Equinocial escrita por Babi Sorah


Capítulo 12
Interlúdio - Parte II




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/379429/chapter/12

__________~{}~__________

*Capítulo 12*

Interlúdio – Parte II

_________***__________


"Então eu fecho meus olhos e volto no tempo (…)

Lá estão os seus olhos brilhantes, brilhando como vaga-lumes

Eu posso te ver sorrindo, você estava cheio de vida

Você era apenas uma criança assim como eu

Éramos tão jovens, não tínhamos medo

Éramos tão jovens e não fazíamos ideia que nada dura…

Nada dura para sempre"

Souvenirs(Switchfoot)

:.


Fez muito frio naquela noite. Era como se meus ossos estivessem congelando. Todo o meu corpo tremia enquanto me revirava, tentando inutilmente encontrar alguma posição confortável naquele tapete fino que pouco amenizava o chão duro.

Eu poderia me aquecer melhor com meu cobertor se usá-lo não fosse tão doloroso, porém a lã sempre roçava em minha pele, ardendo ao tocar em alguma área sensível. Minhas roupas de linho encardido também não contavam como isolante térmico, mas pelo menos eram um pouco mais confortáveis.

Cuidadosamente, apoiei meu peso sobre a palma da mão esquerda e virei o tronco, deitando-me de lado. O movimento fez a pele ferida em minhas costas se esticar levemente e precisei prender o fôlego para reprimir um gemido de dor.

Alarmada e temendo que meus resmungos acordaram alguém, apurei os ouvidos e vasculhei os arredores do dormitório. O lugar estava mergulhado em trevas e meus olhos apenas distinguiam silhuetas turvas e escuras, porém, o som da respiração suave e estável das outras crianças indicava que todos ainda dormiam profundamente; abrigadas em seus próprios tapetes e cobertores.

Esperei alguns segundos e finalmente me permiti respirar. Aquela era a décima nona noite em que eu não conseguia dormir. Algumas vezes me perguntava quanto tempo mais eu conseguiria aguentar. A cada noite ficava mais perto de meu limite, e pensar nisso me apavorava.

Desisti de perseguir o sono e passei a me concentrar no ritmo de minha própria respiração. Contei quantas vezes meu peito subia e descia, os segundos que se intercalavam entre um ou outro batimento cardíaco, e continuei a fazer isso na esperança de que amanhecesse mais rápido.

Quando já havia contado mais de cem respirações, ouvi um ruído suave. Instintivamente, senti meu corpo enrijecer. O tecido preso ao vão da entrada farfalhou, denunciando que alguém entrara no aposento.

O medo percorreu minhas veias e meu coração começou a bater descontroladamente, enviando sinais de alerta por todo meu corpo. Quando senti a leve vibração de passos sobre o chão de pedra, fechei imediatamente os olhos e tentei fingir que dormia. Um após o outro, os passos avançaram lenta e cuidadosamente, atravessando o aposento. Parecia estar a procura de algo. Ou de alguém.

De repente, os passos cessaram. O visitante parou exatamente ao lado de meu tapete e pude sentir sua presença inclinando-se sobre mim.

Az? – Uma voz infantil sussurrou. Seu hálito quente e suave acariciou meus ouvidos. —Ei… Você está acordada?

Como sempre acontecia desde que nos conhecemos, as visitas dele me traziam uma mistura de sensações de perigo, expectativa e adrenalina. Sentei-me lenta e cuidadosamente no tapete e estendi minha mão para o alto, procurando por ele. E mesmo no escuro, nossas mãos encontraram-se e entrelaçaram-se em perfeita sincronia.

Lin! Por que está aqui?

Ainda segurando minha mão, o menino sentou-se ao meu lado, agindo com cautela para não me tocar além do necessário. Essa era uma das coisas que eu mais apreciava, a sua capacidade de respeitar minhas limitações sem que eu precisasse pedi-lo.

— É você quem me deve explicações. Você sumiu, não foi mais ao pátio… E hoje mesmo não apareceu no jantar!

— É perigoso, não devia se arriscar tanto vindo aqui!

Lin emitiu um resmungo de indignação, como se minhas palavras o tivessem ofendido.

— Ninguém me viu sair, não precisa se preocupar.

— Mas, e os outros? E se nos ouvirem e delatarem você?

Apesar de não conseguir enxergar direito seu rosto, podia jurar que Lin estava revirando os olhos enquanto ouvia meus argumentos.

Hum, está falando desses infelizes aí? – Ele desdenhou, se referindo as outras crianças no dormitório. ― Já vi pedras com mais ânimo e energia do que eles. Passaram o dia inteiro na arena. Acredite em mim, estão tão acabados que não acordariam nem mesmo se um terremoto sacudisse o chão.

Mesmo dizendo isso, tínhamos o cuidado de manter o tom de voz pouco abaixo de um sussurro. Para infratores como nós, isso era o equivalente a gritar aos quatro ventos.

Eu ainda podia sentir seu pulso acelerado sob minha mão e o calor de sua respiração ofegante. Ele com certeza se esforçou para chegar até mim, e por mais que isso soasse egoísta, estava aliviada por tê-lo comigo.

