Anestesia escrita por Liminne


Capítulo 1
Anestesia




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  O frio do inverno não era nada para Ichigo naquele momento. Ele tremia sim, mas não por causa do clima. Seu rosto estava em chamas e seu coração... Nossa! Como descrever o estado daquele coração maluco?

Era uma tarde nublada de fim de semana. Um dia especial para o jovem de vinte anos. Em poucas horas o resultado do vestibular sairia – o terceiro que ele fazia para o mesmo curso – e dessa vez ele tinha certeza que passaria. Afinal, a única coisa que fizera durante o ano foi estudar, estudar e estudar mais um pouco.

Estava parado na porta da casa da melhor amiga, esperando que ela o atendesse. Já havia tocado a campainha. Os dois haviam marcado de ir juntos ver o resultado da prova. Afinal, Rukia o havia ajudado muito com os estudos.

- Ichigo! – ela chegou ao portão sorrindo.

Estava linda. Era como uma princesa do inverno. A estação combinava com a sua pele clara, com os olhos de gelo e sua pureza, tal qual a neve.

Não é necessário acrescentar que aquele jovem ruivo era apaixonado por essa princesa, é?

E, nesse dia tão importante para ele, estava decidido que ia confessar seus sentimentos.

- E então? Confiante? – ela juntou as sobrancelhas pequenas e negras, erguendo o punho em incentivo.

- S-sim. – ele disse, nada convincente. O negócio é que estava mais preocupado com a declaração do que com o resultado da prova. – Rukia...

- O que? – ela olhou para ele.

- Sabe eu... Eu tenho uma coisa para te dizer... E eu não posso mais esperar.

Ela inclinou a cabeça com os olhos curiosos.

- Que foi? Você quer ir ao banheiro? – ela provocou. Tirar o amigo do sério era uma de suas especialidades.

- Sua idiota! – ele foi atingido. – É uma coisa séria! – o coração estava aos pulos.

E ela ria. Era uma princesinha impossível!

Os dois continuaram andando em silêncio mais um pouco. Rukia esperava pela coisa séria que estava por vir. Mas Ichigo tinha se desconcentrado com a brincadeira dela, e agora reorganizava os pensamentos nervoso.

Chegaram na frente da universidade. Na calçada havia árvores nuas e frias. De repente, elas começaram a enfeitar-se de branco. Estava nevando!

- Ahh! Neve! – Rukia estendeu as mãos enluvadas para os floquinhos no ar.

O coração do ruivo quase parou. Como podia ser tão linda? Como podia estar a tão poucos centímetros de distância e mesmo assim parecer inatingível?

De qualquer modo, tinha que tentar. Seu coração não estava agüentando mais. Se ela o rejeitasse, talvez a notícia do vestibular o animasse. Mas se ela o correspondesse... Seria o dia mais perfeito de sua vida!

- Rukia... – parou. – Eu preciso te dizer...

Ela tirou os olhos da neve e dirigiu-os a ele.

- Eu... – coçou a nuca nervoso. – Nós estamos juntos há tanto tempo... Quero dizer... Como amigos... Como parceiros... – Droga, não conseguia encará-la! – E sabe... Eu acho que não viveria sem você...

- Ohh! – ela fingiu derreter-se. – Que gracinha, Ichigo! Seu horóscopo recomendou que fosse gentil com alguém para ter sorte ou o quê?

Ele sorriu tenso.

- N-Não é isso... – encarava o chão.

Os olhos da pequena arregalaram-se.

- Ah não! Não me diga que você fez vestibular para outra faculdade longe e vai se mudar!

- NÃO! – ele gritou e encarou-a. – Não é nada disso, Rukia! Me escuta, eu só... – inspirou aquele frio, precisava acalmar o fogo no peito. – Eu não posso mais ficar longe de você. Você é especial para mim. De verdade... Como ninguém mais, porque... – apertou os punhos com força. – Eu amo você.

Ela ficou paralisada por alguns segundos. Parecia ter sido congelada. O que só aumentou o nervosismo dele. O pobre tinha vontade de correr, fugir, gritar, sacudi-la, rir e chorar, tudo ao mesmo tempo. Estava explodindo.

- Ichigo... – sussurrou enfim. Um sorrisinho incrédulo esboçou-se em seus lábios. – Eu não... Não sei o que dizer... Entendi direito? – riu, mas estava claramente atordoada.

- Sim, você entendeu. – ele estava muito vermelho, encarando os flocos de neve que atingiam o chão. – Só me diz... Só me diz o que você sente por mim... – a voz estava saindo até um pouco arranhada.

Ela levou as mãozinhas ao peito e suspirou calmamente. Mordeu o lábio inferior e ponderou. Como responder uma coisa daquelas? Em um dia como aqueles?

Por que ele tornava tudo tão difícil?

- Ichigo... Eu não queria dizer isso no dia de hoje, mas... – ergueu o queixo tentando ganhar estabilidade. – Bem. Acima de tudo eu gosto demais de você, você é mais que um amigo, é meu parceiro sempre. E não acho justo não te tratar com a verdade e como o homem forte que eu sei que você é.

Não...

- Sua declaração seria uma honra, mas... Mas eu não sinto o mesmo por você. Eu sinto muito, eu... Não posso te ver com esses olhos.

Não, não, não!

O coração dele quebrou-se como vidro. Em pedaços incontáveis.

Ele ficou tão mudo e inexpressivo, que ela preocupou-se.

- Você está bem? – perguntou tentando enxergar o rosto dele.

- Estou. – ele ergueu-se esfregando o cabelo, como sempre fazia nas situações críticas. – Eu... Obrigado por ser sincera. – sua garganta se apertava e seus olhos pinicavam.

Mas que idiota! Não ia chorar por causa de uma garota!

Só que... Não era uma garota. Era Rukia!

- Bem, então vamos logo ver o resultado da prova! Viemos aqui para isso e eu quase roí minhas unhas todas hoje!

