O Rei Das Trevas (0) escrita por Cdz 10


Capítulo 2
Capítulo 2: Um perigo iminente.




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Capítulo 2: Um perigo iminente.
Aquele lindo e esverdeado céu se espalhava por todos os lados, cobrindo as cabeças de todos aqueles que viviam na cidade de Lunn. Uma visão bela, capaz de abrir sorriso e levar brilho aos olhos de qualquer ser vivo. Por muitas vezes, após os seus longos expedientes de trabalho, os habitantes, incluindo também os comerciantes do Centro, se reuniam em algum local para confraternizarem sob a imensidão verde e para conversarem sobre os mais variados assuntos que iam desde "Quantos itens você conseguiu vender hoje?" a "Por onde será que anda tal ser? Faz tempo que não o vemos!"
Naturalmente, entretanto, que apenas os mais sociáveis participavam de tais encontros e aqueles que eram um tanto mais hostis rapidamente voltavam para as suas moradias e lá permaneciam até que o momento de se iniciar o expediente novamente chegasse.
Não apenas em Lunn, mas em inúmeras cidades da Dimensão de Luk, não existia a distinção entre a noite e o dia. Aquele céu esverdeado e claro cobria a região durante todo o tempo. No passado, houvera o grande problema de se determinar quando exatamente começava e terminava o expediente dos trabalhadores. Muitas vezes alguns achavam que não havia um tempo de descanso suficiente, enquanto que outros, por vezes, reclamavam que o expediente havia acabado rápido demais e, portanto, não tinham conseguido obter o lucro que se desejava.
Tal problema fora resolvido quando alguns comerciantes mais importantes da cidade compraram um item especial proveniente da Cidade de Roul, uma outra pequena cidade contida dentro da grande Cidade de Rolly e que era bem próxima de Lunn. Tal item era chamado de Jyak - em homenagem ao inventor do mesmo - e se caracterizava por ser algo parecido com uma gangorra montada sobre uma base feita de um material que emitia um som bastante agudo no momento em que era tocado. O início do expediente ocorria quando uma das extremidades da gangorra estava na base e o término dos trabalhos era determinado quando a extremidade oposta tocava a base, causando aquele agudo som e, o expediente recomeçava somente quando a outra extremidade voltava a descer por completo. Entretanto, o objeto não funcionava como uma gangorra comum, pois demorava um tempo consideravelmente longo até que uma das extremidades descesse e fizesse ecoar o som. Era um item bastante útil, pois, funcionando corretamente, existia um tempo igual para trabalho e descanso, sem contar o fato de que, com ele, todos sabiam exatamente quando começava e terminava o expediente.
O Centro, naquele momento, estava bastante movimentado, com inúmeros consumidores de variadas raças andando por todos os lados, sendo que a grande maioria apenas passava conversando, o que fornecia àquele lugar um murmúrio bastante barulhento. Apenas alguns poucos paravam a fim de analisarem um ou outro item mais chamativo que observavam nas tendas dos vendedores, os quais gritavam em alto e bom som para anunciarem os seus produtos.
Um grupo de seres vivos da raça Shakk, que passava animado - quase gritando uns com os outros de tão alto que era o volume no qual falavam - se deparou com uma grande tenda recoberta de lona branca, sob a qual se encontrava um comerciante de pele azulada, um tanto rechonchudo e com uma expressão estranhamente jovem, algo que dava àquele ser uma boa aparência.
Ficaram surpreendidos com as vestimentas que estavam à venda. Longos pedaços de pano que mais pareciam vestidos, porém com um formato um tanto diferente, mais longo e mais largo e estranhamente quadrado, mas ainda assim, a mistura de inúmeras cores fazia com que a roupa tivesse um tom florido bastante bonito, o que acabou por chamar a atenção dos Shakk, que ficaram olhando em silêncio e ligeiramente sorridentes para o vendedor rechonchudo.
- Posso ajudá-los? - perguntou o comerciante.
- Muito bonita esta vestimenta, senhor - comentou um dos Shakk que tinha longos cabelos loiros e olhos azuis, lindos e brilhantes. O vendedor ficou duvidoso por um momento de quem seriam aqueles seres, mas rapidamente conseguiu reconhecer a raça, e mais... concluiu logo em seguida que o ser que acabara de se pronunciar sobre o seu produto devia pertencer ao sexo feminino devido à fina voz que ecoara através de sua boca.
A conversa durou pouco tempo no qual outros membros do grupo dos Shakk fizeram perguntas a respeito do tecido e do preço e quando o comerciante falou quanto custava, um deles chegou a soltar um "Ah!" que fez o gorducho azulado reduzir quase na mesma hora e depois de mais uma meia dúzia de palavras, o grupo acabou por levar a bela roupa.
