Equinocial escrita por Babi Sorah


Capítulo 9
Normas de etiqueta; Termos de contrato




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*Capítulo 09*

Normas de etiqueta; Termos de contrato

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— Não é desdenhando do seu favor, mas... A tal 'rota mais discreta' precisava ser esse muquifo fedorento?

— Se tiver alguma ideia melhor, estou aberto a sugestões.

— Ótimo. Pois eu tenho uma: Que tal um lugar onde é possível respirar sem ter que engolir de brinde um quilo de poeira?

— Você só sabe reclamar...! Urgh... imbecil!... - Kaito disse, tentando conter uma crise de espirros.

Zero bem que gostaria de estar exagerando, mas era a mais pura verdade. Desde o momento em que atravessou aquela pesada, rústica e potencialmente suspeita porta, o cheiro de mofo ardia dolorosamente em seu nariz.

Ainda respirando entre tossidas, Kaito trancou a entrada por dentro, mergulhando todo o espaço numa escuridão densa e virou-se impaciente para a silhueta de Zero, que estava à seu lado.

— O que está esperando? Vá logo acender as luzes!

— Ora, vai você!

— Idiota! Eu não posso enxergar nesse breu. Você pode!

À contra gosto e resmungando, o rapaz caminhou pelo recinto a procura de interruptores. Odiava receber ordens de Kaito, mas ele estava sendo útil. E se fosse para obter o que queria, teria que incentivar Kaito a ser o mais 'benevolente' possível.

Escura e empoeirada, onde provavelmente nenhum faxineiro chegou perto há anos, a sala de paredes descascadas continha alguns armários de metal enferrujados e abandonados num canto, uma máquina de café quebrada e estantes vazias.

Instalados na parede mais bem conservada de todas, havia uma sequência de meia dúzia de monitores e uma bancada retangular, onde repousavam alguns computadores e outros eletrônicos velhos.

Zero presumiu, pela aparência de abandono do ambiente e o estado ultrapassado dos aparelhos, que aquele lugar provavelmente era o que restou de uma antiga sala de sistemas de video-monitoramento.

A questão é se aquilo serviria para o seja lá qual for plano de Kaito.

Passados alguns segundos de busca sem sucesso, ele encontrou numa das paredes algo que parecia ser um quadro de distribuição. Abriu-o, ajustou os disjuntores, alguns fios e então...

Zap!

Click!

De súbito, uma corrente elétrica percorreu-lhe o corpo e as luzes acenderam-se, seguidas por um barulho de bipes irritantes indicando que as várias máquinas e aparelhos também foram automaticamente acionados.

Yeah! Bom trabalho, cara! - Kaito comemorou no outro lado do cômodo.

Aturdido, Zero contemplou as próprias mãos, ainda formigando e regenerando-se das queimaduras.

Se “bom trabalho” incluía tostar os próprios dedos, então, sim, ele tinha feito um ótimo trabalho.

Enquanto isso, um ligeiro Kaito remexia e desembolava uma porção de cabos, conectando-os nos computadores e nas telas de vídeo, completamente alheio a fúria mortal presente no recinto.

— Ei, Zero! Até quando vai ficar aí parado feito um poste? Anda logo e me ajude a fazer essa coisa funcionar! Estamos sem tempo, lembra? E o que diabos houve com o seu cabelo?! - e virou-se para os computadores, sentando-se à bancada e digitando velozmente nos teclados.

Em sua mente, Zero calculou quantos segundos levaria para agarrar os cachos tortos daquela maldita cabeleira castanha - ainda enraizada no couro cabeludo do dono, por favor - arrastando-a até o painel elétrico onde socaria a cabeça de Kaito até que os choques a transformassem em carvão.

Demoraria uns dois, no máximo...

Mas, veja bem, ele é um bom rapaz que sabe controlar perfeitamente seu temperamento – na maioria das vezes, é claro. E ao invés disso, apenas caminhou até a bancada, sentou-se ao lado de Kaito e disse sorrindo uma simples frase:

— Da próxima vez, você acende as luzes.

Ah, está bem. Agora, fique quieto! A conexão vai começar em três, dois, um...

A imagem nas telas tornou-se nítida.

:.

“ … é necessário. Compreendente? Você estava sozinha na periferia do distrito, sem nenhum documento de identificação e em pleno toque de recolher....”

Zero reconheceu uma das salas particulares da ala médica, semelhante as que eram usadas para agentes feridos relatarem oralmente as missões, porem esta parecia um tanto mais modesta que as outras.

A sala não possuía janelas e era estreita. As paredes eram propositalmente pintadas em tons de cor cinza e a única fonte de luz do cômodo era uma lâmpada de luz fria.