- É, certo. – ele forçou um sorriso. – Vamos lá.

 

****

 

- Obrigado por me acompanhar, Rukia... – Ichigo se despedia da baixinha de cabelos negros na porta da casa dela.

- Não fica com essa cara, Ichigo! – ela ralhou. – Você vai se esforçar mais da próxima vez!

Ele suspirou desanimado.

- Descanse por hoje. Nós vamos encontrar uma solução para isso. – sorriu para confortá-lo.

Ele sorriu de volta, mas não estava nem um pouco melhor.

- Tchau, Rukia. Nos vemos. – acenou e foi andando.

Dia mais perfeito da sua vida? Ele chegou mesmo a pensar nisso?

Fora rejeitado pela mulher que amava havia tanto tempo, não passara no vestibular pela terceira vez e ainda tinha que ver em seu celular mais de vinte mensagens das irmãs, do pai e dos amigos comemorando adiantado e falando sobre a festa que o esperava em casa.

O que ele ia fazer naquela porra de festa? Não tinha nada para comemorar! E por que aqueles idiotas tinham tanta fé nele? Dava nisso... Agora não podia simplesmente aparecer e dizer que tinha fracassado.

Era o dia mais horrível da sua vida, isso sim!

Agora estava sentindo frio. O nervosismo havia passado e só havia sobrado aquele sentimento amargo. Decepção. Frustração. Impotência. Iam matá-lo congelado.

Caminhou sem rumo por um longo tempo, até que avistou um bar. Não se lembrava de tê-lo visto antes... Mesmo assim aproximou-se. Não, claro que ele não estava entrando lá para encher a cara! Só precisava de uma bebida quente para não congelar por completo!

Sentou-se em um dos bancos do balcão e pediu para o barman:

- Ahn... Será que pode me dar um chocolate quente?

O homem ergueu uma sobrancelha e riu.

- Certo. Um chocolate quente. – repetiu com um tom de voz meio debochado. – Mais o que?

Ichigo encarou-o.

- Só.

- Isso aqui é um bar, você não precisa ter vergonha de... Você sabe, turbinar sua bebida. Já é maior de idade, não é?

Que cara intrometido!

- Eu sou maior de idade. – respondeu irritado. – Por favor traz o meu chocolate quente? Não estou precisando de mais aborrecimentos.

O homem estalou a língua com desdém e foi preparar a bebida. Era raro que alguém pedisse alguma coisa assim, mas fazer o que? Vai ver estava perdido na cidade, e o frio estava terrível.

- Tsc... – Ichigo ficou resmungando sozinho. Que barman mais esquisito! Tinha os cabelos azuis e cara de maníaco! E qual o problema de querer só um chocolate quente? Um bar podia vender bebidas que não fossem alcoólicas, não podia?

- Aqui está. – algum tempinho depois, o homem trouxe o pedido. O celular de Ichigo começou a tocar.

- Merda. – praguejou e desligou o aparelho. Fez menção de jogá-lo no chão, mas se acalmou e tomou um gole da bebida quente. Reconfortante.

- Você tem certeza que vai querer só isso? Você podia ter ido pra um café, não?

O ruivo revirou os olhos. Todo castigo era pouco mesmo.

- Achei que seu trabalho fosse fazer com que os fregueses queiram voltar aqui. – ironizou carrancudo.

- É que aqui não é lugar para bebezinhos. – o outro retrucou à altura.

Ichigo bateu no balcão com raiva.

- Eu só estava fugindo do frio! – defendeu-se. - Olha aqui... Não estou em um bom dia. Que tal amolar outra pessoa?

- Não está em um bom dia? – puxou um sorriso maldoso. – Mais um motivo para se comportar direito em um bar.

Ichigo apoiou a testa na mão tentando se acalmar.

- Eu não gosto de beber, okay?

- Humm... Então quer dizer que não sabe beber.

Cerrou os dentes. O que aquele homem estava tentando fazer? E por que ele estava dando confiança para as provocações dele?

- É. Talvez eu não saiba mesmo. E daí? – olhou para ele furioso.

O barman soltou uma gargalhada bem sonora e peculiar. Ichigo sabia que nunca ouviria ninguém mais rir de jeito parecido.

- Você é engraçado, garoto. – disse. – Fez a diferença no dia de hoje!

O que ele quis dizer? Ah, dane-se! Bebeu mais do chocolate quente. Queria terminar logo para... Para... Ir pra casa?

Droga, não queria terminar nada.

- Sabe... Talvez eu possa... Beber alguma coisa mais forte... Mas não tanto. – corou. Era como se estivesse dando o braço a torcer. Mas e daí? Era só um barman esquisito com uma risada memorável. Provavelmente não o veria nunca mais.

- Certo. – o homem sorriu vitorioso. – Vou providenciar.

Ele não ia se embebedar! Só ia relaxar um pouco...

- Beba isso. – o barman voltou com a bebida.

- O que é? – Ichigo quis saber.

- Você vai gostar, só beba. – sorriu.

Embora desconfiado, Ichigo bebeu. Se fosse drogado, envenenado... Não faria diferença naquele dia pavoroso.

- Não é tão forte, não é? Dá para começar.

O ruivo concordou com a cabeça.

- E então? Qual é o seu problema?

- Você é um barman, não um psicólogo. – olhou feio para o homem de cabelos e olhos azuis.

- Acredite, garoto. Eu sou os dois. – riu.

Ichigo não era de contar seus problemas nem para os amigos mais íntimos. Que dirá para um cara que acabou de conhecer!

Se bem que ele devia ouvir toneladas de dores de cotovelo o dia inteiro. Nem ia se lembrar das suas, se contasse.

Mas claro que ele não ia contar nada!

Ao invés disso, só bebeu mais.

- Me sinto um pouco melhor... – disse depois de um tempo.

- Ótimo. – o homem sorriu satisfeito. – Posso trazer algo mais forte, garoto?