Antes que eu percebesse minhas mão já estavam envolvendo as dele, massageando-as e sentindo todos os seus calos e rachaduras. Ele deixou escapar um longo suspiro e o senti relaxar sob meu toque.

A pele de Lin era tão pálida que no escuro sua figura se tornava quase fantasmagórica e seus cabelos negros e brilhantes mesclavam-se completamente com as sombras. Lembrei-me da primeira vez que nos encontramos em um lugar quase tão escuro como este, e ele se assustou quando pensou por um momento que eu fosse um fantasma.

Foi nessa ocasião que ele decidiu me chamar de Az, pois na sua opinião “A coisa pela qual aquele esquisito te chama é muito difícil de pronunciar”.

A lembrança quase me fez sorrir. Naquela época eu ainda não compreendia o que era amizade, mas sabia que por algum motivo inexplicável eu fora proibida de me aproximar das outras crianças.

Por isso, Lin e eu prometemos guardar o episódio em que nos conhecemos em segredo e sempre tentávamos nos encontrar as escondidas. Nem mesmo meu irmão tinha conhecimento disso.

― Você está gelada. – Ele disse, levando sua mão esquerda até minha testa.

― É óbvio. Está muito frio aqui, não está sentindo? – Ele usava as mesmas vestes de linho acinzentado que eu, e pela minha experiência sabia muito bem que elas não ajudavam muito com as baixas temperaturas. Mas estranhamente, Lin parecia perfeitamente à vontade.

— Não muito, acho que já me acostumei.

— Se acostumou como? Está saindo fumaça branca da sua boca!

— Assim?

Para minha surpresa, ele soprou forte no meu rosto.

Resmunguei em protesto e ele riu de mim. Sua risada era suave, baixa e contida, mas o som ainda era deslumbrante, algo que eu poderia ouvir várias e várias vezes sem me cansar. Isso me fazia sentir um pouco de inveja de Lin. Diferente dele, eu dificilmente conseguia encontrar motivos para sorrir.

Quando suas risadas cessaram, pediu desculpas e olhou de forma cautelosa para mim. Eu já sabia o que ele estava prestes a me perguntar.

— Você ficou doente? É por isso que não te deixaram sair?

— Não. São apenas alguns machucados que ainda não cicatrizaram.

— Se não é grave, por que não contou isso para o Olho de Tempestade? Pensei que fosse trabalho dele te ajudar a se recuperar.

Olho de tempestade..?Demorei alguns segundos para descobrir sobre quem ele se referia.

— Está falando do meu irmão mais velho?

Humm… – ele murmurou, subitamente incomodado. — Seu irmão. Sim, ele mesmo.

— Por que o chama dessa maneira?

— Foram os outros que o apelidaram, não eu. Honestamente, não posso dizer que discordo. Sabe, os olhos dele me lembram dos temporais que uma vez atingiram meu vilarejo, quando os trovões estremeceram o céu e tudo ficou coberto por nuvens escuras.

Lin deteve-se e respirou fundo, do modo que costumava fazer quando estava prestes a me dizer algo delicado.

— Az, sei que ele é importante para você. Mas… Tem certeza que nunca percebeu algo estranho nele? Ele é calmo demais, perfeito demais, e age como se não fosse um de nós. E algumas vezes, quando está perto de você, os olhos dele parecem…

Seus dedos apertaram minha mão com um pouco mais de força e por um instante senti seu corpo estremecer. E eu, sem saber direito o que fazer, apenas encarei a silhueta de seu rosto. Após algum tempo, ele também se virou para mim.

— Parecem o quê? – o sussurro saiu tão suavemente de meus lábios e as palavras quase não emitiram som.

Quando ele demorou mais de um minuto para se pronunciar, imaginei que não havia conseguido me ouvir. Porém, percebi que ele simplesmente não queria mais falar sobre isso.

Lin não era o único a não gostar de meu irmão. Eu sabia deste fato, mas não tinha ciência dos tantos rumores que o rondavam. Na verdade, não me importava com o que diziam. Eu confiava nele, e ele era bom para mim. O resto não tinha a menor importância.

Os rumores me perturbavam apenas quando os ouvia diretamente de Lin. Quando falava sobre meu irmão, no fundo, parecia esconder ou saber de algo que eu não sabia. E sempre que eu procurava compreender o motivo, Lin mudava de assunto abruptamente.

― Ainda não respondeu a minha pergunta. Por que não pediu a ajuda do Olho de Tempestade?

— Não quero dar mais motivos para ele se preocupar comigo. E se eu contasse, os veteranos eventualmente também descobririam.

— Está com medo de ser levada de volta lá para baixo?

Foi a minha vez de tomar fôlego. Desviei o olhar do rosto dele, inclinei a cabeça e encarei meus pés.

— Eu apenas… não quero ficar para trás. Eu acordo e vejo o dormitório cada dia mais vazio e o quanto as coisas estão diferentes, mas não posso fazer nada. Você, por exemplo, está se tornando mais forte, progredindo. Algum dia, assim como os outros, vai me esquecer aqui e seguir em frente.

