Laranjas Geladas escrita por Aphrodite Laclair


Capítulo 1
laranjas geladas, vinho tinto e neve.


Notas iniciais do capítulo

eu adoro laranjas geladas.



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Laranjas Geladas

façam completo silêncio,

paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

carlos drummond de andrade

A primeira vez que você a viu, ela tinha um sorriso apavorado nos lábios. Estava cercada por muitas pessoas — eram todos alunos de Artes Plásticas, você calculou, pelas roupas cheias de respingos de tinta — mas mesmo assim ela parecia terrivelmente solitária, torcendo as mãos de forma nervosa e murmurando para si mesma coisas que só ela tinha conhecimento.

Provavelmente muitos a achavam louca, tola, estranha, mas você a achou linda, especial, doce. Tinha alguma coisa nela — alguma coisa na forma como parecia alheia a tudo, como se vivesse em outro mundo — que fazia com que você quisesse se aproximar. Que fazia com que você quisesse desesperadamente descobrir os segredos que ela guardava, o que só ela sabia, o que ela realmente era.

Você queria penetrar aquela pele pálida e cheia de sardas e queria ver seu coração.

X

— Qual o nome daquela garota? — você perguntou no dia seguinte, num café universitário que todos frequentavam, para uma colega do curso de Direito que estava sentada ao seu lado e da qual você se lembrava apenas vagamente do nome (seria alguma coisa com m?).

— A ruiva?

— É.

— O nome dela é Sansa. Sansa Stark. Ela é aluna de Artes Plásticas e gosta de café quente demais. — você a olhou, interrogativa. —Uma vez eu estava numa mesa perto da dela quando a garçonete chegou com o pedido e comentou sobre isso.

— Eu não gosto de café.

— Sim. Nem eu.

X

Você repetiu a pergunta para mais sete pessoas, todas de cursos diferentes, e a resposta era quase sempre a mesma, com pequenas variações. Sansa é o nome dela. Não gosta de falar, é cheia de uma polidez estranha, se esconde atrás da educação como um coelho se esconde na sua toca e é a aluna favorita de oito entre dez professores do curso. É inteligente, bonita e discreta, mas as pessoas preferem evitá-la por considerar sua companhia de certa forma meio perturbadora. É mais fácil encontrá-la na biblioteca. Ela tem muitos irmãos.

Ah! E ela gosta de café forte demais.

X

Um dia você foi visitar Alya no pavilhão três da universidade — arte, música, literatura e filosofia — quando a viu de relance e decidiu, num átimo de instante, segui-la. Você se sentia muito boba e infantil fazendo isso, mas mesmo assim seguiu em frente, e pensou que tudo quase valia a pena quando a viu beijar uma garota — baixinha, de cabelos castanhos e repicados — de forma casual.

Porque, afinal, era muito mais simples se aproximar dela de forma totalmente não fraternal se ela não for hétero.

Você se sentiu muitíssimo mais disposta a encontrar Alya depois de tudo aquilo.

X

O nome dela é Sansa e ela tem uma namorada chamada Marie, Alya te disse uma manhã, quando você a interrogou sobre a garota ruiva e cheia de sardas, mas todo mundo sabe que elas vêm e voltam.

X

Uma vez seu irmão Loras te disse que você nunca dava um ponto sem nó. Você preferia se achar apenas cuidadosa — a palavra manipulativa era forte demais — mas ninguém poderia dizer que você não sabia o que queria. Muito menos aquela tal de Marie.

O céu estava cheio de nuvens e caia uma fina garoa quando você falou com ela — a mulher de cabelos cor de morango e pele de marfim manchado —, e foi como encerrar um ciclo. Ela tinha a voz como laranja gelada — você sempre adorou laranjas geladas — e uns olhos brilhantes e azuis que reluziam e encantavam cada vez que abriam e fechavam.

Meu nome é Sansa, ela disse, e você quase quis contá-la que já sabia — algo na maneira com que ela se movia te fazia ter vontade de contar tudo sobre tudo —, mas você só sorriu e respondeu e o meu é Margaery.

Foi um dia agradável, aquele. Você ficou sabendo que ela gostava de dias chuvosos e que gostava de literatura inglesa — a bolsa dela estava aberta e tinha um gasto exemplar de Persuasão —, mas não tanto quanto de literatura russa — se possível, o volume de Crime e Castigo estava ainda mais surrado —, e que ela realmente gostava de café mais quente do que seria saudável, adoçado com tantos cubos de açúcar que você se sentiu tentada a perguntar-lhe se ela não tinha medo de ter diabetes.