- Me chamo Ichigo. Kurosaki Ichigo. – ele não estava fazendo amizade nem nada. Só era estranho ser chamado de garoto o tempo todo.

- Grimmjow Jeaggerjaques. – o outro se apresentou também. – Vou fazer você largar a mamadeira hoje. – riu de novo.

Embora muito irritado com a piadinha, o ruivo deu de ombros e aceitou. Qualquer coisa era melhor do que se lembrar daquele rosto da cor da neve, de todo o esforço que fizera durante meses e das mensagens confiantes dos amigos e parentes.

 

****

 

- Eu conheço essa garota desde o colégio... – a voz agora mole de Ichigo ia dizendo. – Ela é linda... Sério. Você não acreditaria o quanto... Ela é perfeita, nem parece humana.

- Sei... – Grimmjow ia incentivando. Por algum motivo, estivera muito interessado naquele garoto ruivo emburrado. E misterioso! Foram precisas muitas doses para que ele começasse o desabafo!

- Nós fazíamos tudo juntos... Ela é a única que consegue me fazer levantar quando eu caio...

- E você gosta dela. – Grimmjow queria encurtar a babação.

- É... – nem precisava dizer que o garoto estava com a face avermelhada. Também por causa da bebida, claro. – Eu nunca tinha gostado de alguém assim, mas... Mas ela simplesmente disse que não consegue me ver desse jeito. – franziu a testa.

- Vai ver ela gosta de outro. – o homem deu de ombros.

- Pode ser... – Ichigo segurou-se no balcão com as duas mãos.

- Você ta legal? – Grimmjow inclinou o rosto para ele.

- To sim, só... Um pouco tonto... – sacudiu a cabeça.

O barman teve que se conter muito para não rir daquela cena.

- Mas, como ia dizendo... A garota...

- Ah. – ele ficou um tempo confuso. Olhou para o celular. – Nesse momento deve estar tendo uma festa pra mim lá em casa.

Grimmjow estranhou. Mas bêbado é assim mesmo.

- Ahn... É seu aniversário?

- Não. Todo mundo acha que eu passei no vestibular. – bebeu mais um pouco. – Eu estou tentando há três anos e não consigo! Não sei por que! E eu falhei de novo!

- Ugh... Por isso que eu sou barman!

Ichigo riu. A primeira risada naquele dia.

Grimmjow sentiu-se bem em ver aquilo. Mas não se questionou sobre o motivo.

- Parece que as coisas são sempre difíceis para pessoas como eu...

- Como você? Quer dizer... Bebezinhos da mamãe?

- Mais ou menos isso. – Ichigo concordou encarando o copo na mão. – Pessoas que fazem tudo certo nunca ganham nada em troca.

- É. Aposto que a sua garota ta saindo com um cara que chifra e bate nela de vez em quando.

Os olhos de Ichigo quase saltaram das órbitas.

- É brincadeira, relaxa! – Grimmjow riu da reação dele.

Ichigo riu mais um pouco.

- Mais! – pediu mais bebida.

 

****

 

Já estava tarde. Ichigo chegara naquele bar assim que havia anoitecido. E pelo visto, ia ficar até o amanhecer.

Nem estava mais falando coisa com coisa.

- ... Depois que minha mãe morreu, ela era a única pessoa que me fazia sorrir...

- Aham.

- ... E quando eu caí da escada e me machuquei todo, ele só riu da minha cara!

- Sei.

- ... Eu sempre tive muito medo de ficar sozinho... E também de elevador...

- Sim.

-... Eu tenho que cortar o cabelo em casa por que as pessoas não param de perguntar sobre a cor dele!

Porra. Mas que garoto carente! Tudo bem que ele não devia mais nem lembrar onde estava, de tão bêbado. E que talvez fosse seu primeiro porre. Mas ele era mesmo carente! Será que nunca tinha contado seus problemas para ninguém na vida? Estava desenterrando coisas que até Deus duvida. Coisas bobas, irrelevantes, mas que para ele pareciam fazer TODA a diferença.

Era a prova de que ele precisava se abrir mais.

- Grimmjow. – um outro barman chamou-o. – Melhor mandar esse garoto para casa. Ele não está nada bem! E eu não aguento mais a voz dele!

- É... – ele concordou contrariado. Mesmo que aquele ruivo fosse irritante, ele estivera interessado nas coisas que ele estava dizendo. De verdade. Por mais estranho que parecesse. – Ei, Ichigo! Você consegue se levantar?

- Ahn? – ele demorou a entender a pergunta. – Ah. – ergueu-se do banco e sentiu-se tonto. Sentou-se de novo. – Acho que não...

- Certo... – Grimmjow coçou a cabeça confuso. O outro cara o olhava furioso, como se o estivesse culpando pela situação do ruivo. – Não se liga aqui não. Vou dar um jeito! – rosnou pra ele. – Então... Que tal ligar seu celular? Chamar algum amigo seu, seu pai, não sei...

- NÃO! – Ichigo gritou e jogou o celular no chão. Ele abriu e a bateria foi parar longe. – Não vou ligar pra ninguém!

- Ai, ai... – Grimmjow suspirou pacientemente. Estava acostumado com a situação. – Fica quietinho aí então.

Ichigo balançou a cabeça obediente. Pelo menos ele não tinha ficado agressivo com o álcool. Embora tivesse ficado pirracento ao invés.

- Acho que bebi demais... – ele finalmente se ligou e semicerrou os olhos. Apoiou com força os braços no balcão e deitou a cabeça.

- Você acha? – Grimmjow riu. – Okay. Talvez você tenha razão.

O ruivo resmungou alguma coisa ininteligível de volta.

E o barman de cabelos azuis foi terminar de arrumar as coisas para fechar o bar.

- Me sinto... Anestesiado... – foram as últimas palavras do garoto de olhos castanhos antes de cair no sono.

