Zona - A última gota escrita por Ricardo Demétrio


Capítulo 2
Capítulo um - Banho de sangue


Notas iniciais do capítulo

Freetalk do autor : Eu não entendo de carros mas entendo de cores, daí surgiu o "Carro prateado" da Molly. Parecia uma boa ideia quando eu escrevi...



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16 de fevereiro de 2015 - Segunda-feira (Um mês antes do encontro entre Oliver e Walls)




Oliver abriu os olhos que, ainda embaçados, contemplaram o teto personalizado que ele ganhara como presente de aniversário no dia anterior. Nele estavam inseridos personagens de seus games favoritos em uma tempestade de cores vivas, expressões e formas. Aquela excentricidade certamente não custara muito mas valia a pena procurar detalhes despercebidos ainda sonolento.












Retirando a nova decoração do teto e a pilha de embrulhos que se espalhava pelo chão, seu quarto continuava exatamente como estivera dois dias atrás, e ele até preferia que aquelas coisas sumissem todas. A escrivaninha de madeira repleta de aparelhos eletrônicos com diversas funções, incluindo o notebook que lhe rendia horas desperdiçadas com a representação virtual dos personagens que agora preenchiam o seu teto.
















Ver tudo aquilo transformaria a manhã de qualquer um em algo que valesse a pena, mas, agora um pouco menos atordoado, Oliver percebia que fizera dezenove anos mais ou menos vinte e quatro horas atrás. Embora nada mudasse, além de seu teto, aquilo parecia agregar algo a mais em sua vida. Já não tinha mais “quase dezoito” e nem “apenas dezoito”. Uma recordação digna de menos alarme aflorou na mente de Oliver ao ver uma mensagem no seu celular recém pego na escrivaninha :










“Não seja tão reservado assim! Eu queria ter visto você ontem... De qualquer forma, eu estarei indo te buscar pela manhã. Beijos, Molly.”



A autora ele reconheceria facilmente ainda que a mensagem não estivesse assinada. Sim, autora. Molly fazia questão de não cometer erros na frente dele em qualquer situação. Oliver sorriu divertido, a desaprovação que ela devia sentir dele por passar mais um aniversário sozinho quase dava lugar a um pedido de desculpas por não o felicitar pessoalmente. Molly era mais do que ele merecia, isso Oliver precisava concordar. Aceitava todas as restrições que ele impunha com seus metódicos hábitos e ainda o apoiava no que fosse.

Consultando o calendário de papel grudado no seu guarda-roupas com fita adesiva, ele viu uma pequena linha vermelha descrevendo uma circunferência no dia dezesseis. Nada que fosse digno de uma comemoração em particular afinal várias outras datas desse mês e de outros mereceram tal honra, contudo, viver o agora era algo bastante valioso para ele.

Virando-se para o céu que podia ser visto através da janela, ainda que parcialmente coberto pelos diversos arranha-céus, Oliver notava que o “pela manhã” de sua namorada ficara muito subjetivo e que seria melhor para ele se apressar, deixá-la esperando seria ruim, ainda mais sabendo que ela chegaria a qualquer momento.



– Parabéns! - Molly saudou-o, abrindo pelo lado de dentro a porta de seu carro prateado. Diferente de Oliver e seu teto, Molly não ganhava presentes mais baratos do que os recursos de um país pequeno. Embora fosse um ano mais velha do que Oliver ela tirara a licença poucos meses atrás, e como presente pelo feito recebeu um carro. Pelo que Oliver recordava, esse era apenas o caso mais recente de premiações que ela recebia a cada conquista particular e a extensa lista incluía várias bolsas de estudo e um estágio.





Sentado ao lado de Molly, Oliver passou inconscientemente a mão na franja, sem ter ciência de que era observado por ela. Embora ele tivesse certeza de que a conhecia bem, subestimava o quanto ela o conhecia, seus hábitos já haviam se tornado até previsíveis, assim como as suas frases :











– É, valeu. - Respondeu, como fazia há nove anos.

– Então... - Ela começou com cautela, após decorrer algum tempo de ruas, sinais, pedestres, buzinas, fumaça e tudo o mais que infestava o trânsito de New York. - Onde você decidiu se esconder da gente ontem?




– Eu fui a um teatro.

– Ganhou algo legal? - Molly sabia o quão difícil era arrancar uma frase longa dele, mas via que ainda não era hora de se render.

– Um papel de parede. - Resumiu ele, sem querer explicar os motivos que a brilhante mente de sua mãe arranjara para fazer aquilo. - Eles sabem que eu não abro os presentes, decidiram impor.

– Você não viu o meu? - Ela questionou, um pouco aborrecida, enquanto apertava a buzina e sinalizava para outros motoristas recebendo palavras feias em troca.

– Não tive muito tempo. - Esquivou-se, sorrindo. - Mas não quero acabar dando de cara com um presente dele...

– Oliver... Quando isso vai acabar...? Digo, ele parece se esforçar.