Seria mais um dia comum naquele local, com as vendas dos comerciantes e as compras dos consumidores, se não fosse por uma considerável tensão que tomava conta dos que estavam ali presentes, bem como dos demais habitantes da cidade de Lunn também. Tentavam não se incomodar com o que estava acontecendo na cidade, e, por fora, a grande maioria até conseguia transparecer tranquilidade e normalidade, mas por dentro, todos sabiam que algo ruim poderia estar prestes a acontecer.
Ao redor do Centro, dentre as inúmeras moradias instaladas, existia uma especial, que se destacava um pouco das demais devido ao seu formato bastante semelhante ao de uma pirâmide construída à base de um material sólido escurecido, sendo cercada de elevadas árvores por todas as direções bem como um denso matagal. Era brilhante e poderia fazer com que qualquer ser que passasse por aquele local, parasse, pelo menos por um breve momento, a fim de se admirar aquela beleza.
O hall de entrada era caracterizado por ser um lugar de formato quadrado, relativamente pequeno e ligeiramente escuro. A única fonte de iluminação que existia era um pequeno triângulo dentro do qual brilhava fortemente uma pequena chama azulada. Era um item bastante bonito, cuja principal função se caracterizava justamente por ser a iluminação, porém ele não estava sendo usado da maneira apropriada. Aquele objeto estava preso ao teto e costumava ser mais utilizado por espiões a fim de que conseguissem enxergar o que estava a frente num caminho escuro, fosse uma caverna, um beco, ou algo parecido e seu preço era consideravelmente mais barato do que as fontes de iluminação apropriadas para as moradias.
As paredes ao redor eram ocupadas por algumas poucas estantes onde era possível encontrar alguns livros visivelmente envelhecidos além de objetos simples que se assemelhavam a pequenas facas e outros armamentos bem comuns e que eram inofensivos para aqueles que fossem um pouco mais evoluídos nas artes de combate. Havia também alguns utensílios utilizados para fazer a comida, mas também eram utensílios muito simples, como pequenos potes, adequados para realizar a mistura de temperos e ingredientes e algumas palhetas para que se pudesse apanhar o alimento.
Ao fundo, havia um grande buraco na parede que desembocava num corredor um tanto estreito e bastante escuro, enquanto que mais à direita estava uma escadaria de aproximadamente dez degraus que visivelmente levava ao andar de cima da moradia.
No centro daquele hall de entrada se encontrava um estranho objeto com um formato bastante semelhante ao de um arco, algo que se parecia com algum tipo de cama, tendo uma coloração branca que chegava a lhe fornecer um certo nível de beleza. Sobre tal objeto, estava um pequeno ser de pele esverdeada com dois chifres pretos no topo de sua cabeça, chifres estes que se misturavam com seus lisos e brilhantes cabelos castanhos. Seu rosto era um tanto redondo e suas bochechas relativamente inchadas, algo que lhe fornecia uma aparência bastante bonita. Estava acolhido de tal forma que sua testa chegava a tocar os seus joelhos enquanto que os seus braços estavam bastante agrupados junto ao corpo.
Logo ao seu lado, também deitada sobre aquela cama, estava uma Bour feminina, tendo apenas um pequeno chifre preto que saía do centro de sua testa e longos cabelos azuis, muito bonitos, além de olhos brilhantes e levemente amarelados, sendo ainda mais belos do que os seus cabelos. A sua mão direita deslizava suave e carinhosamente sobre o corpo do pequeno jovem, acariciando-o bastante devagar até que o mesmo começou a abrir os seus olhos lentamente.
- Mamãe... - resmungou quase inaudivelmente.
A Bour feminina foi pega momentaneamente de surpresa e parou de acariciá-lo rapidamente.
- Querido... - começou. - Você ainda está acordado? Eu estava certa de que já estava dormindo.
Passado o rápido e pequeno susto, a sua mão voltou a deslizar pelo seu filho da mesma forma carinhosa de antes, ao mesmo tempo em que o jovem recomeçou a falar.
- Eu realmente estava quase adormecendo... Onde está o papai?
Por um momento a mãe ficou sem resposta - ou melhor, sabia exatamente qual era a resposta para aquela pergunta, mas ainda assim, não poderia falar para o seu filho - e, então, tudo o que fez foi adquirir uma leve expressão de tristeza em seu rosto.
- Ele ainda não voltou, certo? - perguntou o pequeno Bour e o que veio logo no instante seguinte foi um rápido e silencioso aceno negativo de sua mãe. - Saiu para fazer aquilo mais uma vez?
