(...) não faz muito tempo. Parece que foi ontem que Kimiko - minha melhor amiga - se mudou para a casa que ficava ao lado da minha. O tempo é esquisito, sempre passa na mesma marcha mas, quando olhamos para trás, sentimos como se tudo tivesse passado muito rápido... Neste caso não foi diferente (...)

Não sei quantas vezes já me peguei escrevendo sobre ela enquanto a via sentada na cadeira em minha vertical, mordendo a ponta da caneta distraída e exalando beleza enquanto se sente entediada na aula - os exercícios todos feitos rapidamente e perfeitamente em seu caderno. Quando isso acontece... Não sei se paro de escrever para admirar como seu cabelo ruivo brilha ainda mais em contato com os feixes de luz solar vindos da janela, ou se continuo escrevendo para tentar aliviar tudo que vem me corroendo.

Não entendo o que está acontecendo comigo! Ela era minha melhor amiga e continua o sendo, mas agora, de uma hora para outra, algo parece ter mudado: Essa coisa me faz ficar envergonhado e sem-graça facilmente quando perto dela, sem poder olhá-la nos olhos ainda mais quando sorria daquele jeito lindo que só ela consegue...

A conheço desde meus sete anos. Está tão entrosada em minha vida que nem consigo mais imaginar-me sem ela. Contudo, não me parece mais somente amizade. Porque, bem... Dias atrás eu não reparava tanto nela... E quando a olhava, não me parecia tão... Perfeita.

Luca se viu relendo, mais uma vez, trechos de seu antigo bloco de notas. A época que escrevia esse tipo de coisa era uma leve lembrança, enevoada e distante. Não fazia tanto tempo que escrevera aquelas sentenças cheias de sentimento em aulas aleatórias, um ano antes de entrar no ensino médio mas, depois de três anos tentando reprimir os seus sentimentos em relação a ela, era impossível lembrar claramente de tudo que tentara esconder de si mesmo.

Mas agora estava convicto do que sentia: A amava. Tanto que quase não podia suportar. Mas não sabia como ela reagiria se soubesse, então nunca contara. Era algo tão clichê se apaixonar pela melhor amiga! Mas algo tão inevitável quando se tratava de Kimiko.

Ele se jogou na cama de costas, fechando o bloco de notas e suspirando. Não sabia quanto tempo mais aguentaria aquilo. Fechou os olhos, sentindo o formigamento no peito que já conhecia, deixando o caderno cair de sua mão e cair no chão. Cobriu seus olhos com o antebraço, pensando.

– Não... Chegou a hora. - Ele sussurrou para si mesmo. - Agora. Vou até lá, falo e saio. Preciso falar!

Luca se levantou da cama rapidamente, pondo os sapatos e deixando o quarto em passos largos. Cruzou o corredor do segundo andar num jato, chamando a atenção dos olhos curiosos de Lia, sua irmãzinha que brincava em seu quarto todo rosa. O garoto desceu as escadas e saiu da casa, batendo a porta da frente com mais força que esperava.

Em vez de sair do jardim pelo portão, se dirigiu até o muro baixo e pulou-o, entrando no jardim vizinho ao seu. Se dirigiu até a porta da frente e virou a maçaneta, posteriormente abrindo-a e entrando. Passou a cruzar o corredor de entrada da casa dos Murakami sem prestar muita atenção no caminho e assim acabou esbarrando com alguém, tão avoado quanto ele.

– Ai! Olha por onde você anda, Hit-! - A ruiva baixinha gritou irritada e então percebeu que não era o irmão ao ver seus sapatos. Ergueu o rosto para ver quem era e pareceu surpresa. - Luca?!

– Kimi?

– Caramba, não e-entre na ca-casa das pessoas de-desse j-jeito!!

– Calma. - Respondeu com uma risadinha. - Se não querem que alguém entre, façam o favor de trancar a porta!

– Eu ia a-ago-ora mes-mesmo na sua casa - Ela disse ansiosa, ignorando a fala dele. - pois...

