Além das lembranças. escrita por Amanda Rodrigues


Capítulo 6
Capítulo V - A Grande Noite - parte II




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Em meio ao negrume da noite, uma carruagem cortava o céu nebuloso.

Assim que o sol se pôs, a neve que caía timidamente ao longo do dia se transformou numa violenta tempestade de granizo. Naquela região do Japão, aldeões se trancafiaram em suas casas no intuito de se proteger da tormenta. Não seria um inverno fácil.

Apesar do mau tempo, a carruagem seguia o seu curso, flutuando soberbamente a centenas de metros do chão. Nada a continha. Nem as pelotas de gelo, nem o frio cortante.

Não muito distante desse veículo, havia outros igualmente magníficos. Eles trilhavam o mesmo caminho, pois possuíam um destino em comum: o palácio fixado em meio a uma floresta espessa e perigosa. A habitação pertencia a um poderoso youkai chamado Sesshoumaru, herdeiro legítimo do Grande Cão do Oeste, Inu No Taishou.

A barreira que protegia a fortaleza do Dai-youkai liberava um nível incrédulo de energia maligna. Era assustadoramente poderosa. Na noite fria, quando o vento soprava como nunca, as carruagens da nobreza youkai atravessaram a barreira do palácio de Sesshoumaru sem dificuldade, pois a entrada delas fora consentida pelo senhor daquelas terras.

Nos domínios de Sesshoumaru, as carruagens se dirigiram rumo ao palácio. Quando o destino foi alcançado, a carruagem que liderava as outras pousou com elegância no solo coberto de neve.

Prontamente, os servos de Sesshoumaru abriram a porta do veículo e, lá de dentro, saiu alguém temível, uma criatura vestida de poder. No instante em que focalizaram aquele ser extraordinário, os servos prenderam a respiração.

Arina, mãe de Sesshoumaru, estava belíssima. A calda felpuda cobria elegantemente os seus ombros e lhe aquecia. A franja prateada escorria pela sua testa, mas sem esconder a marca da lua.

Ela lançou um olhar zombeteiro para o palácio do filho e esboçou um sorriso cínico.

— Ora, ora. Então, esse é o palácio de Sesshoumaru? — murmurou Arina, soltando uma risadinha.

Embora fosse, desde o início, uma forte apoiadora do reinado do filho, essa era a primeira vez que Arina visitava a fortaleza. Estava muito curiosa.

Após a saída da youkai da carruagem, outra figura fez o mesmo. Essa aumentou ainda mais a tensão entre os servos.

A segunda criatura a descer era ainda mais fabulosa que a mãe de Sesshoumaru. Era praticamente uma lenda. Por essa razão, os servos ficaram alguns segundos observando-a embasbacados. Ao se recuperarem do choque, fizeram uma longa reverência.

Era a Grande Bruxa Youkai.

Ela exalava uma energia incomum, quase hipnotizante. Por um momento, os servos tiveram receio de que a youkai começasse a bradar previsões sobre o futuro deles, o que obviamente não aconteceu.

Apesar de possuir um vasto poder, a Grande Bruxa detinha uma aparência decrépita. O seu cabelo era inteiramente cinza; o seu rosto, coberto por rugas. Além disso, para caminhar, ela utilizava um bastão de madeira. Certamente, a coisa mais marcante em sua face eram os olhos, os quais eram vivos e sábios.

Era parte da tradição um daimyo youkai iniciar o seu reinado com uma previsão acerca do futuro. O Japão era uma terra imprevisível, assolada por guerras entre humanos e youkais. Conhecer o futuro dava aos servos segurança. Assim, eles sabiam se podiam confiar ou não no seu daimyo para protegê-los.

Como mãe de Sesshoumaru, Arina decidiu trazer ao palácio do filho a mais importante das bruxas youkais. Era uma honra ter alguém como ela para realizar o Pacto de Sangue e prever o futuro do reinadoAlém do mais, ela estava ali para unir Sesshoumaru a uma fêmea de sua espécie. O casamento atrairia liados para o Dai-youkai.

As youkais caminharam até o interior do palácio seguidas pelos demais membros da nobreza que, aos poucos, desciam de suas respectivas carruagens.

Os servos observaram que havia um grande número de jovens youkais, todas filhas de membros da elite. Elas eram as candidatas à esposa de Sesshoumaru. No final daquela noite, o castelo finalmente teria uma senhora.

* * *

Sesshoumaru estava no silêncio de seu aposento redigindo cartas. Esse era um ofício lastimável. Era entediante e burocrático. Porém, era muito melhor do que encarar os convidados presentes em seu palácio.

Ele ouviu uma série de passos apressados no corredor e logo a porta do seu quarto foi aberta.