Desta vez a mãe o encarou fixamente nos olhos para responder:
- Sim... Ele foi sim, Diell.
Ele já estava acostumado com aquele tipo de situação, afinal, praticamente desde que nascera, os seus pais desempenhavam aquele tipo de trabalho, portanto era mais do que comum ter a ausência do pai ou da mãe - na grande maioria dos casos, a ausência do pai era consideravelmente maior - mas não se recordava de alguma outra vez na qual o seu pai passara tanto tempo assim fora de casa.
- Eu gostaria tanto que vocês dois parassem de fazer esse tipo de serviço - a mãe não falou nada e, portanto, o jovem Diell prosseguiu. - Para onde exatamente ele foi agora?
- Ele está em uma missão muito especial, filho. Foi roubar uma pedra preciosa pertencente à raça dos Logrus.
A pequena Cidade de Lunn não possuía nenhum governante em especial. A vida que se desenvolvia ali ultimamente, em geral, costumava ser pacífica entre os habitantes, com apenas alguns pequenos casos de furtos ou de intrigas entre diferentes seres vivos por terras, por itens ou por alguma outra coisa qualquer e, quando tais casos aconteciam, as soluções eram provenientes, principalmente, de simples conversas e muito raramente havia a ocorrência de combates.
Apesar de não haver uma divisão hierárquica dentro da cidade, ficava bastante implícito para todos os habitantes que, se em algum momento, a forma de se levar a vida em Lunn mudasse e fosse estabelecida a presença de um governante, este certamente seria pertencente a algum ser vivo da raça dos Logrus. De longe, a raça mais poderosa e rica existente ali, detinham os melhores equipamentos de ataque e defesa para combate além do fato de que se focavam intensamente na atividade comercial, mas não aquela mesma atividade desempenhada pelos comerciantes do Centro da Cidade. Tinham a posse de itens raros, fossem eles comprados diretamente de outros comerciantes, fossem produzidos por eles próprios, mas o fato indiscutível era que a maioria de suas vendas gerava um lucro extremamente grande e as suas relações comerciais eram feitas por representantes específicos que eram mandados para fora da cidade a fim de realizarem tais relações.
Como se não bastasse a sua riqueza e a potência dos seus equipamentos, os seres vivos da raça dos Logrus nasciam com habilidades formidáveis voltadas principalmente para a arte do combate, e, assim, era extremamente comum que um Logru fosse alto, forte e feroz. Seria um tipo de raça muito boa para se ter como vizinha se não fosse o fato de ela ter uma hostilidade bastante grande. Viviam dentro de sua Morada e quase nunca saíam de lá, somente quando era estritamente necessário e, nesses casos, não se relacionavam de forma alguma com algum outro ser vivo, pelo menos, não de uma forma que se pudesse chamar de "harmoniosa" ou "agradável". Os demais habitantes de Lunn sempre evitavam ter qualquer tipo de contato com Logrus e, naturalmente, ninguém desejava ser considerado um inimigo daquela raça, porque se fosse...
Existiam inúmeras histórias - algumas, de fato, verdadeiras, outras eram apenas fruto das imaginações de habitantes das mais variadas raças - sobre massacres que Logrus desempenharam sobre os seus oponentes. Histórias realmente macabras, nas quais se dizia que um certo Logru havia arrancado a cabeça de um traidor fora, ou que havia ocorrido uma batalha para a posse de um item bastante raro achado em um determinado lugar escondido e, no conflito, um único Logru matara mais de dez inimigos a sangue frio e não satisfeito com a brutalidade dos assassinatos, se alimentara dos órgãos dos cadáveres após a vitória como prova de seu triunfo.
Entretanto, Diell não tinha muito conhecimento sobre tal raça e, portanto, ainda não tinha plena consciência da importância de uma missão como aquela.
- Por que você não foi junto com ele?
- Os chefões da CIV já estavam tentando elaborar uma estratégia para o roubo dessa preciosa pedra faz um tempo - começou a mãe - Ela está em posse dos Logrus, que habitam o extremo norte da nossa cidade.
- E estes Logrus... eles são perigosos?
- Sim, Diell, infelizmente são. Sabe, as habilidades de combate daqueles seres são definitivamente incríveis, além do fato de seus escudos, espadas e armaduras serem muito potentes também, não me lembro de algum conflito que se diga ter tido um membro da raça Logru como derrotado. Portanto, a elaboração da estratégia de roubo da pedra foi, de fato, um grande desafio para os chefões da CIV. Apenas os mais capacitados da organização foram selecionados desta vez, entende? Somente o seu pai e mais dezenove membros formaram a equipe designada a rumar para a Morada dos Logrus, enquanto que eu e todos os demais membros femininos da CIV fomos deixadas de lado.