– Tenho algo importante a falar. - Ambos disseram ao mesmo tempo. Se entreolharam, surpresos. - Você primeiro. - Falaram novamente juntos.

– Que coisa bizarra está acontecendo aí?

Os dois adolescentes desviaram os olhos para Hitoshi, o garoto parado na frente da porta da cozinha. Seus cabelos enferrujados e curtos estavam despenteados, os olhos dourados levemente puxados emoldurados pelo rosto fino e pálido, premiados com molduras arroxeadas provindas das noites mal dormidas. Apesar da magreza e olheiras, parecia muito disposto - como sempre. Ainda mais enquanto segurava um pote de sorvete com uma colher entre os dentes.

Kimiko mordeu seu lábio inferior enquanto colocava uma mecha dos lindos cabelos ruivos para trás da orelha, o rosto levemente virado para o irmão. Luca pigarreou baixo, tentando se manter mais calmo.

– Eu... Fa-ala vo-o-ocê prime-eiro. - Ela falou, virando o rosto e mirando os olhos escuros no rosto do garoto.

Luca olhou-a e em seguida mirou o mais velho que permanecia ali parado, inegavelmente curioso. Ele gostava de Hitoshi, mas não era a hora certa dele estar ali.

– Não na frente do Hito. Sem ofensa, cara. É meio que particular...

– Sem problema. - Ele respondeu, se virando. - Estou subindo. Tenham juízo.

O garoto sumiu escada acima, deixando-os sozinhos. Os dois se encararam num silêncio estranho, paralisados. Não sabendo como iniciar uma conversa e sendo analisados calorosamente, foram corando lentamente.

– E-então, eu...

– Vamos falar juntos ok? - Luca disse, esperançoso. - No três.

"Talvez ela também me ame!", pensou consigo mesmo. "Explica o porquê de ela estar gaguejando".

– 1. 2. 3. Eu te--

– Eu gosto de meninas. - Ela quase gritou, proferindo mais rápido e o calando.

Luca a encarou espantado, os olhos arregalados. A garota avaliou-o e então desviou a cara, o rosto ainda mais vermelho dado a vergonha que sentia. Enquanto ele estava parado sem reação, ela segurou a barra da saia e a apertou entre os dedos fortemente.

– Você... Gostava de meninos... Até semana passada. - Disse ele pausadamente, tentando processar a informação.

– É-é estra-anho, eu... Eu come-ecei a ver as coisas de f-forma diferente de uns tem-tempos pra cá. A-acho que não é algo para e-escolher...

– Como...?

– É... Eu... - A voz ia baixando gradativamente e o rosto também. - Sou uma f-fujoshi.

– Y-Y-Yaoi? Desde quando?!

– Algumas se-emanas. O Hi-Hitoshi me mostrou. Eu... - Ela explicou, apertando ainda mais a barra da saia entre os dedos. - ...A-acho que eles não pre-ecisam de nenhu-nhuma me-enina.

Estava boquiaberto. Era isso que o Yaoi podia fazer com uma menina? Não era possível! Não, a garota que ele gostava... Gostando de meninas... Por causa de um... Anime? Aquilo era tão irreal, tão horrível que ele queria fugir. Apenas isso.

– Eu... Vou embora.

– Lu-Luca! - Gritou entre soluços altos, recém conquistados de um choro que mal começara. Ele parou na porta e se virou para a garota, vendo seus olhos verdes escuros jorrarem lágrimas. - Vo-você... Nós va-vamos continuar amigos, não vamos?

– Va-vamos. - Ele respondeu, sentindo os olhos úmidos. Queria ampará-la mas naquele momento ele também precisava disto. Só pode dar-lhe as costas novamente sem mais nenhuma palavra.

Ele saiu da casa, fechando a porta e correndo logo depois para sua própria casa, tentando reprimir as lágrimas enquanto não estivesse sozinho. Não queria que ninguém o visse daquela forma. Passou novamente pelo corredor do segundo andar e pelo quarto da irmã que continuava com a porta entreaberta. O vendo, ela logo desconfiou que algo estava muito errado e o seguiu até seu quarto.