Era Jaken. Ele parecia eufórico. Sesshoumaru não se deu o trabalho de tirar os olhos das cartas que escrevia.

— Senhor Sesshoumaru!! — exclamou ele, o que irritou profundamente o Dai-youkai. — Os convidados já chegaram!!

Sesshoumaru quase rosnou, mas se controlou. Foi uma decisão sua esse reinado. Portanto, não tinha o direito de reclamar.

— Hum — murmurou Sesshoumaru, desinteressado.

Houve alguns segundos de silêncio.

— O senhor... Quero dizer, é importante que esteja lá para recepcioná-los — disse Jaken, envergonhado por precisar dizer o óbvio. — Os convidados, senhor. Eles estão aguardando a sua chegada.

— Mande um servo fazer algum espetáculo para entretê-los por enquanto — ordenou Sesshoumaru e, em seguida, fez um gesto com a mão, descartando a presença do pequeno youkai.

Jaken assentiu, como se tivesse acabado de receber uma ordem muito importante.

— Sim, ilustre senhor. Eu farei o que me pede — concordou com a seriedade de um soldado. Ele deu as costas para Sesshoumaru, mas antes de dar um passo rumo a porta, hesitou. Jaken, pela primeira vez em muito tempo, enxergou o seu senhor como um ser imperfeito que, embora fosse sagaz, poderia tomar decisões erradas. — Ma-majestade, se me permite perguntar...

O Dai-youkai o fitou severamente.

— Diga, Jaken, e então desapareça deste quarto.

— Eu... Eu queria perguntar se o senhor está certo deste passo que irá dar hoje? — indagou Jaken, receoso. Ele sabia que essa pergunta iria despertar a fúria do seu amo.

— Pareço ter alguma dúvida, Jaken? — quis saber o Dai-youkai.

— Não foi isso que eu quis dizer, senhor Sesshoumaru — explicou o youkai. — É que... O Pacto de Sangue exige do senhor um sacrifício. Ao fazer esse arranjo, o senhor selará um acordo com os deuses de que irá proteger essa terra com o seu sangue e... A sua vida, senhor. É mesmo isso que deseja?

Por um instante, Sesshoumaru realmente considerou a hipótese de esmagar aquele serzinho impertinente.

— Acha que o grande Sesshoumaru hesitaria em proteger o seu reino e aqueles que nele vivem? — questionou o Dai-youkai, frio. — Desde o princípio, meu objetivo foi adquirir poder para então fundar a minha própria nação de youkais. Sendo assim, estou pronto para realizar o ritual. Eu honrarei o Pacto e defenderei as minhas terras de toda calamidade. Não preciso de nenhum pacto para garantir que o meu dever enquanto daimyo será cumprido, pois minha palavra basta. Mas se a tradição assim exige, eu o farei.

Depois dessa resposta, Jaken transpareceu alívio.

— O senhor está absolutamente certo, senhor Sesshoumaru — e então fez reverência bajuladora. — E, mais uma vez, se me permite, as damas presentes no salão são todas lindíssimas.

Quando o youkai deixou o cômodo, Sesshoumaru soltou uma respiração ruidosa. Maldito Jaken! Ele o conhecia bem demais!

Era estranho. Durante anos ele havia idealizado o momento em que construiria um império de youkais. Porém, agora sentia falta da liberdade de outrora. Se tornar um daimyo significava seguir a tradição imposta pela cultura youkai. Mais do que isso. Ele teria que acatar as regras da nobreza youkai e participar de seus jogos de salões.

Sesshoumaru nutria absoluto desprezo por cada um dos aristocratas que estavam, naquele exato momento, debaixo do seu teto. A ideia de passar a noite na companhia deles era abominável.

O casamento era parte da tradição e das regras da elite. Como o seu reinado era recente, precisava de alianças. Futuramente, precisaria também de um herdeiro. E só havia um modo de obter tudo isso: através de um casamento. Precisava se casar com alguma jovem presente no seu salão.

Sem dúvidas, a ideia de um matrimônio fazia com que o Pacto de Sangue parecesse apenas uma simples formalidade, pois imaginar-se firmando um compromisso com uma daquelas jovens frívolas era repugnante.

O orgulho de Sesshoumaru não aceitava o fato de que teria que se submeter a essas normas. Elas o fazia se sentir impotente. Entretanto, o Dai-youkai estava disposto a fazer qualquer coisa pela manutenção do seu reinado.

Até mesmo engolir o seu orgulho feroz.

* * *

Quando Sesshoumaru chegou ao salão principal, deparou-se com dezenas de youkais. Todos vestiam ricos e chamativos kimonos de seda. E, é claro, ostentavam joias.

