculado do Lucius. Ele não participava das aulas de teatro e eu não me envolvia com o projeto beneficente dele. Víamos-nos apenas na sala de aula, e nem mesmo cheguei a cruzar com ele pelo apartamento de Giane. Ou ele estava fora de casa ou trancava a porta do quarto, deixando claro que ninguém deveria perturbá-lo.

De certa forma a recusa dele me confundira com o que ele havia me dito no banheiro feminino um tempo atrás. Ele dissera que não desistiria de mim, mas para mim aquilo era exatamente o que ele não estava fazendo.

Frustrada entrei no prédio do orfanato, tendo o nariz invadido pelo cheiro familiar de tinta. Uma sensação tomou conta de mim que me fez rodar como uma criança que brinca. As paredes cinzentas ganhariam cor e isto fazia brotar a esperança, de certa forma.

Alguém pigarreou.

Virei-me bruscamente para a origem e dei de cara com uma criança. Ela passava alguns centímetros acima dos meus joelhos, mas o corpo de proporções pequenas a fazia parecer pequenina como um botão de rosa. O cabelo longo era enrolado e estava solta a bel prazer, os olhos pareciam duas pedras preciosas, um tom de esmeralda, e a pele morena parecia brilhar.

Ela era um bom anjo.

Ela sorri largamente, daquele jeito de sorriso raro que sorri sem restrição.

– Você é a namolada do tio Lu - ela diz um pouco enrolada.

Pus-me de joelho ganhando tempo para decidir como falar com ela. Eu não conseguia ser gentil nem com pessoas da minha idade, e isto piorava - e muito - com crianças.

– Você o conhece?

– Ele é meu amigo, me conta todos os segledos que tem. Até o que me disse ser o maior de todos.

Ela sorri e não consigo resistir à tentação de saber mais sobre ele.

– E qual é o maior?

– Você - ela diz e me abraçou, apertando meu pescoço.

O corpo pequeno apertava-me com carência. Aquelas crianças eram bem cuidadas, mas poucos tinham do carinho que merecem. Meus olhos marejaram por ser uma egoísta fútil que se preocupa com besteiras enquanto deveria ser grata pela vida que tem.

– Ah, não, para, Lucius. Você vai me sujar - ouço uma voz feminina ao fundo.

– Você merece coisa pior. Dá próxima vez vou procurar um ajudante que queira pintar a parede ao invés do meu rosto - diz aquela voz grave e sedutora em tom de brincadeira.

Se não fosse a menina me agarrando eu teria me escondido. Lucius tinha o rosto manchado de tinta azul e vermelha e a camisa parecia ter sido batida em pó de arco íris. Já Tamara parecia ter se arrumado como se estivesse indo a uma exposição de arte moderna, com um salto enorme com estampa de onça e um short curto, com uma blusa de seda dourada. Poucos riscos de tinta marcavam seu rosto bem maquiado. Ela era bonita.

Quando ele me viu quase derrubou Tamara no chão, que estava colada ao braço dele.

– Clara, não deveria estar com as outras crianças? - ele pergunta se focando na garotinha.

– Não, gosto da Ruby, ela é minha amiga agora - ela responde ainda nos meus braços.

Levanto-me a pegando no colo, temendo cair com seu peso.

– Posso levá-la para esse lugar, este cheiro de tinta não faz bem. Vai por mim - falo para ela.

Ignorar os outros era fácil quando se tinha alguém encantador para se focar.

– Isso, menininha, ouça o que a Ruby diz por que disso ela conhece - ladra Tamara - Foi essa desculpa que usou naquele dia?

– O que aconteceu? - Lucius pergunta.

– Ah, você não sabe? - ela se fingiu de surpresa - Um dia ela invadiu o ateliê do pai e quebrou tudo. Foi o maior barraco.

Lucius apresenta uma expressão que me magoa: o de surpresa. Aquele tipo que anda ao lado da decepção.

– Com licença - falo com o máximo de dignidade que posso e passo por eles com Clara.

– Espera, Ruby, vou com vocês - diz Lucius.

Não me opus. Deixei que Lucius me guiasse pelos corredores que ainda não haviam sido pintados. Clara tagarelou o caminho todo com ele, conversando sobre coisas do cotidiano dos dois. E mais uma vez percebi o quão pouco eu conhecia dele, ainda faltavam pequenas passagens de sua personalidade.

A deixamos em uma sala cheia de crianças sorridentes que brincavam de correr em uma sala larga, e que pareceram ficar mais felizes ao verem Lucius. E eu podia entendê-las bem nesse quesito.

– Quer dizer que sou seu maior segredo? - o provoco quando saímos da sala.

– E você ainda tem dúvida?

Ficamos em silêncio por alguns minutos. Apenas ouço em silêncio a brincadeira das crianças que ultrapassa a parede.

– Quer dizer que tem um lado vândalo? – ele pergunta.

– Algum problema?

– Nenhum – ele ganiu – Só que não se espera isso de pessoas certas como você.

– Não sou tão certinha quanto pareço – dou de ombros.

– Não afirme o que não pode provar.

– Claro que posso – falo com mais audácia do que pretendia.

Venço a distância entre nós, tanto a física quanto a que coloquei em minha mente. Fico na ponta dos pés e o beijo rápido nos lábios, com uma força demasiada, mas ele não corresponde ao beijo.

– Calma – ele me segura pelos pulsos e me empurra o suficiente para me analisar.

– Consumiu alguma droga para ter vindo aqui?

– Não que eu lembre.

– Está aqui porque quer?

– Cala a boca, Lucius – falo me irritando pelo interrogatório.

– Só quero ter certeza de que isso não é uma espécie de recaída e que está pronta para fiarmos juntos – ele diz ressentido.

– Lucius... – não consigo falar.

– Ok. Já entendi – ele solta meus pulsos.

Sinto-me rejeitada ao mesmo tempo em que me culpo por isso. Sinto o mesmo que o fiz sentir de forma tão cruel.

Um grito agudo corta o ar, quebra a tensão entre nós e gela meus ossos. Uma mão gélida desse em meu corpo e posso sentir o ar me faltando. Alguém está em perigo.


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