A Herdeira De Chambord escrita por Star


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

"Se você for burro o suficiente para ir procurar a herdeira de Chambord, diga a ela que mandei um olá e que ainda agradeço por levar embora o saco de bosta do meu marido"



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/381671/chapter/1


...


O líquido marrom e viscoso servido no copinho de doses à minha frente deveria ser gim, mas não parece gim nem cheira como gim. Eu balanço o copo, observando a dose bailar desafiando as leis da gravidade, e não consigo acreditar que esse seja o melhor café-da-manhã que meus fundos de jornalista possam pagar. Um obrigado especial à Norman Russeau, o editor chefe do jornal mais meia boca de Saint-Etienne, que outra vez me manda para um buraco fedorento da França para escavar uma história ridícula sobre o gato gordo de uma madame inglesa que ficou preso na tubulação de ar, com uma verba tão curta que não daria qualidade de vida digna nem mesmo a um rato de dieta.

Faço um brinde solitário à minha profissão decadente, ao meu chefe abusivo, à minha doce Elise que preferiu trocar-me pelo ajudante de padeiro acamado de herpes e ao provável recorde que bati de conseguir ser considerado um total fracasso ainda aos vinte e três anos de vida. Santé, ma misérable vie!

“Acharam metade do Raoul na floresta hoje de manhã. Também tinha um pouco pela estrada. Disseram que pareciam vísceras de porco espalhadas”.

Quase engasgo com o gim que desce queimando meu sangue e minhas narinas, como se eu tivesse engolido carvão em braso. Não gosto de ser considerado xereta mas os anos de trabalho me criaram o instinto de captar o mais remoto vestígio de matéria sensacionalista onde for. Olho de esguelha para a mesa ocupada na parte mais escura do bar, onde a luz morna da janela não alcançava. Dois velhos conversam de olhos baixos. O primeiro tem a pele encardida pelos anos de trabalho debaixo de sol, o rosto cavado de rugas e um macacão de operário grande demais no seu corpo frouxo, enquanto o segundo parece mais jovem, com uma boina escondendo a careca rosada e um bigode espesso cinza feito fumaça, e segura firmemente seu copo de gim pastoso.

“Você acha que foi ela?” perguntou o do bigode.

“Quem mais poderia ser?” O velho respondeu, quase irritado. “É uma pena que não encontraram a cabeça em lugar algum”, continuou, “Jimmy acha que os urubus comeram mas todo mundo sabe que deve ter ficado com ela outra vez”.

“Meus pêsames para a pobre viúva” o senhor do bigode disse, fazendo com seu copo de licor aguado a mesma saudação que eu fiz a pouco, com a diferença que a dele carregava alguma dignidade. “O que ela pretende fazer agora, ainda com seus dois meninos pequenos?”

“Fugir da cidade para algum lugar seguro em que tenha parentes, provavelmente. E é isso que nós deveríamos fazer também, se quer minha opinião”.

“Para quê tanto aborrecimento? Já passamos da idade de sermos caçados, meu velho Pascal” o senhor do bigode abriu um sorriso amarelo. “A herdeira de Chambord não aprecia carne velha”.

O velho do macacão soltou uma bufa mal humorada e os homens passaram a discutir sobre outra coisa qualquer antes que eu pudesse captar mais informações. Cabeças desaparecidas, pessoas fugindo da cidade. Tudo tinha cheiro de lenda urbana barata. Virei-me de volta ao balcão e quase caí da cadeira ao encontrar a senhora que me serviu o gim duvidoso me encarando com seus olhinhos amarelados de rato.

“Vai querer mais alguma coisa ou só vai continuar ocupando espaço aqui dentro?” Ela pergunta, a personificação da simpatia, deixando à mostra seus dentinhos quebrados quase tão amarelos quanto os olhos.