– É claro que ele se esforça, quer assumir o papel de pai para agradar minha mãe. Eu não pedi um padrasto.

Molly suspirou. Oliver não parecia aborrecido. Entretanto ela levava em conta que ele nunca parecia nada. Ou melhor, a palavra que o descrevia acabava tornando-se redundante tal era a sua eficácia : Entediado. Ela sabia, embora fingisse o contrário, que era apenas uma das formas de quebrar o tédio encontradas por ele. Era fácil falar “namorado”, mas Oliver não era o príncipe que ela tanto aguardou embora tivesse tudo para ser. Estavam com os dias contados, isso podia ser sentido por mais esforçada que Molly estivesse sendo.

– Obrigado. - Ele se limitou a dizer ao sair antes de vê-la desaparecer pelas ruas sendo substituída por outros carros com destinos diferentes mas um mesmo caminho. Seu destino certamente era diferente e estava, inclusive, mais próximo. Havia marcado de se encontrar com os seus amigos dentro do enorme prédio que estava separado dele apenas por alguns lances de escada. Ali, um grande evento artístico gratuito seria realizado. Talvez fosse mais uma das tentativas dele para se livrar da sua rotina enfadonha, mas nem ele próprio saberia dizer.

No andar reservado para tal evento Oliver viu muitas barracas armadas para vender livros, filmes, objetos, e até mesmo um palco, para apresentações teatrais, armado no centro do local. Até onde se sabia pela placa ao lado do elevador que informava o que se fazia em cada andar, aquele lugar, o nono andar, era um grande escritório mas agora, sem mesas, cadeiras, telefones e pessoas estressadas, estava irreconhecível.

Tomado pela distração analisando o local, Oliver foi trazido de volta à realidade que, se não era familiar ao menos falava palavras que ele conhecia muito bem :

– “Ninguém esconde emoções, embora todos tentem. Alguns são menos eficazes e outros até são bem sucedidos, mas...”...Hum... - Ela tentava recitar, em algo que podia muito bem ser classificado como tentativa de última hora. O figurino, as frases, Oliver reconhecia tudo e a dona daquela voz poderia até mesmo ter saído de sua imaginação que não haveriam diferenças. Óbvio, ele lera aquele livro várias vezes, lera em vários lugares, em várias situações. E aquela mulher não havia sido apenas produzida para fazer tal personagem, era mais como se tivesse nascido para fazer aquilo. Ou melhor, nascido daquilo.











Até mesmo o palco o impedia de ter dúvidas : A tal mulher iria interpretar Beni, a protagonista de seu livro favorito que carregava o mesmo nome, mas não tinha decorado o texto.


“Ela sequer precisa falar algo de tão perfeita que é.”, pensou Oliver, tomando nota de cada detalhe, a saia excessivamente longa com alguns bordados simples, a blusa folgada de camponesa, os cabelos negros sedosos e até mesmo os grandes óculos, que ele suspeitava serem realmente de grau. Era impossível resistir à vontade de ser reconhecido que o abateu, então Oliver completou em voz alta a frase que ela tanto se esforçava para se lembrar :






– “...Mas diga-me, que tipo de pessoa é você?”


Muito surpresa, a mulher levantou a cabeça tentando achar quem falou e encontrando antes de qualquer coisa um par de olhos castanhos separados por uma longa franja loira. Um pouco envergonhada, ela desviou rapidamente o olhar do rapaz que se encontrava a poucos metros de distância. Oliver adiantou-se alguns passos ficando perto do palco e dela para não deixar dúvidas, ele havia dito aquilo.

– Você já leu Beni? - Ela perguntou, ainda olhando para o lado.

– É um dos meus livros preferidos, assim como o autor. - Assentiu.

– Isso é sério?! - Exclamou repentinamente, ainda um pouco envergonhada, olhando nos olhos de Oliver que sobressaltou-se pela mudança de atitude. Até ela pareceu ter falado sem pensar e tentou corrigir o erro. - Digo... Eu nunca encontrei ninguém que também gostasse do livro. Por isso pedi para encenar aqui. Oh! Me desculpe! Eu sempre me esqueço... - Gesticulou esganiçada voltando-se para uma bolsa largada no chão e pegando um pequeno pedaço de papel plastificado, um cartão, e entregando para Oliver.

“ Elizabeth Ries – Detetive consultora e atriz. Telefone de contato...”

Ele pouco conhecia dela, mas nunca diria que seria atriz e muito menos detetive. Porém, isso apenas realçava a boa impressão que ela tinha tinha deixado. Desejando conhecer mais dela, estendeu a mão e falou :






– Meu nome é Oliver Young. Muito prazer, Elizabeth.








– Foi bom te conhecer também, Oliver. - Ela apertou a mão dele, com um sorriso tão largo que ele desejou poder receber milhares de vezes, sentindo que nunca cansaria de vê-lo. Antes de poderem conversar mais um homem alto, corpulento e loiro apareceu por trás de Elizabeth colocando a grossa mão em seu ombro :






– Então, você já conseguiu pegar o texto, Beth?