 

****

 

O sol entrava pelo quarto. Atingiu em cheio os seus olhos, obrigando-o a acordar. Mesmo que fosse inverno e a luz não fosse assim tão forte, ele sentiu-se sensível à claridade. E acabou acordando de qualquer jeito.

Abriu os olhos devagar. Nossa! Que dor era aquela? Parecia que sua cabeça pesava duas toneladas!

Humm... Pelo menos a cama era macia, quentinha e... E...

- AHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!

- Ahn... - uma voz surgiu do lado, arrastada pela sonolência. – Bom dia pra você também, Ichigo... – ergueu a cabeça, mas voltou a deitar-se e fechar os olhos.

Não. Não. Não.

Não podia ser!

Aquela dor estava afetando seus sentidos. Ele não estava vendo aquilo. Ele não estava...

Olhou para o próprio corpo. Usava uma roupa bem maior que o corpo dele. Olhou ao redor. Estava num quarto totalmente desconhecido. Olhou trêmulo para o lado. Tinha... Tinha... Tinha... UM HOMEM DORMINDO DO SEU LADO, NA MESMA CAMA!

- O QUE ESTÁ ACONTECENDO?! – continuou gritando em pânico. – QUEM É VOCÊ?! O QUE ESTOU FAZENDO AQUI?!

Grimmjow resistiu um pouco, mas se viu obrigado a sentar-se na cama e encarar o ruivo chiliquento.

- Quanta ingratidão! Eu te trouxe para cá quando você dormiu ontem no bar e não queria chamar seu pai. Te dei atenção, uma roupa quentinha, cama... E tudo que eu ganho com isso é você gritando comigo logo de manhã? – não parecia nada contente.

Ichigo apertou os olhos tentando se lembrar da noite anterior. Nossa! Estava com tanta dor que ficava difícil pensar! Seu corpo parecia todo quebrado. Não era hora de pensar nisso! Tinha que ser lembrar!

De repente, aquele mix infernal ilustrou sua mente, com imagens daquele dia horrível... E então... O bar... O barman com a risada estranha. As bebidas que ele não fazia idéia do que eram...

- Mas... M-M-Mas... Você podia ter me deixado num sofá ou algo assim! - não era fácil aceitar a idéia de que dormiu com um homem desconhecido!

- Por quê? Eu tenho uma cama grande e além do mais, você bem que gostou. – o outro se empertigou.

Ai Deus. Não. Mais essa não. Tudo menos essa!

Eles não tinham... Ele não tinha...

Que horror! Sentiu que ia vomitar ou morrer ali mesmo.

- Que cara é essa? – Grimmjow perguntou irritado.

O ruivo não conseguia se mexer.

Cacete, será que era por isso que seu corpo todo doía tanto? Queria que uma bala perdida entrasse pela janela naquele momento e acertasse sua cabeça. Estava ficando roxo de vergonha.

- C-C-Como assim gostei? – de algum modo ele conseguiu perguntar. O coração querendo passar pela garganta. – O que você fez comigo?!

Grimmjow olhou para ele entediado.

- Eu não fiz nada com você. Você que ficou me abraçando enquanto dormia. – apertou uma sobrancelha.

Ichigo ainda estava na defensiva. E com o rosto queimando. Não ia acreditar tão fácil nas palavras daquele estranho!

- Então por que estou todo dolorido? – perguntou baixinho, sabendo que nunca se sentira tão desconfortável na vida.

- Isso é o cansaço da ressaca, seu idiota! Você teve muita sorte de eu não ser um estuprador, então para de reclamar!

Ichigo encolheu-se ligeiramente aliviado. Podia confiar nele, não é?

Quer dizer... Se ele tivesse feito alguma coisa desse tipo ia se lembrar! Pelo amor de Deus, claro que ia!

- Então... – pigarreou muito sem graça. – Onde está minha roupa? E meu celular?

Grimmjow apontou para uma cadeira onde as coisas repousavam.

- Eu preciso ir para casa. – levantou-se da cama. Mas a dor de cabeça fez com que ele voltasse. – Aii! – apertou os olhos fechados.

Grimmjow espreguiçou-se sem pressa e ficou encarando o ruivo. Sorriu. Como era ingênuo.

- Eu acho melhor você ficar aqui. – disse a ele. – Até você se sentir melhor, quero dizer. O efeito da anestesia passou e eu sei que você não vai querer encarar sua família e seus amigos.

Com uma pontada no peito, Ichigo lembrou-se do quanto quis fugir de tudo aquilo. Por isso tinha bebido tanto...

Mas espera! Como Grimmjow sabia disso? E... Anestesia? Do que ele estava falando?

- Do que você está falando? – perguntou.

- Foi você que disse isso ontem. “Me sinto anestesiado” antes de apagar no balcão do bar. – riu.

Ichigo encolheu os ombros. Que vergonhoso. O que mais teria dito que não se lembrava?

- E sobre sua família e seus amigos... Você me contou à medida que foi se “anestesiando”. – fez aspas no ar. – Me contou sobre uma garota perfeita que te rejeitou, sobre o vestibular que fez três vezes e não passou, sobre a festa de comemoração e até sobre seu complexo com os seus olhos, que você diz que são vesgos.

O que?! Complexo com os olhos?! Então ele estava falando sério!

Mas por que diabos disse a ele uma coisa assim? Era algo que ele só pensava consigo mesmo enquanto se olhava no espelho!

- E-eu... – não conseguia nem encará-lo. – Eu disse tantas coisas desnecessárias assim?

- Há! Você não tem noção! – ele riu. – Parece que eu sei tudo sobre você, Ichigo!

Ele engoliu em seco. Nunca mais beberia na vida, era uma promessa!

Afundou-se na cama de novo. Estava morto.

- Você... Não tem que trabalhar hoje? – mudou de assunto.

- É minha folga. – ele sorriu. – Que conveniente, né? Vou ter o dia todo para cuidar de você.

O ruivo arrepiou-se. Cuidar dele? Por que ele falava com esse tom... Estranho?