Uma mesa retangular de tampo escuro fora colocada no centro, com três cadeiras de plástico posicionadas na lateral. Nelas estavam sentados Margoth Persson, a severa médica veterana e gestora da zona hospitalar do QG; e o investigador assistente.

A terceira cadeira estava vaga. Seu suposto ocupante; um homem alto, de pele escura e cabelos muito curtos, estava de pé e caminhava a passos lentos ao redor da mesa enquanto conduzia o interrogatório. Ele era um dos agentes da "C-P-I".

E então os olhos de Zero finalmente pousaram sobre a figura cabisbaixa da menina na extremidade da mesa, assentada em uma cadeira de rodas. E ele teve de cravar as unhas na bancada para não correr direto para aquele lugar.

Assim como se recordava, sua forma era esbelta, mas não exatamente graciosa. Sua pele, antes de aspecto doentio e suja de sangue, agora exibia um tom cor de oliva levemente bronzeado.

Em vez das roupas rasgadas e puídas, ela vestia uma calça de moletom azul claro, uma camiseta branca com mangas curtas e seus pés foram calçados por um par de sapatilhas.

O braço direito dela fora enfaixado e parecia pendurado ao lado do corpo, enquanto o esquerdo estava imobilizado sob uma tipoia. Com exceção do ritmo da respiração em seu peito, ela permanecia silenciosa e imóvel, como se ignorasse ou não percebesse a presença das demais pessoas na sala ou as perguntas insistentes do investigador.

Com certa frustração, Zero percebeu que não seria possível ver o rosto dela. Na cabeça da garota havia um curativo com ataduras. Ela ainda mantinha a postura inclinada, o que fazia seus cabelos castanhos e desalinhados caírem sobre o rosto e ombro encurvados, escondendo a maior parte de sua face e expressão.

Somado a isto, assistir tudo através das câmeras com a visão limitada que os monitores forneciam não ajudava muito.

Mas, apesar de tudo, Zero foi obrigado a dar crédito as habilidades de cura dos Alquimistas. Ainda era possível notar que quase todos os ferimentos no corpo dela desapareceram. Ninguém diria que aquela garota fora quase morta por monstros bebedores de sangue.

No máximo, pensariam que ela fora agredida por alguém ou sofreu outro acidente qualquer.

O mais perturbador naquilo tudo era o desinteresse com que estavam desenvolvendo o interrogatório. Toda aquela cena na sala, desde as perguntas clichês do investigador e o esforço superficial que ele dedicava eram ridículos. Era como se estivesse interrogando uma civil infratora qualquer e não uma sobrevivente que se envolveu de modo suspeito numa missão de extermínio. Aliás, era como se aquilo realmente fosse o interrogatório de um civil comum.

E com um misto de indignação e assombro, Zero percebeu que era realmente isso.

Pouco importava se a garota dissesse mil palavras ou nenhuma.

Observando a atual aparência dela, as palavras de Kaito fizeram todo o sentido: “Você entenderá melhor se conferir os laudos por si mesmo “.

E ele finalmente entendeu.

Literalmente, haveriam duas versões do laudo médico: A primeira, feita pelos médicos de confiança de Yagari; e a segunda, para ocultar a intervenção dos Alquimistas.

Um mal pressentimento lhe dizia que na segunda versão, o ataque e os detalhes originais do incidente não seriam sequer citados. Pois estas, no fim das contas, seriam as verdadeiras “medidas para evitar a divulgação do incidente". Seria como se nada de anormal tivesse acontecido.

Tudo se resumiria a um deslize infeliz cometido durante uma missão por Zero Kiryuu, o Hunter mais problemático de todos.

E se Yagari não se importou de estar ali pessoalmente – nesse momento, ele também deveria estar observando tudo por trás das câmeras de vigilância, cuja a fonte provavelmente seja a conexão que Kaito está hackeando– aquele interrogatório acabaria sendo apenas mais uma formalidade a ser posta no papel.

Zero quase podia enxergar o plano de Yagari por traz daquilo. Tudo o que o mestre queria era ganhar tempo para que a garota se recuperasse completamente. E assim que os traços de mágica Ahlcker¹ desaparecessem de seu corpo, bastava submetê-la a uma seção de leitura mental e vasculhar as lembranças dela.

Se ele tivesse que adivinhar, diria que quando conseguissem a informação, logo manipulariam sua memória e contariam para ela uma história maluca sobre prisioneiros fugitivos ou algum maníaco que escapou do sanatório para justificar o ataque e tudo o que ela presenciou.

E caso encerrado.

Ridículo, corrupto e injusto. Mas até ele tinha de admitir que era uma forma eficiente de evitar um possível escândalo com os opositores da Divisão Primária.