Era uma cena extravagante. Os youkais e conversavam entre si como se fossem amigos íntimos à medida que bebiam e fumavam. A fumaça era expelida para o ambiente, fazendo com que o salão parecesse estar coberto por uma neblina cinzenta.

Sesshoumaru observou que a atenção de um grande grupo de youkais estava voltada para um ponto específico do salão. Nele havia um servo desajeitado tentando equilibrar três pratos de porcelana.

Ele estava imóvel conforme equilibrava dois pratos nas palmas das mãos e na cabeça, o último prato. Enquanto isso, os youkais presentes chicoteavam as pernas dele no intuito de fazê-lo fracassar. Era uma cena sádica e deplorável.

Sesshoumaru constatou que conhecia a maioria dos indivíduos que ali se encontravam.

No canto salão estava o Demônio Sanguinário do Leste, um youkai que num dia de colheita invadiu um feudo e matou todos os humanos que viviam nele, incluindo o daimyo. Não muito distante dele estava Shiori, uma youkai que dominava a magia da ilusão. Ela era conhecida por ter feito os soldados de um exército humano assassinar uns aos outros achando que estavam matando inimigos. E, é claro, conversando com Shiori estava Arina, sua mãe.

Sesshoumaru autorizou os servos que o acompanhavam a anunciar a sua chegada e, assim que o fizeram, a atenção dos presentes se voltou para ele.

O servo com os pratos aproveitou essa oportunidade para fugir.

Ao ver o filho, Arina abriu um largo sorriso e fez uma reverência assim como os demais.

— Ali está ele, o nosso atrasado anfitrião! — exclamou ela. Por mais que o seu tom fosse brincalhão, a youkai estava o reprimindo pelo atraso. — Um brinde a Sesshoumaru, senhores!

Todos os youkais ergueram o copo de porcelana em que bebiam saquê e brindaram em sua homenagem. Sesshoumaru fez uma discreta mensura, agradecendo-lhes. Logo, Arina juntou-se a ele, entrelaçando o braço no seu.

— Posso saber por que está atrasado? — cochichou ela para o filho.

— Estava ocupado.

— Ocupado?! Pelos Deuses! — sussurrou a youkai. — Espero que seja mesmo uma boa ocupação. Você me envergonhou!

— Estava redigindo cartas para meus aliados.

— Você não pode está falando sério. Os seus aliados estão aqui — murmurou ela, conduzindo-o pelo salão. — É com esses aliados que você deve se preocupar. Todo o seu reinado depende das alianças que você construirá neste evento. Venha, vou apresentá-lo a Grande Bruxa.

Os dois estavam se dirigindo a bruxa, quando um youkai surgiu na frente deles. A criatura era desprezível e exalava um aroma nauseabundo, o que fez com que Arina cobrisse delicadamente o nariz com um lenço de seda.

O youkai possuía olhos esbugalhados, como o de um peixe. Aliás, toda a sua aparência era similar a de um peixe. Para aumentar o horror de Sesshoumaru, ele ainda estava acompanhado da filha que emanava o mesmo cheiro fétido.

— Meu senhor, é um prazer estar aqui. Fico feliz que tenha decidido ocupar um lugar entre os senhores feudais da sua espécie. Meu nome é Kiichi, senhor — disse ele. Sesshoumaru fez um gesto com a cabeça, cumprimentando-o. Então, Kiichi se voltou para a sua filha, a qual estava parada ao seu lado. — Por favor, permita-me apresentar minha querida filha Aiko.

Arina precisou dar um forte aperto no braço do filho para ele fazer uma mensura para a jovem que o encarava com um olhar tímido e ansioso.

— Há muitas décadas que tento encontrar um casamento vantajoso para minha pequena — lamentou Kiichi. — Tive que recusar inúmeras propostas, pois não eram apropriadas para uma dama da sua estirpe. Compreende?

"Duvido que tenha tido uma proposta sequer", pensou Sesshoumaru.

— Perfeitamente — respondeu, seco.

— O marido da filha do senhor dos pântanos de Honshu, naturalmente herdará uma grande fortuna e influência — prosseguiu Kiichi. — Todos os vassalos do reino de seu pai, que não são poucos, estarão à disposição do afortunado marido que terá um exército de mais de mil youkais. Diga-me, senhor, se não tenho uma filha valiosa?

A filha do youkai ergueu os olhos para o Dai-youkai, como se esperasse que ele concordasse.

Sesshoumaru, que nunca tinha medo de nada, quis escapar dali o mais rápido possível.

Felizmente, Arina retirou o lencinho do nariz e tomou o controle da situação:

— Sem dúvidas, o senhor tem uma filha valiosíssima. Mas fiquei curiosa a respeito de uma coisa.