Luca tinha se trancado no banheiro e ela pode avaliar com calma seu quarto, um cômodo surpreendentemente arrumado para o de um adolescente comum: Os mangás estavam todos arrumados na prateleira, o armário com a porta de correr aberta mostrava a perfeição das roupas - todas dobradas e passadas - e até mesmo a escrivaninha com pilhas de papéis todos empilhados em ordem de cor e importância.

Dada a arrumação, imediatamente um bloco de notas jogado no chão ao lado da cama lhe chamou a atenção. Se aproximou do mesmo e o pegou nas mãos, folheando. Leu devagar algumas partes, isso por não saber ainda ler rapidamente com seus seis anos. Mas o pouco que processou, lhe encheu de certezas quanto ao irmão mais velho.

No banho, Luca mal se lavou. Seu principal objetivo era chorar, e o fez, encostando a testa no azulejo frio enquanto fazia o possível e impossível para não soluçar mais alto que o barulho do chuveiro. Sentia que o coração estava completamente destroçado em seu peito, desmaterializando. E o motivo de todo aquele sofrimento era tão idiota... Saiu depois de meia-hora, vestido com a camisa e uma samba-canção com desenhos do capacete que Dart Vader usava. Ao transpassar a porta, viu a irmã sentada com as pernas cruzadas em sua cama. Se assustou de imediato.

– O QUÊ ESTÁ FAZENDO AQUI?

– Vim te ajudar e é assim que você me recompensa? Que consideração...!

– Ajudar? Não há nada para você me ajudar!

Nesse momento ele notou no colo dela o seu bloco de notas e então, horrorizado, olhou dele para ela e vice-versa, sem palavras. Ela não podia... Ter lido aquilo. Era muito pessoal e sua irmãzinha acabara de ler. Martirizou-se mentalmente por ter deixado-o no chão.

– Você estava chorando ali dentro. - Ela constatou em tom frio, de repente, acordando-o de seus pensamentos. - O quê houve na casa da Kimi?

Ele pensou em desviar o assunto, deixar para lá mas, vendo o brilho nos olhos de Lia que dizia claramente para ele não ousar mentir ou enrolar, percebeu que nem queria. Precisava desabafar!

– Fui lá me declarar pra ela... E ela... Disse que gosta de meninas. - Respondeu com um tom derrotado. - Praticamente declarou que mudou de orientação sexual por causa de Yaoi.

– Aquele anime de romance entre homens?

– Sim.

– Ela não mudou de orientação. Ela acha que mudou. - A menina falou, definitiva. - Recomponha-se! Erga esses ombros e olhe direito para frente! Nada está perdido!

– Você é mais adulta que eu. - Ele reclamou, mesmo assim arrumando a postura. - Por que você tem tanta certeza que ela acha que mudou?

– Porque ela não deixou de gostar de meninos. Kimi apenas trancou isso no coração dela pois acha que não é necessária para estes, que eles estão melhor com outros garotos. Então, pra ela, será melhor com meninas.

– Isso por...?

– Seja menos burro e acompanhe meu raciocínio! - Ela disse uns tons mais alto. - Ela acha que todos os homens ficarão melhor com outros homens! Não deixou de gostar deles e nem diminuiu suas chances com ela. Seja corajoso e a faça ver isso! - Ordenou, se levantando e dando um tapinha amigável no seu ombro, sem jeito por causa da altura. - Vai demorar um pouco mas... Ela vai ver o quanto o quê ela acha ser certo está errado.

– LIA, LUCA, O JANTAR ESTÁ SERVIDO! - Gritou a governanta do andar de baixo.

– Obrigado. - Ele disse, enquanto a menina corria para a porta.

Ela, ainda segurando a maçaneta, se virou para o garoto e sorriu.

– Estou aqui para o que der e vier. Não esqueça.

A esperança que havia se apagado no peito de Luca se acendeu fortemente com as palavras da irmãzinha. Ainda havia chance de conseguir conquistar sua melhor amiga e único amor. E nada nunca o deixou tão feliz em toda a sua vida.