A CIV - Caçadores de Itens Valiosos - podia muito bem ser definida como o que se chama de organização criminosa. Era composta por um número consideravelmente grande de seres das mais variadas raças que levavam a vida procurando por itens que tivessem um valor alto no mercado e, quando achavam algum item assim, geralmente roubavam-no para que pudessem vendê-lo fora da Cidade de Lunn. Não era uma organização lá muito famosa, atuava apenas ali em Lunn e não tinha um grande poderio de combate. A grande maioria dos seus membros não possuía habilidades evoluídas, com exceção dos Bours, os quais apresentavam características de combate mais destacadas do que as demais raças que faziam parte da organização.
Até então a CIV nunca havia tido nenhum tipo de contato com algum ser da raça Logru, mas isso foi antes de a preciosa pedra ser anunciada no mercado. Tal fato foi mais do que suficiente para que os chefões da organização se reunissem e começassem a elaborar uma estratégia para o roubo desta pedra, mas desde o momento em que decidiram roubar a Morada dos Logrus, sabiam que não seria uma tarefa nada fácil tendo em vista os inimigos que seriam obrigados a enfrentar.
- Eu entendo - Diell balançou lentamente a sua cabeça em sentido positivo. - Apenas os melhores foram escolhidos...
A sua mãe permaneceu acariciando-o, mas não deixou de perceber que, daqueles pequenos olhinhos castanhos de Diell, algumas lágrimas começaram a sair timidamente.
- Não fique triste, querido - a mãe começou a tentar acalmá-lo um pouco. - Estou certa de que o seu pai regressará, afinal, ele é bastante habilidoso, nada de ruim acontecerá com ele. Entenda que não adianta nada nos preocuparmos agora. Tudo o que temos a fazer neste momento é rezar... Rezar e implorar a Raikus para que proteja e abençoe o seu pai nesta missão.
Muitos habitantes, não apenas da Cidade de Lunn, mas de todas as cidades contidas na Dimensão de Luk, eram guiados por uma crença de que existia um ser especial na Dimensão da Pureza responsável por toda a criação de Luk e que observava a vida de todos os que viviam nela. Nunca ninguém havia visto o tal ser ao qual chamavam de Deus Raikus, portanto, tudo aquilo não passava de uma crença, mas mesmo assim, era uma crença bastante forte e aquela humilde família Bour, que vivia ao redor do Centro de Lunn, a tinha.
A menção do nome de Raikus pela boca da mãe fez com que Diell se remexesse um pouco na cama.
- Rezar para Raikus, você diz... - os olhos de Diell estavam bem pertos dos de sua mãe. - Eu não consigo compreender. Você e o papai realmente acreditam na existência deste tal Deus Raikus?
Não era a primeira vez que havia questionamentos de Diell em relação ao Deus Raikus e nem seria a última também, a mãe sabia disso. Por vezes o jovem fazia diversas perguntas quanto à crença do pai e da mãe, principalmente nos momentos em que ambos desempenhavam as missões designadas pela CIV. Ela já estava acostumada a conversar com o seu filho sobre o assunto.
- É claro, Diell, já falei isso a você inúmeras vezes - a mãe já estava usando um tom de voz relativamente mais alto. - O Deus Raikus foi o ser supremo que deu origem a toda a nossa Dimensão de Luk e se podemos confiar em alguém em momentos de tristeza e desespero é nele, Diell, é em Raikus que devemos depositar todas as nossas esperanças.
O pequeno Bour se remexeu mais um pouco na cama, estava ficando visivelmente revoltado a cada palavra que saía da boca da mãe.
- Mas eu não consigo compreender tal crença - rebateu. - De acordo com o que vocês acreditam, este Deus Raikus é um ser muito bom e de grande pureza, certo? Pois bem, tanto você quanto o papai estão constantemente nestas missões em nome da CIV, e tais missões não chegam nem perto de serem boas ou puras, muito pelo contrário. Várias delas envolvem roubos e furtos, enquanto que existem outras envolvendo até mesmo assassinatos. Entenda o que eu estou querendo dizer, mãe, não faz sentido algum acreditar em um "Deus bom" ao mesmo tempo em que se realiza apenas ações ruins!