E no fim, ninguém daria ouvidos a ele. Ninguém permitiria que ele investigasse a fundo o que provavelmente fora o episódio mais absurdo nos últimos meses. E se as suspeitas dele forem minimamente certas... Então essa seria a pista pela qual Zero esperara dois longos anos. Talvez, a primeira e única chance de Zero cumprir sua vingança. E essa oportunidade estava deslizando por seus dedos.

O jovem se deixou afundar na cadeira, sentindo aquela maldita dor retornar à suas têmporas. Perdera todo o ânimo de estar ali. Agora, só queria sair pela porta, voltar para o alojamento, engolir o resto daquele frasco de analgésicos e jogar-se na cama para dormir um longo e pesado sono.

Tsc! Pelo jeito, isso vai demorar mais do que eu pensava... Deu tempo até de te trazer para cá. Que tédio, já faz mais de duas horas! - Kaito resmungava, jogando os pés por cima da bancada e acomodando-se na cadeira.

Zero virou-se para ele.

— Então você só foi me chamar porque também te deixaram de fora, não é?

— Há! Óbvio. Se nos acharem, digo que flagrei você. E como o bom e exemplar agente que sou, alegarei que eu estava apenas tentando impedi-lo.

Em resposta, Zero apenas deu de ombros sem nenhum traço de rancor.

Então esse era o motivo para toda aquela boa ação vinda de Kaito. Ele já imaginava algo semelhante e de certa maneira era até melhor assim. Não sentiria mais remorso por desejar espancá-lo ou obrigado a dever nada ao colega, embora soubesse que mais tarde seria cobrado por aquele favor.

Ele deixou esse assunto de lado e voltou a observar os monitores de vídeo, onde Jones - este era o nome do interrogador, de acordo com Kaito – prosseguia em suas tentativas de persuasão e agora tentava um discurso mais gentil, criando um enredo mais ameno para conseguir a confiança da garota.

O homem moveu a cadeira desocupada para perto dela, sentou-se e buscou olhar para seu rosto. Juntando toda a gentileza que podia e abrandando a voz, o interrogador fez outra tentativa:

(...)Eu imagino que deva ter seus motivos. Você deve estar assustada e parece ter passado por muitos infortúnios e momentos de necessidade. Mas, é exatamente por isso que precisa nos contar o que aconteceu naquela noite, pois não poderemos ajudá-la se não cooperar conosco...”

E mais uma vez, a menina não emitiu palavra alguma. Seu silêncio inabalável chegava a ser ensurdecedor.

Antes Zero pensou que isso fosse devido as circunstâncias ou que talvez a garota estivesse sob algum estado de torpor, mas agora se perguntava que tipo de coisas realmente estariam passando pela cabeça dela. Porém, ele sabia que medo estava longe de ser uma das opções.

Pois 'assustada', como dissera o investigador Jones, era tudo que aquela garota não aparentava estar.

Enquanto a mente de Zero divagava, em algum momento o investigador desistiu da estratégia de ser gentil, levantou-se e parecia ter resolvido que era hora de pressioná-la a revelar algo.

... Olhe, se está com medo de prendermos você, não se preocupe, este não é nosso trabalho e sim do Ministério, que é para onde você vai se continuar calada!

Encarando-a, Jones bateu uma das mãos sobre a mesa, sobressaltando o investigador assistente e ignorando um olhar de advertência vindo de Margoth - cujo trabalho naquela sala aparentemente era assegurar o bem estar físico de sua paciente.

... E acredite, eles não serão tão amigáveis e pacientes quanto eu. Por isso, é melhor dizer logo qual é o seu nome e o que estava fazendo naquele lugar!”

(...)

... Vamos, abra essa boca!”

Me responda!”

Impaciente, Zero ergueu-se da cadeira, decidido a ir embora. Não havia propósito em continuar assistindo aquilo e sua paciência era preciosa demais para ser desperdiçada, pois precisaria muito dela para ir atrás da única alternativa que lhe restou: Yagari.

Estou farto. Nada de útil vai sair daqui.

— Ah, não! Deu trabalho achar esse lugar! E eu sei que está chato, mas pelo menos fique até o fim... - Kaito disse sem muito ânimo enquanto se espreguiçava.

— É melhor você ir também, ou vai acabar dormindo nessa sujeira e ficando doente.

— Como se você se importasse com a minha saúde.

— E não me importo. Só não quero depois ter que andar com um moribundo.

Kaito resmungou alguma coisa como resposta e deu as costas a Zero, voltando sua atenção novamente para as telas de vídeo.