— Não seja tão pessimista! Você vai melhorar, só precisa de um pouco mais de… tempo. E mesmo se você voltar para lá, continuarei te visitando como antes, então pare de dizer coisas sem sentido. Eu já disse que não vou sair daqui sem você.

Fiquei muito grata por estar escondida sob a penumbra e por Lin não ser capaz de enxergar a frustração estampada no meu rosto.

Ele realmente pensava que tudo se resolveria se eu tivesse um prazo maior?

O tempo nunca colaborou muito comigo, independente do quanto eu desejasse que as horas se arrastassem ou que passassem mais de pressa. Desde aquela época, uma inquietação sussurrava em minha cabeça junto com o pressentimento de que meu tempo naquele lugar estava se esgotando.

O silêncio caiu sobre nós dois como um manto.

Pouco a pouco, a escuridão da noite se esvaía e as sombras no dormitório eram lentamente diluídas pela alvorada. Por um instante, senti como se fôssemos as únicas pessoas em todo o universo. E então eu soube que o momento de nos despedirmos havia chegado.

— Bem, já está amanhecendo. É melhor voltar logo para a minha ala. Por favor, tente descansar um pouco, nada mudará se você insistir em se desgastar assim. – Com gentileza, ele desvencilhou seus dedos dos meus e levantou-se num salto rápido e gracioso.

— Lin, espere! – Minha voz escapou num último chamado.

— O que foi?

Eu queria acreditar nas palavras daquele menino. Céus, como eu gostaria. No entanto, aprendi desde cedo que sonhos são perigosos demais para pessoas como nós.

Infelizmente, Lin se esqueceu disso e por um momento conseguiu me fazer esquecer também. De algum modo, ele me arrastava com sua determinação e me fazia sonhar junto com ele. E este foi o meu grande erro.

— Como pode ter tanta certeza? E se eles enviarem você para longe? E se eu nunca mais conseguir te ver?

O sorriso que ele mostrou era tão lindo e me aqueceu mais do que qualquer cobertor de lã.

— Não importa como. Mesmo se eu for embora, voltarei para te buscar de um jeito ou de outro.

E virando-se pela última vez, ele caminhou silenciosamente em direção ao vão da entrada e desapareceu pelos corredores da construção.


Quando os muros se abriram, encontrei um mundo repleto de luz ofuscante. Um mundo onde fogo crescia sobre a terra e cinzas caíam como neve do céu. Neve negra e incandescente.

Os uivos foram silenciados.

A fumaça e a poeira se dissiparam e quando tudo se fez mais claro, eu finalmente enxerguei aquilo que sempre esteve camuflado diante de mim.

Desde o início estive sobrevivendo no pequeno espaço do olho de uma tempestade. Naquele dia, eu soube que havia chegado a hora de deixar essa frágil zona de conforto.

E ele estava lá, rodeado por sua aura de esplendor, com a espada empunhada e a face serena; os lindos olhos cinzentos fixos em meu rosto desolado.

Sem hesitação e entoando aquela voz tão suave e familiar, ele pronunciou as palavras que eu tanto temia. As palavras que se transformariam em minha própria sentença e condenação.

Sinto muito, mas é tarde demais. É isso o que acontece com aqueles que ousam fugir.

Eu deveria ter resistido quando sua mão se ergueu sobre mim. Deveria ter lutado mais. Deveria ter apoiado-me na terra com todas as forças para permanecer em pé e impor minha vontade pelo menos uma vez.

Mas qual serventia isso teria, agora que tudo estava perdido?

Meu corpo anestesiado era apenas uma casca vazia. E em minha mente, apenas um único pedido desesperado ecoou.

Um pedido suplicante de desculpas que ninguém jamais ouviria.

Lin, por favor, me perdoe…”

“… Me perdoe por não ter impedido você.”


~*~


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Leitores lindos desta humilde fanfic, mil desculpas pela demora nas atualizações.

Culpem esse calor de torrar os miolos que drenou o meu ânimo para escrever. Está ficando cada vez mais difícil segurar o estresse com esses 36º. A única hora em que ando conseguindo me concentrar é de madrugada. Ou seja, meu sono está todo maluco.

Por outro lado, também recebi uma notícia triste sobre uma pessoa que admiro e confesso que isso me abalou um pouco.

Enfim, quero agradecer a todos que favoritaram a fanfic mesmo na minha ausência. E leitores fantasmas, por favor, revelem-se! Eu gostaria muito de conversar e conhecer vocês.

Bem, aqui vai uma curiosidade, caso tenham interesse em saber: Inicialmente eu planejei a fic para ser narrada pela perspectiva da Az. Porém, haviam tantas lacunas e detalhes sobre os personagens a serem explicados no mundo de VK, que eu acabei dando preferência para a narração em 3ª pessoa, onde possuo mais experiência. Agora que penso a respeito, fico imaginando por qual dos pontos de vista vocês preferem ler.


E Atanih-chan, você queria "Ele" de volta e eu o trouxe. Mas... não sei se foi da maneira que você esperava.

Um grande beijo para todos. Cuidem-se bem e até logo.

P.S: O que acharam da capa nova?



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Equinocial" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.