Por um momento, a mãe permaneceu em silêncio e seus olhos se umedeceram levemente, afinal, sabia que as palavras do filho estavam inteiramente certas. Havia inúmeras vezes nas quais ela realizava missões muito cruéis da CIV, mas não era algo que desejasse e sim algo a que era obrigada. Constantemente, quando voltava de alguma tarefa da organização, se trancava em seu quarto agarrada fortemente com o "O Livro de Raikus - Os Ensinamentos do Criador" - um livro, por sinal, bastante belo, com uma capa azul brilhante e o título descrito em dourado, contendo todos os conceitos teóricos do que se poderia chamar de "uma boa conduta de vida" de acordo com o ponto de vista de Raikus - e rezava intensamente ao seu Deus, pedindo perdão por todas as ações que havia desempenhado e depois chorava consideravelmente até finalmente descansar. O pai de Diell também fazia o mesmo, só que não tão rotineiramente quanto a mãe e também, depois de terminar a sua reza, não chorava como ela.
- Eu entendo perfeitamente o que quer dizer, filho - a mãe começou, secando aquele leve princípio de lágrimas dos olhos com as costas da mão - Mas nem eu e nem o seu pai fazemos isso porque gostamos, muito pelo contrário, é uma necessidade. Você sabe muito bem, Diell, a nossa raça Bour, bem como outras raças, está vivendo numa condição subalterna faz tempo, praticamente desde que você nasceu. A CIV... sim, ela é uma organização criminosa que se baseia em roubos, furtos, podendo, às vezes, recorrer a assassinatos, mas ela foi criada justamente para nos dar a esperança de levar uma vida digna, ainda que esta esperança signifique... a desgraça alheia. Entende, certo, Diell? Não queremos fazer isso, temos que fazer isso, existe uma grande diferença! E eu tenho certeza absoluta de que se o nosso Deus Raikus vivesse entre nós, apoiaria a nossa causa, eu tenho certeza!
Diell era pequeno, porém bastante inteligente para a sua idade e compreendeu exatamente as palavras de sua mãe. Tinha plena consciência de que a condição deles era muito ruim e precisavam de uma saída para que pudessem sobreviver... Mas será que roubar objetos valiosos pertencentes a outros seres vivos era a saída correta? Acreditava que todas as ações que seus pais desempenhavam nas missões da CIV eram ruins e injustas, mas, por outro lado, também achava bastante injusto o fato de sua raça viver sob condições miseráveis, porém, será mesmo que o Deus Raikus apoiaria a ação de prejudicar os demais, mesmo que fosse por uma causa justa, mesmo que fosse pela sobrevivência?
O pequeno Bour gostaria muito de ter as respostas certas para todas as suas perguntas, porém, para a sua tristeza e frustração, não as tinha. A justificativa da mãe já havia sido dada, portanto não fazia mais sentido algum continuar com aquele tipo de discussão com ela. Diell, então, se limitou a acenar positiva e lentamente com a cabeça, se acolher novamente como antes e tentar dormir mais uma vez enquanto que voltava a sentir a carinhosa mão de sua mãe passando pelo seu corpo e pelos seus lisos cabelos.
Por um momento, a mãe se sentiu aliviada. Sentia-se apreensiva sempre que era obrigada a se justificar em relação às suas ações ou quando era obrigada a explicar os questionamentos do filho quanto à sua crença, portanto, ficou agradecida por aquela conversa ter terminado. Para a felicidade dela, não demorou mais do que poucos instantes até que Diell recomeçasse a fechar os seus olhos lentamente e, por este fato, também se sentiu muito agradecida. Sabia que o filho estava bastante preocupado pelo fato de o pai estar demorando tanto, e pior ainda, demorando numa missão bastante perigosa na qual não se sabia qual seria o resultado final e, portanto, desejava o máximo possível que seu querido filho adormecesse para que não ficasse apreensivo sem necessidade, afinal, o nervosismo de ambos, naquele momento, não seria capaz de mudar nada.
A visão de Diell já estava escura quase que por completo quando o susto fez os seus olhos se abrirem violentamente. Tanto ele quanto a mãe se ergueram com o estrondoso barulho provocado pela brusca abertura da porta de entrada, e ambos ficaram sentados sobre a macia cama esbranquiçada, encarando o ser recém-chegado, com expressões faciais que não ilustravam nada mais do que medo e nervosismo.
Alto e relativamente musculoso, com lisos e curtos cabelos pretos, olhos castanhos e três chifres no topo de sua cabeça, da exata cor dos cabelos e a pele ligeiramente esverdeada. Estava vestido apenas da cintura para baixo com um calção de coloração bege bastante sujo e que chegava quase à altura dos joelhos; seria um Bour bastante bonito se não estivesse com aquela aparência cansada, com ferimentos em diversas partes de seu corpo além da respiração intensa e ofegante.