Experiências em viagens decadentes por cidades do interior me ensinaram que as melhores histórias podem sair da conversa de um bêbado e que o dono do bar é sempre um narrador importante. É claro que eu prefiro quando trata-se de algum italiano de barrigão batendo no balcão, louco para contar as novas pra um jornalista promissor, do que essas velhas senhoras enrugadas que me olham como se eu tivesse roubado suas calcinhas para usar de meias.

“Mais um copo de gim, se for possível” empurro o copo para ela, tentando parecer simpático. A dona do bar enche até a borda com seus movimentos graciosos de uma capivara com artrite e antes que eu fosse deixado a sós com a sua versão genérica de gim ou que ela me orientasse que orifício anal de homem embriagado não é perdoado, emendei, tentando parecer casual “Uma loucura esses desaparecimentos que têm acontecido, não é?” Cara de rato me olhou, desconfiada. Talvez mais um pouco de solidariedade. “Deve ser assustador para a senhora ter que manter o bar sozinha nesses tempos.”

“Não tenho com o que me preocupar” cara de rato respondeu, rabugenta. “Nenhum ladrão seria estúpido o suficiente para tentar assaltar essa espelunca imunda e os bêbados mais violentos preferem frequentar aquela porcaria ao lado do bordel.”

“E quanto ao senhor achado na floresta?” arrisquei.

“Todo mundo sabe que a herdeira de Chambord só ataca homens” ela respondeu, e senti seus olhinhos miúdos de rato me avaliarem de cima a baixo. “Turistas, principalmente.”

Senhora cara de rato estava virando-se com o pano de prato de retalhos em mãos, pronta para me dar as costas corcunda, mas parou ao me ver deslizar pelo balcão uma nota de vinte francos em um movimento que parecia muito engenhoso e predatório da minha parte, não transparecendo em nada que aquele era o último dinheiro que eu tinha e eu teria de voltar andando a Saint-Etienne, a menos que desse a sorte de conseguir ir foragido em um caminhão de galinhas.

“Parece uma história interessante. Aposto que a senhora a conhece muito bem” disse, na minha melhor voz de senhor de negócios com interesses em lendas urbanas exóticas de cidades pequenas do interior.

“Não pode me comprar com seu dinheiro sujo, porco turista.” Senhora cara de rato disse e escarrou para soltar uma boa cuspida no seu chão, tão forte que mataria uma ratazana de traumatismo craniano se acertasse a cabeça.

“Por favor”, eu apelo, desarmando minha pose de bilionário excêntrico e deixando transparecer todo o cansaço e frustração que vinham me acompanhando ao longo dos anos em um muxoxo pedindo por piedade. Geralmente essa estratégia funciona com mulheres. Exceto Elise, é claro, maldita burguesa cretina e conservadora. “Sou Adrien Dupont, um jornalista com um emprego ridículo e falido, minha noiva me trocou por um maldito moleque com perebas na cara e tudo o que faço é ficar viajando milhas para os diabos que me carreguem para cobrir histórias humilhantes sobre animais mais bem alimentados que eu que entalam em portas e o preço da alfafa. Uma história dessas poderia finalmente salvar minha carreira. Peço apenas algumas informações, não tomarei seu tempo por mais que alguns minutos e depois disso nunca mais tornarei a lhe incomodar. ”

Senhora cara de rato me avaliou com seus olhinhos minúsculos e amarelos, como quem já não tem mais paciência para turistas e suas perguntas irritantes e, apesar da escarrada ofendida, arrastou os vinte francos com seus dedos magricelas para seu lado do balcão.