— Ficarei honrado em sanar a sua curiosidade, senhora — disse Kiichi, respeitoso.

— O que come a princesa dos pântanos de Honshu? — indagou Arina sorrindo afavelmente.

Sesshoumaru sentiu um calafrio.

O youkai empalideceu e a filha o encarou desesperada.

— Então, senhora... Esse detalhe da natureza de minha filha pode gerar um leve incômodo — respondeu Kiichi, sem jeito.

— Ora, se a senhorita é candidata à esposa do meu filho, gostaria de tomar conhecimento de tudo ao seu respeito — disse Arina sem tirar o sorriso dos lábios. — Acredito que Sesshoumaru também gostaria de saber. Portanto, continue.

— Bem, senhores, como somos youkais do pântano, nós gostamos de ingerir lama e animais em decomposição. É o que há nos pântanos — contou Kiichi, como se pedisse desculpas.

— Adorável — disse a mãe Sesshoumaru suavemente.

— Mas, é claro que minha filha poderia mudar a sua dieta, se essa for a vontade do marido — acrescentou rapidamente o youkai olhando para Sesshoumaru.

— Agradeço pela apresentação — disse Arina. — Garanto que meu filho ficou encantado, não é querido?

— Certamente — concordou o Dai-youkai, frio.

Os dois youkais do pântano fizeram uma reverência e então saíram, o que deixou Sesshoumaru aliviado.

— Há mais desses aqui? — perguntou o Dai-youkai.

— Sesshoumaru, não seja exigente. A jovem é excêntrica, mas é um bom partido. É isso que você deve considerar. Quem se importa com o resto?

— Eu me importo, pois a jovem irá gerar o meu herdeiro — retrucou o Dai-youkai, irritado.

— Não se preocupe. Há muitas outras aqui. Veja só Sayuri. É uma youkai lobo. É belíssima, não é? Além do mais, não está muito distante da nossa espécie. Você não se surpreenderia com a aparência da cria.

Sesshoumaru seguiu o olhar da mãe e teve que concordar. De fato, Sayuri era belíssima. Ela possuía cabelos alaranjados que escorriam sedosamente pelas suas costas e tinha feições sedutoras. Quando a jovem percebeu que os dois a encaravam, corou e baixou o olhar respeitosamente.

O Dai-youkai se sentiu tentado a conhecê-la, mas estava farto daqueles joguinhos.

— Comunique a Grande Bruxa que eu desejo que o ritual seja realizado imediatamente — declarou Sesshoumaru.

— Ora, mas a festividade acabou de começar. Você deve conhecer as jovens e saber quais vantagens elas oferecem — instruiu Arina.

— Pensei que a escolha da esposa fosse aleatória.

— E é. Mas, é educado que você as conheça, já que apenas uma delas sairá vitoriosa. O restante voltará para casa chorando.

Sesshoumaru praguejou.

— Meu pai passou por tudo isso? — perguntou para a mãe.

— Todos os membros da nobreza passam — falou Arina.

— Ele fez o Pacto?

— Não, não fez. Mas, os servos confiavam no poder dele. Então, o Pacto era desnecessário.

— Isso significa que os meus servos não confiam no meu poder? — perguntou Sesshoumaru, contrariado.

— Não é isso. Você precisa compreender que se trata de outro tempo — explicou a youkai. — Seu pai viveu no apogeu do poder da nossa espécie. Naquela época, os humanos não interferiam nas nossas vidas, pois não conheciam as armas e a magia. Eles eram simplesmente presas. Agora, é diferente, por isso o Pacto é necessário. Os servos já não têm tanta confiança assim no daimyo, ainda mais...

Sesshoumaru a fitou.

— Ainda mais o quê?

— Inu No Taishou foi um youkai poderoso e temido pelos seus inimigos — disse Arina. — Mas o seu legado foi ter abandonado o seu castelo, a sua esposa e o seu herdeiro para correr atrás de uma humana como um cão vadio. E, para piorar, ainda morreu por ela. É disso que todos se lembram quando escutam o nome dele. É por isso que os seus servos não têm tanta confiança em você. Eles temem que você seja como o seu pai.

— Eu não sou como ele e deixarei isso claro esta noite — falou o Dai-youkai categoricamente.

A youkai de cabelos prateados sorriu.

— Fico satisfeita em ouvir isso.

Mãe e filho seguiram para a outra extremidade do salão onde a Grande Bruxa se encontrava. De repente, uma onda de murmúrios se espalhou pelo local. A atenção dos convidados estava inteiramente voltada para a porta de entrada. No mesmo instante, Sesshoumaru e Arina buscaram entender o que estava acontecendo e precisaram fazer um esforço para enxergar em meio a multidão.