Aquele rápido sentimento de medo que tomara conta de Diell e de sua mãe sumiu, dando lugar à felicidade e a uma intensa sensação de alivio no momento em que foram capazes de reconhecer quem havia acabado de escancarar a porta de entrada daquela maneira.
- Papai! - Diell foi o primeiro a se pronunciar através de um alto e empolgante grito. - Ainda bem que está de volta!
- Ainda bem! - foi a vez da voz da mãe se juntar à do filho enquanto que o pai adentrou um pouco mais aquele aposento. - Mas, querido, por favor, não faça mais isso, você nos assustou... Sabe, é melhor que descanse um pouco, eu vou...
- Não temos tempo para isso, Marrncifer! - apesar de estar ofegante, o pai foi capaz de interromper a sua companheira de uma maneira bastante ríspida.
Marrncifer, por um momento, sentiu-se irritada com o tom de voz dele, mas antes que conseguisse começar uma discussão, foi capaz de concluir o que toda aquela rispidez poderia significar e o medo a invadiu como um furacão. Era fato que alguma coisa bastante séria havia acontecido.
- Meu amor... - começou com os olhos ligeiramente abertos. - O que está querendo dizer?
- A nossa missão, o plano de roubo da pedra... ele falhou! - o pai soltou numa rajada e a informação chegou em Marrncifer como se uma flecha perfurasse o centro de seu peito.
Diell não conseguiu entender exatamente a gravidade da situação no momento em que ouviu as palavras do pai, mas sabia que algo estava muito errado e isto foi mais do que suficiente para que o medo começasse a invadir o seu interior.
- Falhou?! - a boca de Marrncifer estava trêmula demais e ela mesma se surpreendeu em descobrir que estava conseguindo falar mesmo naquele estado de pânico. - Mas o que houve?!
- Eu não tenho tempo para explicar - o grito do pai assustou ainda mais os outros dois. - Tudo o que precisam saber é que os Logrus estão vindo atrás de nós neste exato momento! Precisamos sair daqui o mais rápido possível!
Naquele momento, nenhuma sensação ruim poderia se comparar com aquilo que tomou conta do pequeno Diell dos pés à cabeça. Já havia ficado com medo por causa da forma como o pai estava se comportando e com o que ele estava falando, mas a simples ideia de serem obrigados a abandonar aquela casa fugindo de algo que ele nem chegava a saber exatamente o que era parecia um verdadeiro pesadelo.
Virou-se para a sua mãe com olhos arregalados e intensamente úmidos, olhos que suplicavam por proteção acima de tudo. Marrncifer o encarou com uma grande dor dentro de seu peito por um momento e logo em seguida virou-se para o seu companheiro mais uma vez.
- Você quer mesmo que saiamos daqui, abandonando a nossa casa? - a voz dela já chegava perto de estar no mesmo tom de um grito. - Isto aqui é tudo o que nós temos, Luyul!
A impaciência do pai estava se mostrando cada vez mais evidente.
- Não me questione, por favor! Você sabe muito bem o quanto os Logrus são perigosos, caso sejamos capturados por eles, nós não teremos salvação e isso não exclui...
O seu rosto mudou lentamente de direção, indo de Marrncifer para Diell. Não era do costume de Luyul ser alguém que pudesse ser chamado de "carinhoso" ou ainda "sociável", muito pelo contrário. Na maioria das vezes se comportava de uma maneira ligeiramente hostil, ainda mais quando se tratava de seres vivos que não pertencessem à raça dos Bours, mas tal fato não significava que ele era maldoso ou algo parecido. Sempre ajudava prestativamente aqueles que realmente necessitavam e amava, acima de qualquer outra coisa, a sua família, o que incluía Marrncifer e Diell - e talvez gostasse ainda mais de Diell do que de Marrncifer - e, portanto, ele sabia muito bem que tinha que sair daquela casa o mais rápido possível. O que havia dito era a pura verdade. Caso os Logrus os achassem, não teriam a mínima piedade agora que eles eram os seus inimigos e certamente a brutalidade se abateria sobre Diell também, ele não escaparia apenas pelo fato de ser muito novo.
Aquele hall de entrada da moradia ficou tomado momentaneamente por um profundo e obscuro silêncio enquanto que Marrncifer também se virou com olhos extremamente piedosos para o seu filho. Sabia exatamente o que Diell estava pensando, sabia exatamente que ele não desejava sair dali como um fugitivo, mas por outro lado, também sabia que Luyul estava coberto de razão, e, para a própria segurança de Diell, eram obrigados a fazer aquilo.
- Entendo... Realmente não podemos arriscar - disse, voltando a encarar Luyul.