- Siga minhas recomendações que você logo vai se sentir outro para voltar para casa.

E ele tinha alguma escolha melhor? Não.

- Eu queria tomar um banho... 

- Certo. – Grimmjow assentiu. – Eu te empresto outra roupa.

 

****

 

Ichigo saiu do banho pensando na cama. Ressaca era um pesadelo mesmo. Estava cansado como se tivesse corrido pela cidade várias vezes.

As roupas que Grimmjow emprestara ficaram um tanto largas. É claro. O barman era mais alto e mais forte também. Mas estava de bom tamanho para quem só ia se afundar num colchão.

- Como se sente? – Grimmjow apareceu no quarto com uma bandeja em mãos.

Ichigo deu um pulo de susto. Ainda bem que se vestiu no banheiro, não pôde deixar de pensar.

- Cansado. – respondeu. E de repente se sentiu ridículo com aquelas roupas grandes.

Grimmjow riu um pouco.

- Como eu imaginei. É bom que fique deitado aí o dia inteiro, ouviu? Vou deixar a luz apagada e a janela fechada. – pousou a bandeja na cama. – Trouxe suco e alguma coisa pra você comer. Mas você pode se sentir enjoado, então só coma se estiver mesmo com fome. E se lembre de beber muita água.

- Você é médico também? – Ichigo desafiou.

- E você é um chato de carteirinha? Reclama de tudo! – revirou os olhos.

- O-Obrigado... – Ichigo aproximou-se da bandeja.

- Por quê? Por te chamar de chato? – puxou um sorrisinho.

- Não. Pelo café da manhã. – fez uma careta.

- Ah, claro. – sentou-se ao lado dele na cama.

Fez-se silêncio enquanto Ichigo bebia o suco.

- Então... Grimmjow... – surpreendeu-se por lembrar o nome dele. – Por que é que decidiu ser tão... Hun... Legal comigo? Eu sou um chato. E tenho certeza que sou só mais um dos bêbados que dormem no seu bar.

Ele meneou a cabeça.

- Errado. Você é o único bêbado que chega no bar pedindo um chocolate quente. E também o único que faz pirraça e joga o celular no chão quando tentamos contatar a família. – tentou prender o riso, mas não conseguiu por muito tempo.

Ficou escarlate de novo. Que merda. Era melhor ficar quieto. Não queria mais saber o que tinha feito naquele maldito bar! Cada vez que Grimmjow abria a boca era para falar alguma coisa pior do que a anterior.

- Não tem graça. – disse baixinho.

- Ah, tem sim! E olha que eu achei que já tinha visto de tudo lá hahahaha!

Ichigo terminou de beber o suco e empurrou a bandeja.

- Obrigado. – estava emburrado.

Grimmjow levantou-se e pegou a bandeja.

- Eu já volto. – foi para a cozinha.

O ruivo ficou olhando enquanto o outro se afastava e suspirou. Que situação bizarra em que se encontrava!

Os olhos caíram para o celular junto com suas roupas na cadeira encostada à parede. Sentiu-se tentado a ligá-lo e conferir as chamadas perdidas. Seu pai e suas irmãs deviam estar loucos de preocupação! E... Quem sabe Rukia...

Não. A lembrança daquele rosto angelical fez com que seu peito doesse violentamente e ele desistisse de se levantar. Não estava a fim de encarar aquilo tudo... E ele era um adulto afinal, podia sair sem dar satisfações! E também, até parece que ia conseguir chegar em casa com aquela dor e aquele cansaço enormes.

Fechou os olhos e cobriu-os com o antebraço. Sabia que não podia ficar escondido ali para sempre, mas sabia também que...

- Ichigo? – a voz de Grimmjow acordou-o dos pensamentos. – Está dormindo?

- Não. – ele respondeu com a voz cansada.

- Humm... – o ruivo sentiu o colchão se mexer. O barman havia se juntado a ele, provavelmente. – Não me diga que está remoendo suas mágoas.

Ichigo apertou os lábios com raiva. Mas resolveu responder contrariado.

- É, estou.

- Tsc. Achei que estava com dor de cabeça!

- É claro que estou com dor de cabeça! – onde ele queria chegar?

- Então para de pensar! Que coisa. Até parece que não quer melhorar!

Ichigo tirou o antebraço dos olhos e ficou piscando para acostumar a visão. Ficou encarando o homem de cabelos azuis.

- Não tem como parar de pensar... – ele disse fraco.

- Olha aqui. Quem entende de ressaca sou eu. Você é um iniciante então faça o que eu mandar! – de repente pareceu impaciente!

Ichigo afastou-se instintivamente na cama.

- Eu entendo que você esteja mal por causa daquela garota idiota e da porra do vestibular. Mas o que vai adiantar ficar pensando nisso? Ah, vou te dizer o que vai adiantar! – olhou bem nos olhos do ruivo. – Da próxima vez que você encher a cara, vai contar pro próximo barman mais essas duas histórias também, junto com as outras trezentas que você contou ontem! – reprovou com uma careta. – Você precisa... Deixar essas coisas pra trás! O que aconteceu, aconteceu. E acabou! Siga em frente!

- Hunf. Até parece que você não tem problemas, falando assim!

Grimmjow riu.

- Não existe quem não tenha problemas, Ichigo. E eu posso afirmar que tenho sim. Mas eu sou um homem adulto que não gosta de ficar chorando!

- Eu não estou chorando! – Ichigo defendeu-se abalado.

Grimmjow não disse nada, só ficou encarando-o.

- É... Tá certo. – reconheceu derrotado. – Você tem razão... – desviou os olhos.  

- Talvez você não esteja tentando o curso certo no vestibular... Tenta outro! E eu duvido também que essa garota seja assim tão boa quanto você diz. – franziu o rosto.

- Não! Ela é...

Outra encarada.

- É, é. – Ichigo sentiu-se um pouco confuso. – Ela não é tão boa assim. – sabia que estava mentindo. Mas era melhor acreditar nisso.

