Quase todos os dias são de feira, mas só a terça me pertence.

Meu segredo. Meu medo. Meu mundo. Minha fantasia.

Era dia de feira livre e em frente à minha casa sempre fica uma das três barracas de peixe, ou seja, não é preciso descrever o odor particular que me dava bom dia todas as terças-feiras.

Quando saio para trabalhar nem olho para os lados, estou com pressa, a respiração contida tentando não sentir o cheiro.

Mas o que realmente importa é o que faço antes de sair, pois do momento que coloco os pés para fora de casa até o fim do dia, é sempre a mesma coisa.

Todos os dias tenho mentiras a contar, segredos a esconder. Todos os dias fujo de quem sou, de quem amo e de quem poderia vir a amar. Todos os dias eu não vivo, simplesmente existo e faço o possível para que essa existência não prejudique a de ninguém. Já bastam todas as cruzes e carmas que pesam em meus ombros.

A janela da sala me dá a melhor visão: da barraca, dos peixes, das pessoas.

Dele.

Não sei seu nome, o chamo de meu. Meu sonho e meu tormento.

Sempre a mesma calça jeans, a regata só muda de cor a cada semana, mas a sequência sempre recomeça: azul, branca, vermelha, verde e preta. O mesmo tênis surrado e limpo, estranhamente sempre limpo.

Em conversas com outros feirantes ele me presenteia com a visão do seu rosto de perfil. O sorriso. Os olhos. A pinta delicada no canto dos lábios.

De costas eu quase podia sentir o prazer de como seria tocá-lo. Os ombros. Os braços. As costas. As pernas. Tudo.

Perdia horas o observando. Os olhos nele, as mãos suadas e impacientes. Queria ser cada gota de suor ou qualquer uma de suas roupas.

Não sei nada sobre ele, nem nunca vou saber.

Há sempre aquela foto na parede. Aquela que me faz lembrar o caminho que segui. Nela um homem e uma mulher se olham, não há sorrisos. Ele segura a mão dela, está colocando uma aliança. Nenhum dos dois parece feliz, apenas conformado.

Apenas eu sei das lágrimas que vieram depois.

Apenas eu sei das lágrimas que sempre vão vir.

FIM