Deixando-o sozinho, Kiryu dirigiu-se à porta e já estava atravessando-a quando inesperadamente pressentiu a aproximação de uma aura. Uma presença única e indiscutivelmente familiar.

— Ei, espere! - Kaito alertou, endireitando-se na cadeira e aumentando o volume do som no computador.

Zero aproximou-se da bancada, direcionando seus olhos para os monitores e focando toda a sua atenção naquelas imagens.

O investigador havia cessado suas perguntas e agora conversava de forma dura com alguém pelo celular. Sua expressão impassível dera lugar a irritação e sua voz praticamente subia uma oitava em cada frase.

E Zero podia sentir que a cada frase que Jones dizia, aquela presença familiar também se aproximava.

Eu já falei que não!”

E ela estava chegando mais perto...

Seja lá quem for, impeça-os!”

Ainda mais perto...

Não me interessa quem é! Mande os guardas afastarem qualquer um que atravessar o corredor! ”

Só mais um pouco...

É uma ordem! Eu repito, NINGUÉM tem permissão para entrar!”

E por fim, a porta abriu-se.

Com licença, mas o senhor poderia me fazer uma exceção, agente Jones?

Um sorriso de expectativa surgiu nos lábios de Kaito.

— Fala sério... É ele?

Zero acenou afirmativamente em resposta.

:.

.:

Em sua carreira de caçador ele já vira inúmeros cadáveres, a maioria morbidamente pálidos e sem nenhuma gota de sangue. Por outro lado, também encontrara muitos vampiros com peles igualmente desprovidas de cor.

Entretanto, aquela foi a primeira vez que Zero viu alguém reunir essas características tão rápido ainda em vida. No momento em que Jones virou-se para a porta e reconheceu o indivíduo que acabara de lhe falar, percebendo que estava diante do primeiro comandante da Divisão Primária e também líder da Associação dos Caçadores; seu rosto tornou-se tão lívido quanto o um de morto-vivo. Talvez até pior.

Pr-Pre... Presidente?!

Como se não acreditasse em seus em próprios olhos, Jones olhou boquiaberto para a figura alta e elegante de Kaien Cross.

Oh! Cé-céus! Vossa Excelência, por favor, me perdoe! Eu não fazia ideia de que se tratava do Senhor!” - ele praticamente implorava, curvando-se numa reverência exagerada e quase se ajoelhando no chão.

Vendo o estado deprimente de seu superior, o investigador-assistente levantou-se, tentando ajudá-lo.

Excelência..." Ele tomou fôlego. "Nós estávamos no meio de um interrogatório e...

Estou ciente da situação” - Kaien interrompeu com a voz firme e autoritária – “Não graças a vocês ou a seus homens, devo acrescentar.

O assistente curvou-se, e percebendo em boa hora que o mais sensato a se fazer era voltar para seu lugar e manter-se em silêncio, aproveitou para arrastar Jones consigo e o que sobrou de sua dignidade.

Kaien caminhou devagar até a mesa, mantendo uma distância respeitosa entre ele e os demais presentes. Ele vestia roupas escuras e um longo casaco de couro marrom que cobria-lhe o corpo até a altura dos joelhos. Seus cabelos loiros emolduravam o rosto de aparência jovem e elegante, descendo em longas mechas lisas sobre suas costas.

Embora a expressão dele fosse séria e calculista, Zero ainda podia identificar alguns sinais de cansaço em sua face, indicando que ele há pouco retornara da longa viagem.

E seu humor não parecia ser dos melhores.

Olá, Diretora Persson” - ele acenou uma breve saudação para a médica, sendo retribuído de forma igualmente polida.

Os olhos afiados de Kaien percorreram cada um ali presente, pairando na menina encolhida no canto da mesa. Ele sustentou o olhar por vários segundos, analisando-a minuciosamente da cabeça aos pés.

Por trás dos monitores, Zero assistia a tudo sem pestanejar. Uma inquietação dentro dele lhe dizia que havia algo acontecendo ali. Algo importante, mas não conseguia definir o que era. Como se alguma coisa grande estivesse acontecendo bem na sua frente e ele não conseguia enxergar ou compreender seu significado.

A expressão de Kaien lentamente suavizou e ele dirigiu-se a ela.

Boa noite, minha jovem” - Seu tom de voz era suave e cortês. “Minhas sinceras desculpas pelo comportamento indelicado destes senhores.”

Permita-me informá-la que a senhorita está na ala hospitalar do Instituto Ironheart. A propósito, meu nome é Kaien Cross e sou o presidente desta Instituição.”

Devagar, a garota inclinou o rosto e endireitou levemente a postura, parecendo incerta quanto a mudança brusca de tratamento que recebera. Ela permaneceu em silêncio, mas agora parecia prestar a atenção em tudo que Kaien dizia.