- Você consegue coisa melhor! Não pode se contentar com pouco! – Grimmjow incentivou-o.

- É! Isso! – Ichigo começou a animar-se um pouco. – Eu posso encontrar um curso melhor e uma garota melhor!

Grimmjow ficou sorrindo para o rosto subitamente diferente dele.

- O-O que foi? – Ichigo corou e passou a mão no rosto. – Eu me sujei ou o que?

- Não é nada. – ele despistou. Mas riu um pouco.

- Então por que está rindo? – agora Ichigo estava bravo. – Você descobriu que eu sou vesgo mesmo. – deduziu tímido.

Grimmjow aproximou-se, deitando de lado com o rosto virado para ele.

- Não tem nada de errado com os seus olhos. – disse mais baixo, olhando-o muito profundamente.

- G-Grimmjow... – o rosto de Ichigo paralisou. Os olhos arregalados.

O barman diminuiu ainda mais a distância e uma das mãos foi parar na cintura de Ichigo, como se quisesse trazê-lo mais para perto.

- Grimmjow, eu... – Ichigo ofegou.

- O quê? – os olhos azuis faiscaram diante do rosto fragilizado e da falta de resistência dele.

- Eu preciso vomitar. – ele disse quebrando o clima em zilhões de cacos. Tampou a boca com a mão em seguida e levantou-se correndo.

- Ahh... – o homem soltou o ar desapontado. – E depois ele acha que eu não tenho nenhum problema! – estirou-se na cama.

 

****

 

Ichigo se recuperava no banheiro. Lavou o rosto e escovou os dentes com a respiração descompassada. Ainda bem que tinha alguém para ajudá-lo por ali.

Olhou-se no espelho e viu seus olhos. Imediatamente lembrou-se de minutos antes, quando Grimmjow dissera que não havia nada de errado com eles.

Arrepiou-se.

Será que... Será que ele estava... Dando em cima dele?!

Quase riu do próprio pensamento. É claro que não! Se ele estivesse interessado nele, teria se aproveitado quando estava bêbado.

Mas em compensação, estava cuidando dele de graça e ainda deixou que dormisse na sua própria cama. E, não se lembrava bem, mas ele tinha colocado a mão na sua cintura, não tinha? Ou será que só estava tonto demais?

Droga, não podia ficar pensando! A dor estava piorando.

- Você está bem, Ichigo? – o homem invadiu o banheiro.

Ichigo pulou de susto de novo. Tudo bem que era a casa dele, mas ele não sabia respeitar a privacidade alheia não?

- E-estou. – olhou para ele.

- Você precisa beber água. – pegou o pulso dele e foi puxando-o para o quarto. – E descansar. Deita lá de novo.

- Certo. – Ichigo voltou para o quarto e deitou-se na cama. Bebeu a água que o barman trouxera e fechou os olhos.

- Durma um pouco. Vai te fazer bem.

Ichigo seguiu o conselho e em pouco tempo estava adormecido.

Grimmjow ficou entediado e levantou-se. Pegou o celular do ruivo na cadeira e ligou-o.

Como esperado. Várias chamadas perdidas. Mas ele não tinha que se preocupar com isso agora.

Começou a mexer no aparelho e encontrou algumas fotos. Inclusive de uma garota branquinha, de cabelos negros e olhos enormes azuis. Estava fazendo uma careta proposital para a câmera. E mesmo assim percebia-se o quanto era bonita. Era ela. Tinha certeza. Passando as fotos, acabou vendo-a de novo. E algumas vezes ela aparecia acompanhada de um Ichigo claramente feliz.

Riu bem baixinho. Olhou para o ruivo que dormia com as sobrancelhas apertadas. Ele ficava bem quando parecia feliz. Quer dizer... Ah! A quem ele queria enganar? Ichigo era um garoto interessante, sabia disso desde que ele sentou-se no banco do bar e pediu a droga do chocolate quente. Quando a bebida esquentou-o e as bochechas coraram de leve naquela hora, Grimmjow quase não conseguiu tirar os olhos dele. E o modo como parecia irritadinho, mas os olhos eram inegavelmente doces... E, principalmente, tinha aquela coisa quente que sentia no peito quando percebia a fragilidade dele. Quando ele começou a desabafar problemas da infância, por exemplo... Quando falou de sua mãe e das crianças que o maltratavam... E também quando o abraçou durante a noite...

Não sabia o que tinha acontecido com ele. Mas de repente sentiu uma fúria enorme e apagou todas as fotos em que aquela maldita garota se encontrava. Apagou tudo. Sem dó. Sem pensar.  Em seguida, desligou o celular e andou pelo quarto, tentando se acalmar.

Não podia agir daquele jeito. Ichigo nem suspeitava de nada que ele pensava.

Mas bem... A qualquer momento podia mostrar a ele...

Foi até a cama e deitou-se ao lado dele de novo. Ele estava dormindo de barriga para cima, com a cabeça tombada e a mão espalmada ao lado. Grimmjow levou o dedo à testa dele e contornou de leve seus franzidos. Por que ele não relaxava o rosto nem quando dormia? Parecia querer se proteger atrás de uma imagem séria e dura. Mas ele sabia... Sabia que aquele jovem era um poço de sensibilidade. Desceu o dedo pelo rosto dele e tocou seus lábios entreabertos. Quando deu por si, estava se aproximando, se aproximando e...

- Hun... – Ichigo deu sinal de consciência.

Grimmjow tentou afastar-se rápido, mas não deu tempo. Os olhos do ruivo abriram-se o flagrando.

- AHH! – o ruivo sentou-se assustado. – O QUE VOCÊ ESTAVA FAZENDO?

- Ei, para de gritar! – Grimmjow ralhou. – Só estava tomando conta de você!

- Para tomar conta não precisa ficar tão perto! – continuou gritando indignado. – Quer saber?! Não precisa mais cuidar de mim, não! Essa dor não passa mesmo! É melhor eu ir embora! – fez menção de levantar.