E, aliás, ela amava rosas amarelas com pétalas vermelhas.

X

Os Stark, ela disse, uma tarde, os Stark são pessoas tão geladas e orgulhosas como nossas terras pra lá do Alasca. Você quis perguntar-lhe porque ela dizia os Stark quando ela própria era uma, mas tinha experiência o suficiente para saber que as pessoas não gostavam quando invadiam seus problemas familiares, então se manteve silenciosa, com um sorriso compreensivo no rosto. Você se sentia compreensiva naquele dia, realmente. Você se sentia compreensiva toda vez que avistava os cabelos vermelhos de Sansa.

X

Houve uma noite — uma noite escura, sem estrelas e sem lua — que você e Sansa estavam jogadas na sua cama de solteira no seu apartamento alugado onde morava sozinha, e ela entrelaçou as mãos de vocês duas, sorridente, e disse eu gosto de você, Margaery, e mesmo que você tenha respondido um amável eu gosto de você também, você queria beijá-la. E quando ela dormiu, a saia deixando as coxas pálidas a mostra e os cabelos que pareciam ensanguentados tomando conta de tudo, a vontade só aumentou.

Mas você apertou seus dedos em volta dos dela e adormeceu.

X

Você ia encontrá-la todos os dias, sem falta, no portão leste do pavilhão três da universidade. Ela aparecia, as bochechas vermelhas de frio, enfiada num suéter do século retrasado e em jeans apertados, com um sorriso doce e um aceno tímido. Você a adorava desesperadamente. A pele dela era macia e você se perguntava se a boca dela também tinha gosto de laranjas deixadas na geladeira por três dias, aquelas que você esquece que existe e sente vontade de chorar de felicidade quando as encontra, mas não tinha coragem de dar um passo em falso. Mesmo quando ela entrelaçava as suas mãos juntas e encostava a cabeça no seu ombro, enquanto tagarelava sobre o sorvete de chocolate que vocês iriam tomar — mesmo que na verdade você acabasse pedindo de morango e ela, de uva — você tentava não dar muita importância ao fato.

(tentava, mas não conseguia)

X

Terminei com Marie, ela disse, numa manhã clara de março, ou ela terminou comigo, não sei. Só sei que acabou. E você queria rir, mas fez uma expressão compreensiva — você se sentia compreensiva, a manhã era bonita e Sansa era ainda mais — e murmurou um calmo eu sinto muito. Mas ela respondeu eu não.

X

Sansa sempre achou que o mundo era uma sucessão de motivos para sorrir. Ela tentava achar o lado bom de tudo, mesmo quando lhe parecia que nada mais poderia dar errado, que sua cota já havia dado. Ela estava feliz porque não estava mais nas terras de Winterfell, nos confins do Alasca, que ali na Califórnia era mais quente e tinha mais risos, porque os irmãos mais velhos já estavam encaminhados e porque os mais novos eram boas crianças. Ela estava feliz porque se dava bem no curso de Artes Plásticas mesmo que seus pais tivessem sido ferrenhamente contra a coisa toda.

Mas, acima de tudo, ela estava feliz porque Margaery Tyrell tinha um sorriso lindo e cabelos castanhos encaracolados que ela adora tocar.

(e o mais importante, ela podia)

X

Era noite fechada, com uma linda lua crescente, quando você a beijou pela primeira vez. Os lábios dela eram tão macios quanto a pele dela — quem sabe mais — e tinha gosto de laranjas geladas. Laranjas geladas, vinho tinto e neve. Era tão bom e era tão doce que você se sentia viciada, então a beijou uma, duas, três, mil vezes, até que vocês começaram a rir, as mãos entrelaçadas e os olhos brilhantes.

Você é linda, você disse a ela naquela noite, mas ela se limitou a negar com a cabeça, deitada no sofá com os cabelos avermelhados parecendo uma auréola desgrenhada e dizer bem baixo, tão baixo que você quase não ouviu, mas você é mais.

X

Não, Sansa, agora você tinha vontade de dizer-lhe, ninguém nunca foi mais bonita que você, e ninguém nunca teve gosto de laranjas geladas como você. Ninguém nunca teve meu coração, também. Ele ainda está guardado numa caixa, e ele é todo seu.


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