– Oh! - Ela exclamou, olhando para trás. Eles certamente se conheciam, do contrário ele não falaria tão intimamente assim com ela. - Robert, eu... Eu estou quase lá. Na verdade o Oliver esteve me ajudando. Oliver, esse é o Robert. Robert, Oliver.

– Hum? - Quando o nome “Oliver” foi mencionado, Robert reparou no rapaz, o mais novo entre os três, que antes estivera conversando com Elizabeth. Talvez fosse apenas impressão, mas Oliver viu, por um segundo, os olhos de Robert se esbugalharem em sua direção, como se quisessem saltar para fora e agarrar o jovem. Não sabia porque fizera isso, mas Oliver retribuiu com tal intensidade o olhar que havia recebido do desconhecido sem querer ficar para trás, impondo-se.

– Bem, acho que vou ter que praticar mais um pouco. - Observou Elizabeth, que não notou os breves segundos de tensão no local. - Oliver, eu quero que você assista a apresentação mais tarde. Você pegou meu número, certo? Me ligue, eu vou ficar feliz.

– Oh, certo. - Falou Oliver, sendo trazido de volta para a realidade enquanto Elizabeth falava. - Bem, tchau.

Ao se afastarem, ele olhou de relance para trás e viu que o olhar de Robert, que andava junto à Elizabeth, ainda estava focado nele. Contudo, foi por um breve período, pois logo Robert apanhou um telefone celular e afastou-se da concentração de pessoas, indo para um local mais reservado. Dando ombros para a situação, Oliver rodou pelo festival, observando os produtos e as pequenas apresentações enquanto esperava pelos seus amigos. Decorrido algum tempo, seu celular, bem localizado em um dos bolsos, vibrou notificando-o de que havia uma nova mensagem a sua espera. Ele apanhou o seu aparelho e a leu, era curta :

“Vem no 3”

“3” certamente significava terceiro andar, porém havia algo de estranho. O evento estava acontecendo no nono andar, onde ele estava, por que diabos eles estariam no terceiro? Com uma sensação incômoda, Oliver decidiu descer mesmo assim para o terceiro andar, tendo assim a segunda surpresa : O elevador estava quebrado.

– Isso é impossível. - Comentou em voz alta, atônito. - Eu praticamente acabei de vir por ele.

Inconformado, Oliver desceu pelas escadas, presumindo que a falta do elevador fosse o que impedia seus amigos de subir, embora se perguntasse como teriam chegado no terceiro andar se fosse o caso. A porta que conectava as escadas ao terceiro andar era a mais enferrujada dentre as que ele havia visto enquanto passava andar por andar, até mesmo abri-la exigia um certo esforço.

Parecia que o local estava em reforma, o chão estava coberto por uma grossa camada de poeira, escadas e baldes de tinta se espalhavam pelo lugar. Pelo lado de um balcão preso ao chão ele via um pouco de tinta vermelha escorrendo, mas não queria absorver mais detalhes do local que exalava um terrível cheiro, na verdade, tudo o que Oliver queria era sair dali o mais rapidamente possível :

– Thomas? Andrew? Gregor? - Ele chamou, sem sucesso. Desejando que fosse uma brincadeira deles, Oliver pegou o celular para chamá-los antes de ouvir uma voz debochada.

– Isso eu não posso permitir. - De baixo do balcão saia um homem magrelo, sorrindo. Sua camisa branca muito manchada e uma faca em sua mão suja da mesma substância. A mesma substância que Oliver vira antes. Não era tinta, era sangue.

– Quem é você? - Ele perguntou, tentando se manter consciente embora as suas pernas tremessem sem conseguir sustentar seu próprio peso.

– Largue o celular, vamos conversar com calma. - O homem falou, tentando sorrir amigavelmente conseguindo apenas fazer um esgar maligno se formar em seu rosto. Mas Oliver recordou-se, tinha um celular nas mãos, podia chamar ajuda de alguém. Qualquer um. Na primeira menção de discar um número, o celular caiu de sua mão assim como ele também caiu no chão sentado, batendo a cabeça na parede. Algo escorreu pelo seu rosto e ele sabia que era sangue, o homem havia atirado uma faca que passara raspando pelo lado direito dele.

“Eu vou morrer! Eu vou morrer!”, era a única coisa que passava pela cabeça de Oliver, já sem forças para se mover.

– Tsc. Eu precisei matar muita gente até encontrar seus amiguinhos, sabia? Bem, diga adeus. - Ele falou, arremessando mais uma faca na direção de Oliver que viu a ponta do objeto voando em sua direção com velocidade, nenhuma imagem bonita passou pela sua mente e nenhum momento de sua vida foi relembrado, havia apenas aquele local empoeirado e sujo com o sangue de pessoas mortas por sua causa, além do seu próprio sangue.


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Notas finais do capítulo

Espero que gostem!



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