- Não! – o barman impediu-o segurando seus pulsos no colchão. – Você não vai a lugar nenhum!

Ichigo piscou os olhos assustado. Em seguida encarou as mãos que apertavam com força seus ossos.

- Eu já disse que você tem que repousar! Então faça o favor de obedecer! – a voz de Grimmjow estava bem mais incisiva, quase agressiva.

Ichigo ficou com medo.

- E-Eu posso repousar em casa! – retrucou tentando mexer os braços para livrar-se das mãos do outro. Em vão. – Não estou me sentindo à vontade aqui!

- E vai se sentir melhor com os seus problemas em casa? – apelou.

- Você ta me machucando! – o ruivo continuava tentando se soltar.

- Então fica quieto!

- Não! Você está me assustando! E agora o meu juízo está dizendo que passei tempo demais aqui!

- Eu estou querendo te ajudar! – trincou os dentes fazendo mais força nas mãos.

Ichigo franziu o rosto por causa da dor.

- Qual é o seu problema?! Me ajudar tudo bem, eu agradeço muito. Mas não pode me obrigar a ficar aqui!

- Eu não quero que você vá embora! – o homem de olhos azuis foi mais direto.

Ichigo perdeu a fala por um instante. Os dedos de Grimmjow se afrouxaram um pouco.

- Você está dando em cima de mim! – Ichigo concluiu num berro de horror. Aquilo o estava revirando o estômago de novo.

Grimmjow sorriu.

- É. Estou.

O rosto todo de Ichigo petrificou-se em pavor e explodiu em vermelho.

- Me solta! Me solta agora mesmo! – começou a se debater para sair dali, mas Grimmjow fez mais força pressionando seu corpo contra o dele, empurrando-o deitado e segurando seus braços na cama.

- Se eu te soltar, você vai embora. E tudo o que eu fiz até agora vai ter sido em vão.

- Do que você está falando?! – Ichigo apertava os olhos fechados. – Você só me ajudou por isso, é?!

- Pode ser que sim. – riu. – Mas eu não atingi nenhum dos meus objetivos ainda. Não consegui fazer você se sentir melhor e também não consegui te beijar. E se tem uma coisa que eu detesto é não conseguir o que eu quero.

- Isso é assédio sexual! Eu vou te denunciar! Me larga! – começou a gritar.

- Shh! Quando mais você se agitar, mais difícil vai ser para a ressaca passar! Você não ouviu nada do que eu disse antes? Tem que relaxar!

- Meio difícil com um... – crispou o nariz. – Um pervertido em cima de mim!

- Tudo bem, tudo bem... Eu vou pegar leve com você. – descolou o corpo do dele, mas não saiu da posição. – Vou te acalmar bem devagar... – puxou um sorrisinho descarado e beijou os lábios dele.

- Humm! – Ichigo trancou a boca não deixando o beijo fluir.

- Você não está colaborando! – Grimmjow olhou para ele com raiva. – Assim fica difícil ser bonzinho!

O ruivo olhou feio para ele, ainda com os lábios apertados, como uma criança que se recusa a comer.

Mas o barman não quis nem saber. Aproximou-se de novo, passando a língua nos lábios trancados a fim de forçá-los a abrir.

Ichigo tentou mexer as pernas, mas o outro foi esperto prendendo-as com as suas próprias. A única forma de protesto que lhe restou foi fazer uma careta de nojo, mas o tiro saiu pela culatra.

- Ah! – abriu a boca para resmungar. E foi a deixa perfeita para Grimmjow consumar o beijo.

Começou sereno, mas à medida que Ichigo começava a debater-se e rejeitá-lo, o homem ia ficando impaciente e agressivo.

- Droga! Você sabe o quanto é ruim ser rejeitado! Não devia fazer isso com os outros! – Grimmjow disse de modo bem duro quando se separou do ruivo impossível.

- Mas eu não gosto de você! Não posso te corresponder! – Ichigo gritou de volta.

- Mas também não precisa ser tão rude comigo! Eu também tenho sentimentos, sabia?!

O errado era ele, claro! Estava praticamente abusando do pobre garoto de olhos castanhos. Mas de algum modo, ele sentiu-se tocado por aquelas palavras. Os olhos dele pareceram solitários e sinceros acompanhando sua voz. E então, suas poucas forças sucumbiram.

- I-Isso não é justo! Eu não estou forte o suficiente para me defender! – Ichigo reclamou tentando fazer o outro sentir-se culpado.

- Então deixa eu cuidar de você... – Grimmjow diminui a distância de novo.

- Não! – Ichigo virou o rosto. – Isso não é cuidar! Quem disse que beijo cura ressaca?!

Grimmjow riu.

- EU disse! – as palavras saíram fortes. – E me diz, quem é que entende mais de ressaca entre nós dois?

Sem resposta. Filho da puta! Tinha acabado com seus argumentos!

Diante da suposta desistência de Ichigo, o barman tomou liberdade de beijá-lo mais uma vez. Ou melhor, de tentar cuidar dele.

O ruivo não consentiu de uma hora para outra. Claro que não. Enquanto o homem agressivo invadia a sua boca com a língua e o sufocava com seus lábios, ele não economizou no apertar de olhos e no debater de pernas.

Mas Grimmjow era insistente. Muito insistente. Teimoso. E não era porque Ichigo não parava de espernear que ia desistir. Na verdade aquilo o incitava mais a continuar. Afinal, o que é fácil não tem graça de conseguir.

Parou algumas vezes para respirar, mas não descansou. Provocou-o e não sossegou até que aquele garoto cansasse da inércia. O homem de olhos azuis podia ser um impaciente e ter aquela mania de conseguir as coisas à força. Mas não podia negar que sabia como seduzir. Era um bom amante, capaz de despertar sensações inimagináveis em seus parceiros quando queria conquistá-los.