— O que significa isso, Sesshoumaru? É alguma apresentação? — questionou a youkai tão desorientada quanto o filho.

Então, Sesshoumaru a viu.

Certamente, era a criatura mais esplêndida que havia no salão. A jovem estava trajando um kimono de seda azul-marinho com figuras douradas. Mas a sua beleza não se resumia a isso. Ela, em si, era linda.

Por mais que o rosto da jovem estivesse coberto por uma camada de pó de arroz era possível vislumbrar suas bochechas coradas que lhe conferiam um aspecto saudável. Os seus lábios possuíam uma coloração escarlate, como os de uma gueixa. Os cabelos escuros e volumosos encontravam-se elegantemente presos atrás da cabeça. E os seus olhos... Havia neles algo de audacioso que a tornava ainda mais fascinante.

Na visão de Sesshoumaru ela brilhava.

Até que ele percebeu que aquela criatura era Rin. Imediatamente, as órbitas de Sesshoumaru se arregalaram e só então ele detectou o broche dourado que apenas os servos utilizavam no kimono da garota.

Ele piscou, confuso, e recordou a imagem de Rin quando ainda era uma criança. Durante o curto período em que a menina esteve em sua companhia, ele nunca havia imaginado que ela um dia cresceria. Simplesmente a enxergava com uma existência frágil que, por alguma razão, lhe despertava o instinto de proteção. Nunca passou pela sua cabeça que ela se tornaria uma mulher atraente. Sesshoumaru se sentiu tolo. Como ele não previu isso?

Quando notou que alguns youkais se aproximavam de Rin, Sesshoumaru deu um passo na direção dela, mas um aperto forte em seu braço o deteve.

Arina o encarava exasperada.

— Sesshoumaru, o que uma humana está fazendo aqui? — perguntou ela, enraivecida. — Não me diga que é quem eu estou pensando.

Óbvio que era ela. Quem mais poderia ser? Sesshoumaru sentiu que estava ligado a essa humana desde o momento em que a ressuscitou pela primeira vez. Nunca seria capaz de negar qualquer coisa a ela e a protegeria de quem tentasse lhe fazer mal. Seria capaz de destruir o que fosse apenas para mantê-la segura. Foi assim desde o início, porém agora algo novo estava acontecendo. Algo que era estranho até mesmo para Sesshoumaru. Ele se sentia atraído por Rin. Havia alguma coisa no rosto dela, no modo como sorria e como se movimentava que o deixava hipnotizado.

Sesshoumaru tentou, mais uma vez, ir até Rin, entretanto Arina o segurou. Dessa vez, com mais firmeza.

O Dai-youkai rosnou para ela.

— O que está pretendendo fazer? Quer estragar tudo? — sussurrou a youkai de cabelos prateados, sem se abalar. — Quer ir atrás de uma humana enquanto despreza as suas noivas? Se quer ser respeitado pelos seus servos e pelos membros da elite comece a agir como um youkai da sua posição! Eu trouxe todos esses convidados até aqui e não vou permitir que você e essa maldita humana me envergonhem!

— Já está feito — disse Sesshoumaru. — Todos a viram.

— Maldição! Eu vou dar um jeito nisso! — afirmou Arina, furiosa. — Agora comece a cortejar uma youkai! E, por favor, seja convincente!

Como o bem de seu reinado dependia dessas relações, Sesshoumaru seguiu o conselho da mãe. Arina, por sua vez, chamou Jaken e pediu para que instruísse Rin a parar de chamar atenção para si mesma.

* * *

Assim que adentrei no salão os meus olhos buscaram Sesshoumaru. Contudo, ao invés de me deparar com ele, fiquei diante de inúmeros youkais que me encaravam boquiabertos.

Chiye havia caprichado no meu visual ou eles estavam apenas chocados pelo fato de eu ser humana? Eu gostaria que fosse a primeira opção, ainda que eu não quisesse atrair nenhuma atenção para mim.

Nessa noite, tudo o que eu desejava era ser invisível. Principalmente, depois de Sesshoumaru ter me dado às costas no momento em que entrei, como se eu o envergonhasse. Eu estava arrependida de estar ali. Era estranho. Por mais que o salão estivesse cheio, eu me sentia mais solitária do que nunca. Como eu gostaria que houvesse algum rosto amigo! Mas não havia nenhum, pois Chiye, minha única amiga no palácio, decidiu não comparecer. Talvez em virtude do seu estado de saúde.

Felizmente, todos os youkais que me fitavam se dispersaram quando a voz de Jaken ecoou no salão:

— Riin — chamava ele de maneira desesperada.

— Olá, senhor Jaken — disse um pouco desanimada.

— Está causando tumulto na celebração do ilustre Sesshoumaru!

