Zona - A última gota escrita por Ricardo Demétrio


Capítulo 3
Capítulo dois - Uma alma que habita dois corpos


Notas iniciais do capítulo

Freetalk do autor : Tomei a liberdade de pegar emprestado um pensamento aristotélico e transformá-lo em romance.



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16 de fevereiro de 2015 - Segunda-feira (Um mês antes do encontro entre Oliver e Walls)


De repente, tudo literalmente se avermelhou para Oliver. Talvez fosse o sangue escorrendo livremente pelo seu rosto embora a faca ainda estivesse no ar. Por pouco tempo. Antes mesmo do objeto pontiagudo atingir o rapaz, este foi desfragmentado. A ponta, a lâmina, o cabo, tudo desapareceu dividindo-se em pedaços tão pequenos que era impossível retornar ao que um dia foi. Ele tinha um pouco de dificuldade de distinguir as coisas, agora que tudo resumia-se em apenas uma cor, mas tinha certeza de que vira aquilo.

“Eu preciso me levantar.”, pensou, embora não encontrasse forças para se mexer. Sentia-se mais cansado do que nunca e as gotas de suor escorriam pelo seu rosto como uma cachoeira descontrolada.

– Hehe. - Ele ouviu uma risada debochada ao seu lado e levantou a cabeça para olhar quem estava ao seu lado. A aparição não era apenas repentina, era estranha, pois ao seu lado estava parado de pé o homem mais bizarro que ele já vira. Seus cabelos eram negros e constantemente estavam sendo puxados para trás, embora não houvesse vento ali. Um sobretudo também negro como a noite cobria-o como se dele fizesse parte.

– Quem é você?! - Ele ouviu uma voz que havia esquecido gritar, o assassino ainda estava ali. Oliver queria gritar para o recém-chegado fugir, queria alertá-lo do perigo mas a sua voz estava presa. Suas forças se resumiam a nada e até enxergar era um sacrifício além do corte em sua bochecha que começava a intensificar a sua dor.

– Não vejo motivos para lhe responder. - Retrucou suavemente o homem do sobretudo negro, sua voz transbordava calma e tinha traços inconfundíveis de escárnio, uma voz completamente fora do comum, não era grossa tampouco fina, deslizava sobre os ouvidos como mel. Com uma elegância fora do comum, o homem deslizou até dois passos de distância do assassino desarmado que hesitou.

– V-você também...?! - E como Oliver vira acontecer com a faca, embora envolvendo menos sujeira, o homem se reduziu a um rio de sangue. Sua pele, seus ossos, tudo foi pouco a pouco transformando-se em partículas microscópicas ou talvez nem isso, dessa vez parecia que tinham sido apagadas da existência. Apenas o sangue sobrara, e ele pensou ter visto uma gota de água se misturar ao líquido vermelho, uma lágrima. Talvez fosse um delírio e tudo aquilo não passasse de um sonho, mas no seu íntimo, Oliver sabia que na verdade tinha acordado de um sonho a partir do momento em que se dirigiu ao terceiro andar.

Ignorando Oliver por completo, o homem foi para trás do balcão, olhou os corpos, fez uma careta e se abaixou. Ao subir novamente, trazia um livro nas mãos, que apoiou na superfície do balcão e começou a folhear sem objetividade, correndo os olhos pelo conteúdo. Atônito, Oliver não sabia se deveria sair correndo ou ficar. Aos poucos a sua visão voltava ao normal, porém os dois homens nunca haviam perdido suas cores naturais, ele ainda havia conseguido distingui-los em um mar de vermelho.

– Peões... - Murmurou o homem com desprezo, antes de se virar para o garoto parado. - Oliver Young é um nome que eu deveria me lembrar, sim? Tem a minha gratidão.

– Gratidão? - Questionou, confuso. Sentindo-se como se afundasse cada vez mais em um lugar cujo fundo seria visível apenas ao ser alcançado, e se assim fosse, agora queria muito alcançar esse fundo.

– Você foi minha isca. Suponho que seja melhor do que ser morto, não? - Indiferente ao que Oliver poderia pensar, ele fechou o livro e o colocou debaixo do braço, dirigindo-se para a saída.

– Espere. - Oliver não sabia de onde tirara tanta coragem e sequer lembrava de falar em um tom tão imperativo quanto fizera agora mas não seria feito de alvo ou de isca, muito menos de bobo. O medo não o dominava mais, morrer poderia até ser melhor do que viver aquilo, portanto, já bastava de pensar duas vezes antes de tudo.

– O que foi? - Falou o homem, parando próximo da porta, ao lado de Oliver.

– Quem é você? - Perguntou, se levantando, possuíam quase a mesma altura embora o jovem levasse uma ligeira vantagem sobre o homem sombrio.

– Oh, cem perdões. Eu me chamo Mickey, nem Mike, nem Maicon, mas Mickey, tal como o rato. - Havia certa frustração em suas palavras, como se considerasse o nome indigno de uma pessoa tão importante, ou pelo menos era o que parecia. Suas roupas e voz soavam imponentes, assim como a sua presença e atitude, porém, Oliver nunca temeria alguém chamado Mickey. - Bom, tenho mais o que fazer além de conversar sobre nomes e ratos. Se quiser um conselho, jovem senhor, saia daqui o mais depressa possível. Ainda há ao menos duas pessoas para se preocupar por aqui, e eu garanto que perto deles sou tão inofensivo quanto um filhote de cão.