“Não faça perguntas enquanto eu falo, não tenho nenhuma paciência para ser interrompida. A história é velha, é contada em todas as casas há pelo menos um século. Vê o castelo?” senhora cara de rato fez um gesto com a cabeça indicando a única janela do bar. Uma neblina típica do inverno no interior começa a se formar pelas colinas mas é possível ver lá no alto as protuberantes torres de um castelo esticando-se para os céus. “Há muitos anos atrás um senhor comprou aquele castelo e mudou-se para lá com sua primogênita. Heinz Chambord era ele, um nazista agressivo que perdera para a peste negra a sua esposa e grande parte de sua sanidade. É sabido que antes de se mudar para a França Heinz foi comandante em um grande centro de concentração e lá cometia os piores tipos de brutalidades aos seus prisioneiros. Não houve um que passasse pelas suas mãos e conseguisse sair com vida. Todos da vila que tiveram a má sorte de conhecê-lo afirmavam que ele tinha os olhos de um louco e que falava com paixão sobre ideias medonhas de genéticas e mutação. Muitas pessoas por aqui comentavam inclusive que não havia necessidade de um castelo tão grande para apenas duas pessoas morarem e que sem dúvidas Heinz planejava fazer algo diabólico e queria que estivesse bem escondido. Por outro lado sua filha, Corsette, era a mais adorável jovem dama de todo o país. Era bela e delicada como um botão de rosa em seus 16 anos, cortês como uma senhora da alta sociedade e gentil com todos que lhe dirigiam a palavra. Ela brincava com as crianças do vilarejo, ensinou costura às meninas mais novas, ajudava o antigo curandeiro da vila com suas tarefas e ainda cuidava sozinha de todo o castelo e de seu pai com afeto e dedicação, já que o velho Heinz não aceitava a entrada de outras empregadas ou servos em Chambord.”

“Todos da velha vila tinham muito amor pela menina, de forma que já é de se esperar que estranhassem quando, por dois dias seguidos, ela não desceu as colinas para ir à feira, nem compareceu na costureira para pegar de volta as trouxas de roupa remendada. Quando passou-se uma semana sem que alma alguma saísse do castelo Chambord os moradores ficaram preocupados. Umas senhoras se organizaram para subir e perguntar se a jovem Corsette havia adoecido e mostrarem-se ao dispor do que o velho Heinz pudesse precisar. As bondosas donas-de-casa foram até o castelo e encontraram o velho Heinz, pálido e tão magro que o colarinho da camisa suja pendia frouxo nos seu pescoço ossudo, parecendo mais louco do que nunca. Heinz contou que Corsette havia conseguido um casamento arranjado com um senhor inglês muito rico e com muitas graças não voltaria mais àquelas terras, enxotou as senhoras e bateu a porta. As mulheres voltaram para a vila, assustadas pelo fedor e pela escuridão em que o castelo tinha chegado, e logo espalharam-se boatos de que Heinz estava mantendo a filha presa na torre, enciumado por todo o brilho e frescor da juventude da menina.”

“Um grupo de homens fortes e corajosos armados com tochas, ancinhos e armas de pólvora saíram na calada da noite para invadir o castelo e salvar Corsette, mas dias raiaram e luas nasceram sem que nenhum desses homens voltasse para casa. Em uma noite, ouviram-se por toda a cidade gritos animalescos horrendos vindos da torre do castelo que fez com que toda mulher trancasse com força suas portas e toda criança chorasse escondida nas cobertas. Na manhã seguinte os corpos dos camponeses desaparecidos foram encontrados na floresta, despedaçados como porcos, todos sem suas cabeças. O vilarejo foi tomado por horror, as donas-de-casa só conseguiam chorar, os homens ficaram tão furiosos que subiram a colina e invadiram o castelo para vingar seus pais e irmãos com o traseiro empalado do velho Heinz, mas não encontraram absolutamente nada por lá. Nem Heinz, nem mesmo Corsette. O castelo estava vazio.”

“Os homens encontraram no castelo rastros de sangue pelas paredes e pelo chão, um quarto tenebroso repleto de animais mortos que disseram ser o laboratório de Heinz e, o mais assustador de todos: as cinco cabeças desaparecidas no quarto da torre mais alta, ao lado de correntes e algemas quebradas. Os camponeses acreditam que Heinz fez um experimento impiedoso com sua filha, que a transformou em uma espécie de besta faminta por carne humana e que Corsette libertou-se e devorou o pai.”