Quase revirei os olhos.

— Garanto que não foi intencional — retruquei.

— Senhora Arina está muito irritada, Rin. Tenha cuidado. Não sei o que senhor Sesshoumaru fará comigo se algo de ruim acontecer com você! — exclamou o youkai de tonalidade verde.

— Acho que ele não está muito preocupado com isso — falei enquanto observava Sesshoumaru conversar com uma jovem youkai. — Mas, não se preocupe. Encontrarei um jeito de não chamar atenção.

"Ah, claro. A culpa é minha se um bando de youkais idiotas pararam o que estavam fazendo só para me olhar", pensei, irritada, à medida que caminhava para o local mais deserto do salão.

Quando me acomodei no cantinho deserto, tomei a liberdade de analisar o que acontecia ao redor. As jovens youkais ruborizavam cada vez que o olhar de Sesshoumaru repousava sobre elas. Além disso, as youkais conversavam mais animadamente sempre que ele se aproximava. Os pais perseguiam obstinadamente o pobre Sesshoumaru no intuito de apresentar suas filhas. Certamente, ele estava detestando. Isolada no meu cantinho, eu me senti vingada.

Mas, por que vingada? Tudo por que Sesshoumaru não me dirigiu à palavra? Eu estava sendo infantil ou será que eu estava... Com ciúmes?

A ideia de sentir ciúmes de Sesshoumaru me deixou chocada. Não, não era possível. Por que eu sentiria algo assim? Eu não via Sesshoumaru de maneira romântica e o mesmo valia para ele. Sendo assim, essa hipótese não fazia sentido. No mesmo instante, busquei afastá-la da minha mente e, num impulso, cruzei o salão na intenção de pegar uma bebida.

Fiquei diante de uma mesa na qual possuía uma variedade de bebidas e alimentos. Peguei a primeira garrafa de bebida alcoólica que encontrei e pus o seu conteúdo num copo de porcelana. Em seguida, bebi. O gosto era adocicado e extremamente forte. Assim que o ingeri, fiz uma careta.

Eu estava pouco me lixando para o que iriam pensar de mim. Os Deuses estavam de prova que eu havia me esforçado para me comportar de maneira exemplar no evento. Havia feito, até mesmo, uma aula de etiqueta com Katso e estava vestida impecavelmente. Mas, não importava o quanto me esforçasse eu sempre seria um fardo.

Notei que um grupo de damas estavam com os olhos cravados em mim e fiquei atenta ao que diziam:

— O que ela está fazendo aqui?

— Ouvi dizer que é amante de Sesshoumaru.

— Amante? Quem disse uma coisa dessas?

— A mãe dele.

— Pois se eu for a escolhida — disse uma das damas arrebitando o nariz. — Eu farei questão de colocá-la para fora daqui somente com a roupa do corpo.

Poucas vezes ao longo da minha vida eu senti uma raiva tão potente correr pelas minhas veias. Eu havia suportado muito naquele palácio. Realmente não me importava se me odiassem pelo fato de pertencer à espécie humana. No entanto, esses comentários colocavam em xeque minha honra. Eu jamais seria amante de alguém. Isso era impensável. Certamente, Arina inventara essa mentira para justificar a minha presença no palácio.

Dei outro gole na bebida e limpei a boca com o punho. Agora essas malditas iriam escutar a verdade. Eu faria questão de esclarecer esse absurdo.

— Recomendo ir com calma — disse uma voz atrás de mim.

Tratava-se de um belo youkai de cabelos negros, os quais estavam presos no alto de sua cabeça. Ele trajava um kimono negro, o qual possuía uma faixa vermelha. Ele era tão bonito que não pude evitar ruborizar. Mas eu estava irritada demais para me deixar seduzir pela aparência dele.

— O que disse? — indaguei, enraivecida.

— A bebida — explicou ele calmamente, apontando para a mesa.

— Por quê? Acha que eu não aguento?

— Eu não acho, eu tenho certeza — rebateu o youkai com um sorriso. — Essa é uma bebida feita para youkais que são naturalmente mais tolerantes ao álcool. Um humano poderia se embriagar com um simples gole.

— Você não conhece minha espécie tanto quanto pensa.

Era curioso. Não importava o quão grosseira eu fosse, ele não perdia a paciência.

— Ah, querida, eu conheço muito bem — afirmou o youkai de vestes negras. — Já amei incontáveis mulheres e homens no decorrer desta minha vida. Sei do que estou falando.

Então, me dei conta de que ele não era um inimigo e que eu estava descontando injustamente minha raiva nele.

— Desculpe — falei. — Não quis ser grosseira. É que estou tendo uma noite ruim.