Compreendo que a senhorita não queira dialogar com estranhos, e este ambiente também não é o mais adequado para uma conversa. Neste caso, eu lhe convido a vir até meu escritório para que possamos conversar e esclarecer qualquer possível mal entendido. E se a ideia lhe parecer desconfortável ...”

Kaien acenou para a porta, sinalizando para alguém que aguardava lá fora, pedindo que entrasse. Inesperadamente, essa pessoa era ninguém menos que Karen Nyckell, trajando o usual jaleco por cima de roupas igualmente brancas em contraste com os cabelos ruivos.

Imagino que ainda se lembre da Dra. Nyckell. Ela auxiliou a diretora Persson durante seu tratamento e esteve acompanhando de perto sua recuperação. Tenho certeza que as duas ficariam felizes em acompanhá-la, se isto a fizer se sentir mais segura.”

E contrariando todas as expectativas de Zero, ela inclinou-se para Kaien e balançou positivamente a cabeça.

O presidente Cross esboçou um leve sorriso em agradecimento e acenou para que Margoth a ajudasse a se deslocar.

Se não for incomodo, gostaria de fazer apenas mais um pedido”

A menina permaneceu silenciosa, mas também não recusou a oferta.

A jovem dama poderia, por favor, me dizer como se chama?”

Seguiu-se uma longa e tensa pausa. Após um minuto que pareceu durar por toda a eternidade, Kaien virou-se para a saída, conformado em não receber a resposta.

E de repente, ele estacou no meio do caminho. Uma voz fraca e quase inaudível havia quebrado o silêncio.

Desculpe, a senhorita disse algo?”

Az...

Eu … me chamo... Az.”

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Na bancada, Kaito acompanhava as imagens nos monitores com ânimo e curiosidade renovados pela mudança imprevista dos acontecimentos. Afinal, a ideia de que seu chefe excêntrico fosse aparecer naquele instante para resolver em poucos minutos um interrogatório que se estendeu por horas, era no mínimo inusitada.

E lá estava o próprio Kaien em pessoa, fazendo tudo aquilo ao vivo e a cores, e ainda conversando com a suposta vítima/suspeita como se ela fosse algum convidado de honra.

“... É um grande prazer conhecê-la”

Bem, se estiver pronta, podemos ir?”

Sem nenhum sinal de objeção da parte dela, Margoth aprontou-se para a cadeira de rodas onde a garota – agora autodenominada como 'Az' – estava sentada, deslocando-a para a saída. Cross seguiu em frente junto a Karen e ambos também desapareceram pela porta, deixando para trás dois investigadores apavorados, um Zero inexpressivo e um Kaito confuso.

Porém, a calmaria não durou: após poucos segundos que sucederam a retirada de Kaien e companhia, o infame celular do agente Jones tocou alto. A música eletrônica ecoou pela sala como uma marcha funerária e ele tomou fôlego, preparando-se para receber a pior das sentenças ao atender a chamada:

Comandante Yagari...?

Mesmo através do vídeo era possível ver que o pobre homem empalideceu instantaneamente, suas mãos trêmulas mau conseguindo segurar o aparelho. Kaito não pôde deixar de se sentir solidário com o sujeito. Até mesmo ele tremia nas bases quando tinha de encarar o Mestre.

Clandestinos... Onde, senhor?

De repente, Jones olhou diretamente para a câmera como se encarasse a dupla de infratores.

Afirmativo. Tomarei providências imediatas.

E no mesmo instante a conexão foi cortada, assim como as imagens em todos os monitores também foram desligadas.

— Está tudo bem! - Kaito garantiu, sentindo o olhar de Zero perfurar sua cabeça. — Podem ter descoberto, mas ninguém vai imaginar que fomos nós e muito menos que estamos operando daqui.

'… É aí?'

'Sim. Os técnicos confirmaram que o curto e a queda de energia têm origem neste local.'

Kaito ergueu-se e quase caiu da cadeira quando aquelas vozes vieram não dos monitores, mas da porta. A porta da sala fedorenta em que estavam.

— Mas isso não faz sentido! Só se algum idiota queimasse o ...

Zero se retraiu e o entendimento brilhou nos olhos do outro.

— Ai, não... O quê você fez!?

'Está trancada...'

'Positivo, homens.' 'Vamos arrombar!'

— Acho que acendi luzes demais...

— Você acha?! Mas que droga! Logo agora que eu tinha acabado de sair da detenção!

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O “erro técnico” de Zero afetou pelo menos três salas e um laboratório, além de enfurecer uma horda de pesquisadores que perderam dados não salvos durante a confusão.