Então era verdade? Não podia acreditar. Teriam mesmo que abandonar tudo o que tinham? Era demais para Diell. O jovem se jogou na direção da mãe, agarrou-se com toda a força que podia em seus braços e começou a gritar num som ensurdecedor:
- Por favor, mamãe! Eu não quero ficar fora de casa, por favor, por favor!
Aquele grito afetou Marrncifer da mesma forma que uma espada afiada atravessando o seu corpo da garganta até a cintura, mas ela não podia se deixar abater e muito menos ceder à súplica do filho. Agarrou bem firme os braços dele - os quais, por sinal, se debatiam como se estivessem em chamas - e o encarou bem nos olhos, algo que fez com que os seus rostos ficassem muito próximos um do outro.
- Meu filho, escute! Esses Logrus não são criaturas boas, e agora que eles nos consideram os seus inimigos... é como o seu pai falou, não podemos nos arriscar a ser capturados por eles, porque se algo assim acontecer, tenha certeza absoluta de que todos nós morreremos e isso não exclui você! Nos obedeça, realmente precisamos partir!
- Ela está certa, obedeça a sua mãe, Diell - era a primeira vez desde que chegara à moradia que Luyul se dirigia diretamente ao seu filho. - Agora, os dois, mexam-se!
Luyul se virou e saiu correndo numa grande velocidade daquela casa enquanto que Marrncifer apanhou Diell fortemente por um dos braços e acompanhou os passos do companheiro, fechando a porta de entrada com um grande baque ao sair. Foram obrigados a desviar dos inúmeros arbustos e árvores que ocupavam aquela parte da Cidade de Lunn, mas ainda assim conseguiam avançar rapidamente.
A primeira parte daquilo que deveriam fazer já estava em andamento. Estavam fugindo de casa, mas para onde exatamente estavam indo? Mais do que isso, uma vez que alcançassem o local de destino - fosse ele qual fosse - o que deveriam fazer em seguida?
As perguntas borbulharam em um curto espaço de tempo dentro da cabeça de Marrncifer e por um momento pensou em não falar nada por acreditar que aquele não seria o momento apropriado - afinal estavam correndo em velocidade, quase que em zigue-zague - mas foi como se Luyul tivesse escutado os seus pensamentos
- Alguém nos traiu, Marrncifer! Quase toda a equipe que estava na missão foi assassinada, apenas eu e mais quatro conseguimos sobreviver, mas o Krink está ferido demais, temo que será apenas uma questão de tempo até que morra também. Lark foi avisar a família dele enquanto que Juhs e Amn já estão arrumando um barco para que possamos seguir à Cidade de Roul - as palavras de Luyul saíram atropeladas da sua boca, mas, apesar disso, Marrncifer conseguiu compreender.
Não faria nenhum tipo de pergunta, mas como o próprio Luyul havia começado a falar, Marrncifer decidiu deixar a sua curiosidade se manifestar.
- Eu entendo, mas onde eles estão preparando este barco?
- No Porto dos Pescadores, você sabe, não fica muito longe do Centro da Cidade, é a fronteira que está mais perto de nós. Estou certo de que os Logrus em breve estarão chegando por aqui e é só uma simples questão de tempo até que façam o seu ataque ao porto, por isso precisamos partir para Roul o mais rápido possível.
Era um bom plano. A pequena Cidade de Lunn era cercada de água por todas as direções, porém só havia duas fronteiras através das quais se podia sair dali e uma delas era justamente o Porto dos Pescadores. A outra fronteira era através do chamado Porto Turístico, mas este certamente não seria o mais apropriado para aquela situação.
Primeiramente, o Porto Turístico era localizado mais à leste de Lunn, bem mais distante da moradia dos Bours do que o Porto dos Pescadores e não era apenas isso. O Porto Turístico - como o próprio nome sugeria - era destinado a receber os mais variados turistas que chegavam para visitar a Cidade de Lunn e nisto se encontrava mais um fato negativo que fazia desta fronteira a pior escolha. Caso escolhessem por ela, os Bours não apenas demorariam mais tempo até deixarem a cidade devido à maior distância que seriam obrigados a percorrer, como também haveria um maior número de testemunhas que os veriam partindo, algo que não aconteceria no caso do Porto dos Pescadores pois neste, só se encontravam trabalhadores simples que viviam à base de pesca, portanto, não haveria muitos seres por ali.
- Certo - Marrncifer concordou, mas os questionamentos quanto àquele plano ainda não tinham terminado. - Mas o que garante que os Logrus não virão atrás de nós? Tenho certeza de que eles possuem meios suficientes para fazer isso.