“A triste história de Corsette gerou a lenda da herdeira de Chambord, o monstro que devora a carne de homens para se vingar do pai que tanto amou e tanto a feriu. É dito que se um andante perdido em dia de tempo ruim bater à porta do castelo a doce Corsette aparecerá, lhe oferecendo um sorriso carinhoso, um copo de vinho para se esquentar e um quarto confortável para passar a noite. O andarilho se encantará pela sua beleza etérea e ignorará até mesmo o mais óbvio dos sinais: suas unhas e dentes apodrecidos, seus olhos de bicho Ela vai engana-lo e iludi-lo até que seja tarde demais para fugir. Corsette vai rasgar a própria pele, mostrar sua verdadeira forma e lhe engolir a coluna assim” a senhora estalou os dedos, me fazendo pular no banco. Ela soltou um esgar debochado, fazendo brilhar seus dentinhos amarelos miúdos.

“Durante todos esses anos foram muitos os doutores e senhores de fé que passaram pela nossa vila e disseram as mortes serem apenas ataques de cachorros selvagens escondidos pela mata. Poucos deles tiveram a coragem de ir fazer uma visita à Corsette. E quanto aos que foram...” a velha soltou outro de seus risinhos debochados, me olhando com cumplicidade. “Você sabe o que lhes aconteceu.”

De fato, eu sabia. Ou imaginava com alguma ferocidade, o que servia da mesma forma.

“Sem dúvidas há uma boa história naquela colina” a velha olhou além da janela cheia de talhos de madeira, e eu acompanhei seu olhar. A nevoa parecia estar se dissipando mas a atmosfera ao redor das torres do castelo ainda era maligna. Pude ver o que imagino ser a torre mais alta e a base de entrada do castelo, com um enorme portão de ferro despontando lanças para o céu. “Não deve contar a ninguém o que te disse hoje, nem que esteve por aqui. Se por acaso você for burro o suficiente para subir e procurar a herdeira de Chambord não quero ter nada a ver com o cadáver fedorento que for voltar de lá” a velha ralhou mal-humorada e concordei obediente, como um menino comportado, ainda com o olhar perdido no que conseguia ver do castelo. Me pego calculando distraidamente que uma carroça poderia me levar facilmente até lá em cima em duas, talvez três horas de cavalgada.

A velha enche meu copo mais uma vez. Por conta da casa, ela resmunga, seu olho de brilho lustroso feito vidro em cima de mim. Minhas mãos estão pegajosas e suor frio escorre pela minha espinha antes mesmo de virar a dose, não sei dizer se por efeito da história ou do destilado pouco confiável.

“Agradeço pela gentileza e pela boa história, minha senhora, gostaria de poder conversar mais porém temo já estar de partida”, digo, e ao levantar e vestir o casaco barato sinto muito mais energia e disposição nos ossos do que há dois minutos atrás. “O bonde para minha cidade parte em menos de uma hora e preciso estar de volta antes do anoitecer”.

“Diga a Corsette que mandei um olá. Ela deve estar de barriga cheia graças ao carpinteiro, Raoul. Mas nunca se pode saber quando essas criaturas estão realmente satisfeitas” a velha senhora diz, levando outra garrafa de gim até a mesa dos velhos nos fundos do bar.

“Não se preocupe, não tenho interesse em contos de fantasia”, minto, embora boa parte minha gostaria que aquilo fosse verdade. “Não chegarei a dois pés do castelo de Chambord.”

A velha senhora cara de rato me olha por sobre o ombro e abre um sorrisinho debochado. Seus olhos esquisitos feito vidro me dão a sensação de que a velha é capaz de ler perfeitamente tudo o que se passa pela minha alma e isso me causa outro arrepio gelado na nuca.

“É claro que não vai.”

Dou meu último cumprimento à dona do bar e aos velhos do fundo que me acenam com a cabeça antes de sair para a tarde escura de inverno de Paris, e atravesso a rua procurando por alguma carroça que possa me levar até a colina por alguns trocados.



...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Herdeira De Chambord" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.