E foi o que aconteceu. Deu o melhor de si e o ruivo de repente não só parou de agitar-se como começou a correspondê-lo. Parecia meio irado, como se estivesse beijando-o apenas para livrar-se dele. Mas com o tanto de ódio que empregou naquela ação, ficou mais parecendo uma briga do que um beijo. O que animou o barman. E fez com que Ichigo perdesse o sentido do que estava fazendo.

Ficaram assim algum tempo, um tentando vencer o outro. Não sabiam exatamente no que. Mas sim, estavam competindo alguma coisa. Quando finalmente se separaram, ambos estavam ofegantes como se tivessem acabado de sair na porrada.

- E a dor, Ichigo? – Grimmjow perguntou com um sorriso enorme.

- Que dor?! – o ruivo cuspiu a pergunta com uma expressão furiosa.

Foi o suficiente para o barman cair numa gargalhada quase infinita.

- Ótimo. Essa é a prova de que estou cuidando bem de você!

O rosto de Ichigo ficou tão vermelho, mas tão vermelho, que parecia que tinha perdido todo o sangue do resto do corpo.

- Q-Quero dizer... – retratou-se consigo mesmo. – E-Eu...

- Por que está fugindo? – os olhos de Grimmjow quase se grudaram aos dele. – Você sabe que gostou.

Ichigo não conseguiu responder. Seu coração batia tão forte e tão alto, que não conseguia pensar em nada. Ele realmente tinha se esquecido da dor. Estivera se concentrando em tantas outras coisas, que simplesmente esqueceu! Mas o que estava acontecendo? Por que tinha correspondido aquilo? Foi uma violência sem fim, aquele homem esquisito podia dizer o que quisesse sobre cuidar dele, mas estava mesmo era cheio de intenções perversas.

Mas por que isso o tinha feito mesmo se esquecer das dores?

Aquilo não podia estar acontecendo! Ele era um homem! E ele tinha correspondido o beijo dele! Não adiantava dizer para si mesmo que só queria se livrar dele. Ele tinha correspondido!

E agora que Grimmjow colava seus lábios nos dele de novo, ele estava fechando os olhos com mais calma. Como se seu corpo estivesse aceitando! E não só aceitando... Mas... Mas... Gostando! Parecia até que estava se desligando de tudo daquele jeito. O sangue corria tão rápido que era impossível pensar em outra coisa.

Então o beijou de novo. Aquele homem era incrível! No dia anterior anestesiou as dores das suas frustrações. E agora estava anestesiando as conseqüências da anestesia anterior. Meu Deus! Isso nunca teria fim! Se transformaria em dependência!

Agora as mãos de Grimmjow não seguravam mais os braços de Ichigo. Não era mais necessário. Começaram então a subir e descer pelo corpo dele. E mesmo que o ruivo estivesse assustado, não deu nenhum sinal de que quisesse parar. Ele só queria continuar daquele jeito. Daquele jeito atordoante, mas que o fazia se esquecer de tudo.

 

****

 

Quando finalmente pararam, esgotados – e olha que não haviam passado dos beijos – Ichigo quebrou o silêncio de descanso.

- Por que? – perguntou como se estivesse pensativo. – Por que você quis... Hun... Cuidar de mim assim?

Grimmjow levantou uma sobrancelha achando a pergunta interessante e apoiou-se com os cotovelos no colchão para olhá-lo melhor.

- Eu achei você interessante. – sorriu. – Diferente de tudo que já tinha visto. E me senti atraído pelas coisas que você não queria contar. E depois pelo que você contava. – riu. – Não sei se isso explica bem. – os olhos reluziram.

Ichigo ficou tímido e desviou o olhar.

- O que foi? – o homem insistiu. – Está se sentindo mal de novo?

- N-Não... Só... É que eu nunca tinha feito isso antes. Quer dizer... Eu achei que eu gostasse da Rukia e isso...

- Ela não é uma pessoa real. Não para você. Isso só existe na sua cabeça. – pegou a mão dele. – Eu sou real. E o que é real não precisa ser questionado!

Ichigo surpreendeu-se com aquelas palavras. Nossa! Como ele era seguro! Queria ter só um pouquinho dessa confiança toda!

- Você se sentiu bem comigo, não se sentiu? – o sorriso dele chegou mais perto de Ichigo. Ele continuava apertando sua mão.

- E-Eu... – estava muito sem jeito. Mas não podia mentir. Tinha sim. Estranhamente tinha se sentido muito bem.

- Não... Eu não cuidei de você porque te achei interessante e nem atraente. – de repente Grimmjow parecia ter mudado de idéia. – Foi porque eu senti que você precisava. Garoto carente. – as palavras foram doces, mas o sorriso era malicioso.

O coração de Ichigo apertou ao mesmo tempo em que suas bochechas formigaram de tão quentes. Quer dizer... Ele não queria estar olhando naqueles olhos naquele momento, mas... De algum modo, ele sabia. Grimmjow tinha razão. E conseguiu enxergar aquilo nele sem ele precisar fazer nenhum tipo de esforço.

Era tocante.

- P-Por que trocou a resposta? – ele queria ter certeza. Só queria ter certeza.

- Porque eu olhei para o seu rosto frágil. E era exatamente assim que ele estava quando eu conheci você ontem.

Ichigo encarou-o mesmo com dificuldades. Não podia tirar os olhos daqueles azuis tão vivos. Seu peito estava se enchendo de um sentimento terno e quente que estava afogando todas as suas memórias. E aquilo era tão bom que ele queria ver e sentir mais.

- E então? Como está se sentindo agora? – o barman mudou de assunto e de tom de voz. Agora parecia mais descontraído, como se não tivesse dito coisas tão profundas segundos antes.

Ichigo sorriu. A resposta que ele daria a seguir era o melhor que podia fazer para retribuir tudo aquilo que ganhara.

- Me sinto anestesiado. – riu com as bochechas coradas.

Grimmjow riu junto e beijou-o mais uma vez. Quanto mais anestesia, menos dor.


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