E depois de vários esclarecimentos e desculpas mirabolantes, a dupla foi escoltada por guardas e ambos terminaram sentados no banco de couro estofado do corredor que leva à sala de Yagari, aguardando a volta do Mestre e suas respectivas advertências.

A espera era longa e a impaciência já começava a afligir os nervos de Kaito. O moreno olhava os arredores tentando se distrair observando todos os detalhes da decoração de estilo neogótico, desde os grandes arcos ogivais e nervuras que compunham a estrutura do teto; os lustres de prata e os minúsculos grãos de poeira que embaçavam seu brilho, e até a meia dúzia de guardas - que de tão concentrados e estáticos pareciam ser um estranho conjunto estátuas ornamentais, só que trajados de preto.

Quando o tédio aumentou, ele começou a bater o pé esquerdo tentando sem muito sucesso combinar o som das batidas com o ritmo de alguma musica conhecida, mas foi silenciado pelos olhares raivosos de Kiryuu e as sutis ameças de morte dos vigilantes.

Estressado e sem mais nada para fazer, ele resolveu imitar Zero: Ficou quieto e baixou a cabeça. Talvez assim pudesse entender o que seu colega via de tão interessante naquele chão.

Entretanto, nem os pequenos arranhões e sinais de desgaste do assoalho ou a imagem do próprio rosto – atraente e muito charmoso em sua opinião pessoal - espelhado na superfície polida do granito conseguiu entretê-lo. Vencido pelo cansaço, acabou cochilando com a cabeça apoiada nas mãos.

E foi ela e o ruído de seus sapatos de salto alto que o acordaram.

— Que atmosfera depressiva! Não me diga que finalmente foi condenado a morte, Takamiya?

Kaito xingou mentalmente. A presença dela era só o que faltava para arruinar sua noite.

— Desculpe, Nyckell. Você vai ter de esperar um pouco mais. Mas não se preocupe, caso aconteça, prometo que será a primeira a receber o convite do funeral.

— E me dar ao trabalho de sair de casa apenas para ver o seu cadáver? Não, obrigada.

— Mandarei mesmo assim, caso mude de ideia.

— É muita gentileza de sua parte, mas irei recusar.

— Bom, o convite continua de pé. Mudando de assunto, como foi o interrogatório? O Presidente conseguiu arrancar mais alguma coisa da garota?

Zero manteve-se quieto enquanto assistia a conversa dos dois. Não conhecia Karen Nyckell, mas a reconheceu pelo vídeo que assistiu do interrogatório.

Estava acostumado a pessoas falando dele pelas costas, a ser tratado com repulsa e desaprovação, comentários maldosos e fofocas exageradas, mas as pessoas raramente conseguiam ignorá-lo de modo tão explícito.

Por isso, ele tinha certeza de que aquela mulher estava ignorando-o de propósito, falando com Kaito sem olhar em sua direção nenhuma vez sequer, como se enxergasse apenas Kaito sentado sozinho ali no banco.

Tirando essa parte incômoda, era até engraçado observá-la trocar alfinetadas com Kaito, quem parecia se empenhar para responder no mesmo tom de educação e sarcasmo.

— Não tenho detalhes; dispensaram Margoth e a mim. Ele está conversando a sós com ela.

— Compreendo. Poderia então nos dizer a quê devemos a graça de sua presença?- Kaito disse dando ênfase no plural, obrigando-a a incluir Zero na conversa.

Karen virou levemente o rosto, fingindo ter acabado de perceber a presença de Zero ali. Seus olhos esverdeados refletiram a mais pura indiferença, como se ponderasse consigo mesma se valia a pena dirigir-lhe a palavra.

— Cross me pediu para entregar um breve recado. Ele quer se encontrar com cada um de vocês amanhã cedo no escritório da Presidência. Ah, e separados.

Em seguida, a pesquisadora girou nos calcanhares indo embora da mesma forma abrupta que chegou, a passos rápidos e audaciosos sem ao menos despedir-se ou olhar para trás.

Zero a observou desaparecer pelo corredor, esperando até que não fosse mais capaz de sentir a presença dela para finalmente falar com Kaito.

— Ela me olhou como se eu fosse uma pilha de lixo. É só impressão minha ou ela realmente não gostou de mim? - ironizou.

Kaito espreguiçou-se com um longo bocejo, endireitando as costas e sentindo as vértebras de sua coluna estalarem antes de responder em sua voz mais sonolenta:

— Veja bem... Se ainda não percebeu, ninguém aqui gosta de você. E quanto a bruxa da Nyckell, ela olha daquele jeito para todo mundo, então não se sinta especial por isso. Acredite em mim, aquela mulher é maluca!