– Os filhotes podem atacar, se forem ameaçados. - Retrucou Oliver, tentando trazer a conversa para um plano sólido onde pudesse se apoiar, embora pretendesse esclarecer se estava ou não louco, sentindo que a resposta seria muito desagradável. Mickey o olhava com tristeza, como se a referência lhe trouxesse uma imagem, como se duvidasse da intensidade de suas palavras.

– Sim, é verdade. Mas você não pôde, isso por acaso faz você ser mais inútil do que um filhote? - Mickey argumentava, com um pequeno sorriso brotando nos lados de seu lábio

– Então me mostre! - Exclamou Oliver, com a mesma intensidade que movia os cabelos de Mickey para trás, com a mesma intensidade que sentira em Elizabeth e sentia por Molly. - Me ensine a fazer o que você fez.

Mickey sabia que iria se arrepender se dissesse “sim”, mas o garoto tinha um brilho nos olhos que era muito diferente do tom avermelhado que adquirira temporariamente alguns minutos atrás. Embora sujo de sangue e suado, esbanjava uma elegância que nem Mickey teria mesmo que tentasse muito, e ele tentava. Apesar disso, ali ele jazia, abandonado sem conhecer sequer a si mesmo, implorando pela ajuda de um desconhecido para preservar a própria vida.

“Maldito seja, Willians, é como se você quisesse me impor mais uma maldição.”, pensava ele.

– Bom... Quanto mais tempo você sobreviver, mais vezes servirá de isca, certo? - Insinuou Mickey, empurrando o livro nas mãos de Oliver. Não era exatamente um livro, parecia mais com um caderno pouco decorado. A capa roxa sem dizeres ou gravuras estava meio gasta. - Nos falaremos em breve, sugiro que chame a polícia. – Ele apontou para o celular de Oliver que estava no chão. - Não vai querer que “eles” arrumem pretextos.

– Como assim? - Indagou Oliver, sem conseguir assimilar tudo o que Mickey lhe falava em tão pouco tempo.

– Página 23. - Ele apontou para o caderno roxo, sorrindo, embora mais parecesse uma expressão maldosa. - Conhecimento é poder.

Com aquela nota enigmática como despedida, ele deixou Oliver sozinho com o livro, os montes de sangue e muitas perguntas sem resposta. Uma delas parecia já ter sido respondida. No caderno, montes de retratos de pessoas seguidos de suas informações preenchiam as muitas páginas que lá haviam. Na página 23 ele viu o primeiro rosto familiar : Alto, corpulento, loiro. A menos que estivesse muito enganado, aquele era o estranho amigo de Elizabeth, Robert. Na página seguinte, uma surpresa maior o aguardava. O único e verdadeiro que ele tivera em toda a vida, aquele por quem sempre perguntara, o alvo de toda a sua admiração nos momentos ruins : Sim, entre aquelas pessoas desconhecidas estava Willians Young, o seu pai.

Duas horas depois ele respondia às mesmas perguntas pela enésima vez. Como chegara, quando chegara, o que acontecera... A cena, com algumas notáveis modificações, foi descrita tantas vezes que se tornou mais emocionante para Oliver a cada vez que ele se lembrava do ocorrido. Embora desconfiassem do ferimento e da ausência de cadáveres, os policiais não tiveram escolha a não ser aceitar a palavra dele após ser feito um reconhecimento biométrico das digitais contidas na faca tão perfeitamente fincada na velha parede do terceiro andar que ele gostaria de esquecer.

O dono daquelas digitais, Eduard Prynce, estaria sendo procurado em breve. Um esforço particularmente inútil, nenhum dos mortos seria encontrado novamente por mais minuciosa que fosse a busca, todos haviam sido reduzidos a menos que nada, sobrando apenas um rastro de sangue, como Oliver bem lembrava.

Mas nem todos haviam morrido ali de acordo com as suspeitas de Oliver. Além dele e de Mickey, Andrew Romero, seu amigo supostamente morto junto com os outros dois e tantas outras vítimas, também constava no caderno roxo, assim como Eduard. Apesar das dúvidas, Oliver notava uma clara diferença entre os “alvos” e os “aliados”, que deveriam eliminar os alvos. Ele e Mickey, além de outras pessoas listadas, estavam sendo visados.

– Oliver! - Uma voz feminina gritou atrás de si, e antes que se virasse por completo, estava sendo abraçado por Molly. Que importava que haviam inimigos espreitando em cada sombra? Que importava que várias pessoas assistissem naquela delegacia irritantemente cheia? Estavam vivos, ela ainda era real e ainda permanecia ao seu lado. Ignorando tudo ao redor, Oliver a beijou intensamente como nunca fizera antes por breves segundos que poderiam durar eternamente sem que ele reclamasse. Deu por si que a amava e sentia a reciprocidade, eram como uma única alma habitando dois corpos e ele a protegeria para sempre.


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