Sua preocupação fazia todo o sentido. Roul era a cidade mais próxima de Lunn, logo, seria consideravelmente rápido chegar até ela, entretanto, se seria rápido para os Bours chegarem então, provavelmente, mais rápido ainda seria para que os Logrus conseguissem fazer o mesmo.
- Se conseguirmos sair sem sermos vistos, eles não irão partir para Roul de imediato - Luyul ficava mais ofegante a cada passo de corrida que dava, mas ainda assim estava conseguindo falar alto suficiente para que Marrncifer conseguisse ouvir. - Certamente nos procurarão nas regiões daqui da Cidade de Lunn primeiro e somente quando não conseguirem achar nada é que partirão para Roul e para as demais cidades mais próximas, porém, quando este momento chegar, nós deveremos estar ainda mais longe. Em outras, palavras, estamos inicialmente indo para Roul a fim de ganhar tempo!
A notícia de que algo de estranho estava acontecendo na região da Morada dos Logrus já havia se espalhado por grande parte da cidade e desde então a tensão havia tomado conta de várias regiões, entretanto, nada se comparou com o nervosismo que invadiu cada um dos consumidores e vendedores do Centro quando um grupo numeroso de seres grandes, musculosos, de pele avermelhada, com diversos olhos amarelados por todo o corpo, começou a avançar por aquela região de Lunn. Apresentavam uma estaca preta e longa fincada em cada um dos seus cotovelos e suas aparências eram definitivamente assustadoras. Todos os presentes ali tiveram suas atenções atraídas diretamente para aquelas aberrações e, passada aquela surpresa momentânea, alguns começaram a apontar e murmurar.
Um comerciante grande, de pele alaranjada e longos cabelos loiros, rosto redondo e um bigode crespo bastante grande, além de orelhas obscenamente pontudas vendia, em sua tenda, diversas ervas medicinais além de poções especiais, também utilizadas para tratamentos e, quando visualizou os Logrus há poucos metros de distância de si, não chegou a ficar com medo ou algo parecido e sim consideravelmente irritado.
- Droga! Eles raramente saem da Morada, o que será que aconteceu? - resmungou. - Maldição! Tantos assim, vão acabar espantando os clientes!
A maioria dos consumidores parou, uns com medo do que eles poderiam fazer, outros com curiosidade em saber o que estaria acontecendo para fazer com que eles deixassem a sua Morada, ainda mais em um número tão grande como aquele. Outros ainda começaram a vaiar, porém num tom relativamente baixo.
O grupo foi avançando e, a cada passo que davam, os murmúrios foram se tornando cada vez mais volumosos, porém nenhum Logru chegou a parar a sua trajetória por causa disso. Não pelo fato de não estarem ouvindo, mas sim pelo fato de que nenhum deles realmente chegou a se incomodar com aquilo, afinal, eles tinham uma missão mais importante naquele momento.
Não demorou muito tempo até que se distanciassem do Centro e começassem a adentrar os seus arredores. Quando os Logrus já estavam encarando aquele denso matagal, sendo obrigados a se esquivar das diversas árvores, os comerciantes e consumidores começaram lentamente a voltar às suas atividades normais e em questão de poucos segundos, era como se nada de especial tivesse acontecido. O murmúrio voltou a tomar conta do Centro com as numerosas conversas dos consumidores enquanto que os mais variados vendedores voltaram a gritar em alto e bom som as principais qualidades e os preços dos seus produtos.
- Mais rápido! Temos que achar aqueles malditos Bours, não podemos deixá-los sair impunes depois do que fizeram - a voz de um dos Logrus era grossa e feroz como um trovão.
Já não podiam mais ouvir nenhum ruído proveniente do Centro e, naquele momento, tudo o que conseguiam ver era mato, arbustos, árvores grandes e pequenas, enquanto que seus ouvidos eram constantemente invadidos por leves sons do farfalhar das folhas, provocado pelo vento que voava através daquele local.
Continuaram seguindo por mais um curto espaço de tempo até que avistaram algumas construções relativamente pequenas e então, aumentaram ainda mais a velocidade, fazendo com que rapidamente chegassem a ficar defronte a elas.
Em geral, só havia moradias simples, de formato quadrado ou retangular que, pelo lado de fora, não pareciam apresentar mais de um único andar e as cores das fachadas eram diversas, algumas com aparência mais nova, outras visivelmente eram velhas e, nestes casos, não era nem um pouco difícil concluir que a parte de dentro, muito provavelmente, estava caindo aos pedaços.
Entretanto, houve uma moradia que chamou a atenção de alguns Logrus. Uma em formato de pirâmide, construída à base de um material escurecido, muito bonita e com um aspecto brilhante...


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