— Não precisa se desculpar. Sou capaz de compreender a sua situação. Uma humana sozinha em meio a tantos youkais não deve ser fácil. Infelizmente, minha espécie não possui muito apreço pela sua. Como se chama?

— Rin, e o senhor?

Ele fez uma mensura educada.

— Eu me chamo Daisuke, sou daimyo da ilha Miyake.

Sorri. Estava realmente feliz por conhecê-lo.

— É uma honra conhecê-lo, senhor — disse fazendo uma mensura. — Miyake é uma ilha vulcânica, certo?

— Sim. Temos de tudo lá: erupções vulcânicas constantes, gases tóxicos para a maioria das criaturas, nuvens cinzentas. Um verdadeiro oásis na Terra — respondeu Daisuke com bom humor. — Se me permite perguntar, como uma jovem tão encantadora veio parar aqui? Embora eu suspeite o motivo.

Eu ri. O modo como ele sugeriu que eu era amante de Sesshoumaru não possuía um tom pejorativo. Ele apenas havia se enganado. Mas, ao contrário dos outros, veio perguntar diretamente para mim, o que aumentou ainda mais minha consideração por ele.

— Não, não sou nenhuma amante de senhor Sesshoumaru — esclareci a confusão. — Ele salvou minha vida mais de uma vez e, agora, estou tentando retribuir ajudando-o a administrar o palácio.

Daisuke pareceu surpreso.

— Oh, então é mesmo verdade o que dizem.

— O quê?

— Que a prole de Inu No Taishou, assim como o pai, possui um fraco por humanos. Não julgo, é claro. Eu também tenho — disse o youkai. E, em seguida, acrescentou: — Seres humanos são criaturas extraordinárias. Muitos youkais evitam vivenciar os seus sentimentos, pois os consideram fraqueza, mas os humanos vivem as suas paixões em sua plenitude. É isso que eu admiro na sua espécie. Acho que amar alguém é uma maneira de celebrar à vida.

Assenti.

— Concordo. E acho que você deveria vir ao palácio de senhor Sesshoumaru mais vezes.

Rimos e conversamos por mais alguns minutos. Daisuke era mesmo um youkai incrível. Em virtude da nossa conversa, esqueci completamente do quão deprimente era aquela cerimônia. Além do mais, com o passar do tempo, fui sentindo o efeito do álcool que me deixou um tanto eufórica e falante.

— Acho que cometi um erro terrível — confessei para Daisuke.

— O que quer dizer?

— Foi um erro ter vindo para esse palácio. Foi um erro ter achado que Sesshoumaru gostaria de me ter ao seu lado.

Daisuke riu incrédulo.

— O que está dizendo, querida? Sesshoumaru não consegue tirar os olhos de você.

— Garanto que está enganado.

Ele meneou a cabeça.

— De jeito nenhum. Repare bem. Ele está odiando a nossa aproximação, pois conhece minha reputação.

Olhei em direção a Sesshoumaru, mas ele parecia concentrado numa conversa com um youkai e sua filha.

— Repito: você está enganado — falei.

— Você apenas olhou no momento errado — insistiu o youkai e, depois, sorriu de maneira travessa. — Provarei que estou falando a verdade. Acho que essa festa está precisando mesmo de um pouco de diversão.

Subitamente, Daisuke tomou uma de minhas mãos e joelhou-se diante de mim à medida que a beijava. O gesto atraiu a atenção dos convidados para nós, o que deixou o meu rosto inteiramente vermelho. Quando encarei Daisuke, ele piscou o olho para mim como se quisesse dizer que se tratava de uma encenação.

Aconteceu muito rápido. Sesshoumaru surgiu de repente e o capturou pelo pescoço, suspendendo-o no ar. Eu estava confusa. Tudo parecia um borrão. Os meus passos vacilavam e eu busquei equilíbrio na mesa. A impressão que tive foi de que Sesshoumaru brotou do chão. Houve gritos de sobressalto pelo salão. Eu também gritei.

— Senhor Sesshoumaru, por favor solte-o! — bradei.

Mas Sesshoumaru mantinha-o suspenso pelo pescoço enquanto o encarava com as presas à mostra. Seus olhos estavam vermelhos, como se estivesse prestes a adotar a forma youkai. O rosto de Daisuke se contorcia.

— Como ousa tocá-la com essas suas mãos sujas? — questionou Sesshoumaru, sombrio.

Os convidados estavam todos reunidos em nossa volta, mortificados.

— Agora que o fez, essa será a última vez que terá mãos — declarou o Dai-youkai, preparando-se para desembainhar a espada.

— Sesshoumaru, por favor! — à essa altura lágrimas escorriam pelo meu rosto. Eu estava assustada e desorientada. — Foi tudo uma brincadeira. Ele não me tocou de maneira indevida.