Zero podia jurar que sentiu um pouco de rancor por baixo daquela frase.

Interessante...

Hum.... E porquê você parece conhecê-la tão bem, enquanto eu nunca a tinha visto antes? - ele disse, arqueando uma sobrancelha.

Kaito fez uma carranca. Se falasse sobre Karen, acabaria tendo que contar um pouco sobre si mesmo, e falar de seus antecedentes definitivamente não consta em sua lista de assuntos favoritos.

Mas, pelo menos era algum assunto e ele estava desesperado por qualquer coisa que diminuísse aquele tédio.

— Bem... se você quer tanto saber, Nyckell foi minha orientadora durante a temporada que passei na Suécia, e quando cursei dois períodos na Universidade de Uppsala². Ela foi transferida para o QG há um ano, eu acho, para dar suporte a Central. Basicamente, é isso.

— E eu pensei que você tinha comprado um daqueles diplomas pela internet... Acho que vou começar a dar um pouco mais de crédito nas suas aulas.

— Ao contrário de você, eu trabalho e tenho uma vida lá fora.

— Não exagere. - Zero disse de forma dura. Por algum motivo, ele encerrou a conversa e voltou a encarar o chão com uma cara ainda mais fechada.

Kaito resmungou inconformado. Uma das coisas que ele mais odiava era quando Zero o deixava falando sozinho. Ele vasculhou rapidamente a memória, procurou alguma maneira para evitar que sua árdua tentativa de diálogo virasse fumaça. E para sua surpresa, ele acabou dizendo a primeira coisa que saltou em sua mente.

— Sabe... as vezes não não consigo dizer se você tem sorte, ou apenas muito azar.

Ele imediatamente se arrependeu disso. Se havia algo sobre o qual Zero detestava comentar, eram as atuais condições de sua complicada vida pessoal. Kaito logo tentou contornar o que dissera antes que a conversa pisasse em algum campo minado.

O problema era que quando se tratava de Zero, qualquer palavra mal colocada poderia resultar numa perigosa armadilha.

— Quero dizer, se fosse qualquer outro Hunter no seu lugar, essa pessoa já teria sido expulsa há tempos. Claro, eu também nunca conheci um sujeito que atrai tanta confusão como você, mas de qualquer maneira é algo a ser considerado. - Ele explicou-se, fazendo sua voz soar propositalmente irônica e casual.

Ao perceber com alívio que conseguiu a atenção do colega sem causar nenhum grande estrago, ele prosseguiu. — E no fim das contas, o Presidente ainda é o seu pai. Então é óbvio que você vai se safar dessa! Já posso até imaginar qual será a punição.

Kaito fez aspas com os dedos no ar, imitando a voz severa de Yagari: — “Lave os banheiros e as salas de treinamento por um mês!” ou alguma outra coisa do tipo. E como você adora limpeza e tem a maior vocação para ser faxineiro, isso nem vai ser um castigo de verdade. Então, faça-me um favor e pare de fazer essa cara de peixe morto, você devia estar erguendo as mãos e agradecendo aos céus por ainda estar inteiro."

'Meu pai'...?

Zero deixou escapar uma risada seca, desprovida de humor. O som era arrepiante. Ele virou o rosto na direção de Kaito.

— É exatamente por isso que estou com um mau pressentimento. Não se esqueça de que aquele homem tem o péssimo hábito de brincar com fogo.

E infelizmente, desta vez seus instintos estavam corretos.


 

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A busca pelo imprevisto é a maior das ambições e também a grande renúncia para quem deseja construir o próprio futuro. Pois assim como render-se ao destino e sua trama de caminhos previamente traçados pode ser desolador, entregar-se a escuridão que permeia o incerto é igualmente um ato de desespero.

Rebeldia e submissão. Dois opostos presentes num único ser. Assim são os indivíduos que desafiam as grandes leis do mundo.

Mas se há algo que Kaien Cross aprendeu durante sua longa vida, é que o destino sempre reserva seus caprichos para aqueles que lutam contra seu poder ou preferem perseguir as próprias esperanças no acaso. E como recompensa, presenteia estes seres com os mais diversos cenários e surpresas.

Ele limpou os óculos com uma flanela enquanto refletia calmamente sobre tudo que acontecera durante as últimas horas, perguntando a si mesmo se aquela criança sentada à frente de sua mesa poderia ser uma personificação de tais “surpresas” ou uma simples consequência provinda delas. Talvez, a junção de ambos.

A convidada mantinha-se observando os arredores da ampla sala com uma curiosidade reprimida quase infantil, contrastando entre a postura firme, confiante e destemida de quem avalia o território de um possível inimigo.