Então, alguém atravessou a multidão e ficou diante da cena. Era Arina.

— Mas o que está acontecendo aqui? Sesshoumaru, largue-o agora! — esbravejou a youkai, autoritária.

Cambaleei até Sesshoumaru e o confrontei com o olhar.

— Ouça, não é o que você está pensando — e pousei minha mão em seu braço. O toque fez com que a atenção dele se desviasse para mim. — Por favor.

E, ao se deparar com minhas lágrimas, ele soltou Daisuke que caiu no chão, desajeitado. Instantaneamente, as órbitas de Sesshoumaru recuperaram a tonalidade dourada habitual.

Arina soltou uma respiração aliviada.

— Esse casamento precisa acontecer agora ou, até o final da noite, você ateará fogo nesse palácio! — sussurrou a youkai de cabelos prateados para o filho.

Nesse momento, eu ajudava Daisuke a se recompor. Felizmente, ele não havia sofrido nenhum ferimento grave.

Sesshoumaru não dava a mínima para a mãe. Ele apenas me olhava, preocupado.

— Rin... — começou ele.

— Não, eu não quero saber — respondi postada junto a Daisuke.

O youkai de vestes negras, ao se assegurar de que ninguém estava olhando, piscou novamente o olho para mim.

— Viu só? — sussurrou ele. — Eu estava certo.

Eu sorri entre lágrimas.

— Você é um idiota suicida, sabia?

Então ouvi Arina dizer para todos ouvirem:

— Agora Sesshoumaru fará o Pacto de Sangue e, então, escolherá sua esposa — e olhou para Katso que estava postado ao seu lado. — Tire-a daqui agora mesmo.

Katso que eu não tinha visto até aquele momento me ajudou a ficar de pé e começou a me conduzir para fora do salão.

— Me solte, Katso! O que pensa que está fazendo?! — vociferei, tentando me livrar dele.

Porém, o youkai estava sério e permaneceu irredutível. Apenas quando estávamos longe do salão que ele resolveu se pronunciar:

— Onde conseguiu esse kimono? Você não tem o direito de usá-lo.

— O que você tem a ver com isso? A dona dele consentiu! — rebati.

— Dona dele? A dona dele nunca poderia ter consentido porque ela está morta! — bradou Katso, furioso.

— Foi Chiye quem consentiu e ela estava viva desde a última vez que a vi!

Katso soltou uma risada amarga.

— É claro que a tola da minha irmã tinha que estar envolvida nisso. Maldita seja!

Pisquei, confusa.

— Chiye é sua irmã?

Mas já estávamos diante da porta do meu quarto. Katso a abriu e me empurrou para o cômodo mergulhado em trevas.

— Fique aí até o dia amanhecer. Não abra a porta para ninguém. Está me entendendo? — disse ele, não suportando olhar para mim. — E tire esse kimono imediatamente ou da próxima vez que eu vê-la usando arrancarei do seu corpo eu mesmo.

E foi embora, batendo a porta.

Sozinha no meu quarto acendi o fogo para me aquecer. Estava frio. Essa havia sido uma das piores noites da minha vida.

Antes de me livrar da vestimenta, analisei o meu próprio reflexo na lâmina da minha katana. Chiye trabalhara duro para me deixar com uma aparência deslumbrante. Porém, depois do desastre que foi a cerimônia, eu me sentia uma boba enfeitada. Eu nunca deveria ter ido a ela.

Retirei o kimono pomposo e o dobrei cuidadosamente para devolver a Chiye no dia seguinte. Depois, libertei os meus cabelos do penteado ornamentado por um pente dourado. Foi um alívio sentir novamente os fios escorrerem livres pelas minhas costas.

Enquanto remexia os meus pertences, por coincidência, encontrei um amuleto Yakuyoke. Ele fora presente de Miroku e servia para afastar as energias negativas.

Com os olhos marejados, eu o apertei contra a palma da mão. Como eu desejava voltar para casa! Pensei em Vovó Kaede, Sango, Miroku, Kohaku, Kagome e InuYasha. A simples lembrança do rosto deles fez com que um sorriso surgisse em minha face.

Com o amuleto de Miroku na mão, eu adormeci no futon.


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Notas finais do capítulo

Oláa!! Sesshoumaru e Rin com ciúmes um do outro? Foi isso mesmo? Daisuke é gente como a gente e fez Sesshoumaru perder o controle quase matando a mãe de raiva hahaaha. É disso que a gente gosta, né? Eu me diverti muito reescrevendo esse capítulo. Espero que a leitura tenha sido prazerosa pra vocês!! Até mais, gentee!

(Ah, e não esqueçam de comentar!!).