Insatisfeita, ela foi a primeira a quebrar o silêncio.

― Aquelas mulheres já foram embora. E você ainda não me fez nenhuma pergunta.

Sem nenhum indício de pressa, o homem esfregou as lentes pela centésima vez tentando remover alguma mancha inexistente e guardou a flanela num dos bolsos de seu casaco. No mesmo ritmo calmo, recolocou os óculos e entrelaçou as mãos sobre a mesa.

― De fato, pensei em algumas, mas já é tarde e não desejo incomodá-la sendo mais um dos que exigiram-lhe respostas o dia todo. Deve estar saturada, imagino. Contudo, se eu as fizesse, há garantias de que você responderia com sinceridade, senhorita Az?

Ela hesitou por alguns segundos.

― Se for algo que eu possa dizer, sim.

― Ou seja, apenas aquilo que julgar ser necessário e conveniente. É um direito seu e não a condeno por isto. Quanto as demais perguntas, acredite, elas serão devidamente feitas. Porém, em outro momento e por uma outra pessoa que as apreciará muito mais do que eu.

Kaien esperou enquanto a garota absorvia tal afirmação, vendo seus olhos encherem-se de suspeitas.

― Então, por quê me trouxe aqui?

O presidente sorriu. Assim como ele previra, aquela jovem era objetiva e cautelosa.

Quando proferisse suas próximas palavras, não haveria volta. Agora que havia iniciado aquilo tudo, as consequências de sua decisão seriam inevitáveis. Mas Kaien não podia se dar ao luxo de perder tempo temendo o futuro. Não mais.

Determinado, levou uma das mãos até o lado interno da mesa e abriu a gaveta, retirando um objeto de vidro semelhante a uma arca em miniatura, e o posicionou com cuidado, a poucos centímetros da menina.

― Eu a trouxe para lhe propôr um acordo.

Por um longo momento, ela apenas olhou fixamente para a arca de vidro. Depois, cuidadosamente, como alguém que ousa tocar o mais frágil e delicado dos objetos, ela alisou a superfície fria da arca com as pontas dos dedos. Delicadamente, retirou a pequena tampa de cristal e observou com olhos ilegíveis o conteúdo da arca.

Em seguida, afastou de si a pequena caixa de cristal com o mais suave dos movimentos. Um suspiro leve e quase imperceptível escapou de seus lábios entreabertos.

— Senhor Cross. O que pretende me mostrando isto?

— Exatamente o que eu acabei de lhe dizer: um acordo. Eu quero que a senhorita faça algo por mim. E em troca, eu também a ajudarei com algo que estiver em meu alcance, é claro.

Ela encarou o homem à sua frente, olhando-o nos olhos sem o menor constrangimento. Não havia temor em sua face.

— O senhor tem alguma ideia de quem eu sou?

A pergunta soou como um teste. E Kaien já passara por testes o bastante para reconhecer quando era a hora de se deixar submeter a um. Ou devolvê-lo.

— A senhorita quer que eu tenha?

Kaien rebateu, sabendo no mesmo instante que havia sido aprovado no teste dela. E que ela também havia passado no dele.

A garota assentiu. De qualquer forma, sua decisão já havia sido feita.

— Certo. – ela sorriu levemente, num quase imperceptível curvar de lábios. Não havia humor ou alegria naquele sorriso. — Então, faça sua oferta.

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Notas finais do capítulo

¹ Ahlcker: Nome utilizado para denominar as técnicas mágicas dos Alquimistas. Os Hunters também costumam se referirem aos Alquimistas como "Ahlckers".

²Universidade de Uppsala: a mais antiga universidade pública da Suécia, sendo também uma das mais famosas e importantes da Europa setentrional.

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Finalmente, mais um capítulo editado! E graças aos céus, este será o último. A partir daqui, só vai ter capítulos inéditos, meu povo lindo!

Agora, vou dar algumas boas notícias e outras nem tão boas assim. A primeira é que eu passei no semestre!
Atanih-chan, obrigada pelas palavras apoio! Também agradeço muito a todos que estiveram torcendo por mim, anônimos ou não.

E a outra notícia que não é tão boa... É que não tive férias, trabalhei o durante o recesso e por isso, infelizmente ainda não tive tempo de adiantar os textos e escrever outros capítulos novos a vocês. E para acrescentar, minhas aulas começam normalmente a partir da próxima semana. Ou seja, vai demorar outro tempinho para que eu atualize isso aqui.

De qualquer maneira... O que vocês acharam da Az? E o acham da breve interação dela com o Kaien? Estou muito curiosa para saber a opinião de vocês! Teorias, sugestões, críticas? Quero todas, por favor!

Beijos e até a próxima!